Friday, April 25, 2008

O defeito de ser canhoto

Não sei que horas eram. Era de noite, mais nada. Estava um frio de morte e Janeiro parecia que estava do lado deles. Acordaram-me à bruta e levaram-me para o pátio. Um pátio pequeno, um asilo de loucos para o vento, que não parava quieto de um lado para o outro.

Tiraram-me roupa

um cachaço no pescoço

- Que é para abrires a pestana!

Era hora do suplício. Não sei que horas eram

de noite mais nada

um frio de morte

Janeiro do lado deles

pátio

vento

arrepios e medo

um balde de água gelada pela alma abaixo e

- Como é que é meu rouxinol? Vais cantar ou não?

Tremer, tremer, tremer

medo e frio e morte e vento e Janeiro do lado deles.

Preso há três, quatro dias

(um homem acaba por perder-se do tempo)

e ainda mal tinha pregado olho.

Não sei que horas eram; quanto tempo dormi. Se calhar o tempo apenas de fechar os olhos e o guarda

- Upa, upa, que já é dia!

- Quem mais é que está metido nisto?

Tremer, tremer, tremer

medo e frio e morte e vento e Janeiro do lado deles

e uma bota na pontinha dos pés descalços a arrancarem-me uma confissão de dor.

- Quem mais é que está metido nisto? À terceira respondes sem dentes.

- Não sei. Não sei de nada. Juro que não sei de nada.

nem que horas eram nem a quantos estávamos

perdido, mas tão perdido

e nova pisadela nos pés a poupar-me os dentes por mais um pouco.

- Sete.

a lembrar-me por fim. O cansaço tolda-nos a memória; baralha-nos as noções

- Quê?

- Sete. Estávamos sete.

- Quem eram os outros seis?

- Não sei. Juro que não sei.

Mas um homem, entretanto, acaba por se lembrar. Um homem acaba sempre por se lembrar. Só depende da forma como a pergunta é feita e de quem a faz. Um homem que sabe acaba sempre por responder, mais cedo ou mais tarde

Sempre por responder

Por se ir abaixo

por fraquejar

não é bem fraqueza

é instinto.

Muito aguenta ele!

… há três, quatro dias

(um homem acaba por perder-se do tempo)

a tremer de frio e medo e medo e medo

um homem acaba por se ir abaixo

não é bem fraqueza

depende da forma como a pergunta é feita

eles sabem disso

eles sabem de tudo, muito antes de nós

mas é um desporto como outro qualquer

como o professor Romão, da primeira à quarta classe

- Estica a mão.

para me corrigir a deficiência congénita de ser canhoto.

- Já te avisei que não é com essa mão que se escreve. Hás-de aprender, nem que ta tenha de arrancar.

ciente de que, mais cedo ou mais tarde, haveria de mudar de mão, pois

- A esquerda não serve nem para limpar o rabo!

De modo que também eles

à força de porrada haveriam de corrigir-me o defeito

problema antigo

já o professor Romão

- Cem vezes na ardósia.

…direita, direita, direita, direita…

eu a explicar-lhes

Não é por mal, senhores, nasci assim, que posso fazer. Não se bate nos deficientes.

- Qual deficiência, minha senhora!

o professor Romão para a minha mãe, com pena de mim e da minha mão inchada, mas

- Já nasceu com ele. - minha mãe a argumentar. - Não é por mal. Que quer o senhor professor? Há-de agora castigar-se o rapaz por isso. Não escreve Deus por linhas tortas, também? Porque não poderá ele escrever com a mão canhota que é a mais direita que tem e, justiça se lhe faça, senhor professor, caligrafa melhor que muita direita que para aí há. Não sou eu quem o diz, é o senhor Marcelino.

- O da mercearia. - a minha mãe a descuidar-se sem querer, a fazer a cama ao merceeiro, coitado, que não o dizia por mal.

Mas há que Deus que é assim! O que pode uma mãe fazer?! O senhor professor é que sabe. Eu não conheço uma letra nem do tamanho de um comboio. Mentira, conheço três

Ana

A minha pobre mãe, até nisso ingénua. Conhecia apenas duas. Duas letritas apenas e tinha o nome escrito, igual da direita para a esquerda e da esquerda para a direita.

Ainda expliquei isso, mas os senhores

que quem está acima de nós é senhor

ou Senhor

a não quererem explicações

nomes apenas

de modo que eu

Rui Gomes; Guilherme Pato; Rosa Fusca; Patrocínio Almeida; João Bolhas e Fernando Lopes.

Um homem acaba sempre por se lembrar. Só depende da forma como a pergunta é feita e de quem a faz. Um homem que sabe acaba sempre por responder, mais cedo ou mais tarde

não é bem fraqueza

é instinto.

1 comment:

Anonymous said...

Tudo o que escreves tem um espírito acutilante e uma sagacidade admirável, bem visíveis neste texto, aliás. É um prazer ler qualquer que seja o tipo de texto que escreves.Parabéns.

Rosário