Friday, December 19, 2008

O fantasma da Madalena

Conheci-a em cada da Edite
 festa de anos
 chamava-se Odete e
 como eu
 estava sozinha.
 A Edite, amiga de longa data
 (do tempo já da 5 de Outubro, quando o escritório ainda rejeitava clientes, por “excesso de trabalho”)
 sempre teve queda para padroeira do encalhados. De modo que
 a não me admirar 
 se ela
 - Tens de conhecer o Óscar.
 falasse nestes termos à amiga
 … Odete.
 - Divorciado faz dois anos.
 (trabalhinho arranjado pela padroeira Edite)
 - Não tornou a ter ninguém.
 Um caso ou outro mal sucedido, que a Madalena nuca saiu por completo lá de casa
 ou de mim, quando eu lá em casa.
 (mas esta parte a Edite a omitir)
 apenas
 - Divorciado faz dois anos.
 e
 - Não tornou a ter ninguém.
 Pois o facto de a Madalena nunca (…) por completo… 
 …lá de casa
 a fazer com que
 de cada vez que uma mulher no 3º esquerdo
 (não digo o número) 
 da Rua de Arroios
 o fantasma da Madalena
 - É impressão minha ou cheira-me a puta!?
 e o amor
 ou a carência que o parece
 a sair gorado.
 Duas apenas, em dois anos
 uma por ano, numa análise estatística
 embora nenhuma mais de duas semanas, que o fantasma da Madalena
 (casada já, e com um filho que nunca lhe fui capaz)
 a ironizar de nariz torcido
 - É impressão minha ou cheira-me a puta!?
 Por isso, quando a Edite
 - É o Óscar. É a Odete.
 o meu estômago a ficar nervoso
 não por ela
 mas porque a história a tentar de novo
 e o fantasma da Madalena
 “Alerta” 
 como um escuteirinho irritante
 a
 - É impressão minha ou…!? 
 razão porque eu
 o meu estômago
 a ficar nervoso
 porque um homem
 se homem 
 - Divorciado faz dois anos.
 não tem como
 - Não faz o meu género.
 pois dá logo vontade de perguntar
 - Ai não?! E que género é o teu?
 No fim de contas foi a Madalena quem
 - Quero o divórcio.
 a Madalena quem
 distante há muito
 um pé dentro, outro fora
 embora sempre
 - É impressão minha ou cheira-me a puta!?
 De maneira que 
 se eu
 - Não faz o meu género.
 capaz de os narizes todos 
 - Ai não?! 
 a torcerem as ventas
 - E que género é o teu?
 Pelo que
 apesar do estômago nervoso
 a passar a noite na conversa com a Odete. Diferente de mim: dia e noite, preto e branco, cara e coroa… alegre, gordinha, gargalhadas de copos pela cristaleira abaixo, enfermeira em São José, solteira
 - … e boa rapariga.
 como achou graça dizê-lo.
 Toda ela clichés. Como eu todo clichés. Só que ela clichés alegres, gordinhos
 vidros em estilhaços
 e eu
  cinzento, gravata azul, camisa sem cor, como as cuecas velhas do papá no estendal da marquise em Sete-Rios.
 Mas a verdade é que
 nessa noite
 depois das velas e do champanhe
 (porque qualquer gasosa é champanhe)
 portanto
 depois das velas e do champanhe
 que o bolo a mim não me cai bem
 nessa noite…
 como hei-de dizer?
 a Odete que
 - Acho que já estou a ficar tonta!
 a pegar-me no braço e, entre marteladas na cristaleira, a garantir-me
 - Você é tão engraçado, Óscar!
 a fazer-me sentir na obrigação de
 - Trata-me por tu.
 como se lhe levasse a mão ao interior da blusa e lhe soltasse a mola do soutien que lhe oprimia o peito
 arrancando-lhe um suspiro
 - Acho uma óptima ideia! 
 de maneira que
 ao despedir-me
 a Edite logo
 - E tu, Odete, como é que vais?
 puxando-me pela prontificação
 e antes de a Odete
 um táxi, ou coisa que o valha
 eu logo
 - Posso levá-la.
 que na opinião da Odete
 - … uma óptima ideia! 
 Num chover de copos pela cristaleira abaixo.
 Há um mês que passa cá os fins-de-semana e já plantou uma escova no copinho da casa de banho. Ainda não é nada certo, mas há duas coisas que me fazem crer que é possível. Uma é a Odete não sair da cama a correr para ir lavar o amor ao bidé
 não me rejeitando
 não me expelindo de dentro dela para correnteza do Tejo
 como as outras
 a Madalena, talvez
 não me lembro se a Madalena 
 depois de…
 a Madalena
 ou a torneira do bidé
 numa cumplicidade secreta
 para correnteza do Tejo
 como as outras duas
 que
 mal acabávamos
 - Vou só à casa de banho num instante. 
 Agora a Madalena não me lembro.
 A verdade é que nunca um filho meu
 (e agora
 casada já, e com um filho que nunca lhe fui capaz)
 dois abortos espontâneos 
 a própria palavra
 espontâneos 
 a dizer tudo
 a rejeitar-me atrasadamente
 enquanto a Odete 
 depois de nós (…)
 a ficar
 gargalhando alto
 por tudo e por nada um desastre de copos pela cristaleira abaixo
 - És tão engraçado, Óscar!
 a não sair da cama a correr 
 a não
 - Vou só à casa de banho num instante. 
 a achar tudo
 - … uma óptima ideia! 
 a rir
 gordinha
 feliz. 
 A outra coisa
 das duas que me fazem crer que é possível
 é o facto do fantasma da Madalena nunca mais
 - É impressão minha ou…!?
 uma pontinha de nariz
 de vez em quando
 torcido, é certo
 mas nunca mais
 - É impressão minha ou…!?
 assustado, é possível, pelo estilhaçar de copos da Odete 
 que não acreditava em fantasmas nem em palermices e está cá 
 parece-me
 para ficar
 o que eu
 de certa forma 
 até acho
 - …uma óptima ideia! 

Isto tá bonito, tá!

- Barda merda mais às criancinhas de África, pá! Até parece que aqui não há fome! Passei pouca, eu! Não nos quiseram de lá para fora? Atão agora desemerdem-se, amanhem-se sozinhos, olha o caralho! Ah, que Deus, que os portugueses assim, que os portugueses assado… Estão melhor agora, qués ver!? Olha, os meus velhos deixaram lá tudo! Três malas de roupa e nem uma cá chegou! 
 Isto é mau, isto é mau, mas toda a merda cá vem parar! Isso é que eu sei! Se é mau, puta que os pariu, pá! Vão lá para a terra deles, ou o caralho! Temos de ajudar? Ó Calisto, foda-se! Eu sei o que é que estou a dizer, pá! Vim de Angola com uns calções, umas cuecas, umas meias, uns sapatos, uma camisa e um boné. Mas tás a brincar comigo ou quê? Eu sei o que estou a dizer, pá! Passei por elas!
 Ajuda? Mas tu achas o Estado português tá interessado em ajudar as ex-colónias, pá? O Estado só ajuda aqueles que o ajudam a ele! Ou tu achas que têm poucos interesses por lá? Hum? É petróleo, é diamantes, é ouro, é o caralho! Têm tudo, aqueles gajos, pá! Logo não ajuda merda nenhuma, pá! Olha lá o Soares, esse verbo-de-encher… não andava lá aos diamantes, mais o caralho do filho dele, aquele cara cu mal fodido? Olha, quando caiu o helicóptero, o que é que andavam por lá a cheirar? Às zebras para fazer passadeiras, qués ver? Conta-me histórias! Olha, havia de ter sido eu e ficava lá! Essa é outra, pá. Se for um pobre a ter uma dor de barriga, caga-se todo e ainda o fazem limpar o corredor das urgências. Agora um burguês? Até o lhe limpam o cu com a aba da bata.
 Só te dão um chouriço se lhes deres um porco. E tens de ser tu a matá-lo. É como os bancos, pá! Para te darem um tostão já tu lhes destes cinquenta. Ninguém te dá nada, pá! Agora, vou eu ajudar? Tá bem, tá! E quem é que ajuda a mim?
 A mim? Darem-me uma casa a mim? Uma pouca de merda é que me dão, pá! As casas são para os gajos das barracas, que não mexem uma palha e ainda recebem subsídio! Eu trabalho, pá! Tenho três filhos e a mulher desempregada! Pago quinhentos aerios de renda, ganho oitocentos: comer, água, luz, gás… e já foste. Não fosse a minha sogra a dar algum, andavam-me os putos a chuchar no dedo de manhã à noite para enganar a fome!
 Mata-se um gajo aqui a trabalhar para quê? Isto tá bom é para os ladrões, pá! Um gajo assalta um banco, no dia a seguir já tá cá fora. É uma maravilha! E quanto mais roubares melhor! Olha lá aquele cabrão do Benfica! Vê lá se ele não dorme descansado! Ligas a televisão e é só merda dessa! É políticos, é empresários, é advogados, é o caralho! Agora vai lá tu roubar um pão e vais ver a volta que levas! É a mesma merda que os impostos, pá! Não pagas a horas, tás fodido. Mas se for o Estado que te deva a ti, tas fodido na mesma! Mordes o esquema? Tás sempre fodido, é o que é, pá! E nem piu!
 Sabes o que é que eu te digo? Fazia cá falta era outro Salazar! Punha esta merda na linha que era um foguete!
 Com o ordenado que eu tenho vai lá tu pedir um crédito. Mandam-te ir apanhar no cu e ainda se riem na tua cara! Por isso, olha, quinhentos aerios todos os meses para as unhas da senhoria e uma casa minha, nem um tijolo!  
 Mas depois vem o caralho dos ciganos e
 bumba
 toma lá uma casa nova, ó Tarota! 
 E aqui o Chico, que se foda! Se quiser uma casa que a compre! Alomba que nem um burro, que até se amola, e quando vai ao banco perguntar como é que funcionam a coisas dos créditos, olham para um gajo de sobrancelhas em arco como que a dizer
 - Ó amigo, só de olhar para a sua camisa, digo-lhe já que isto tá mau de créditos! 
 Olha que caralho, hem!
 E ainda por cima nunca estão satisfeitos, os cabrões dos ciganos! São como os porcos, deita-lhe palha limpa, mas vão-se é espojar na estrumeira! 
 É uma merda, pá!
 Tudo aumenta, tudo aumenta, só o ordenado de um gajo é que parece a picha de um velho! Só quando é para caçar votos é que aparecem a prometer este mundo e a cabeça do outro. Foda-se! Vão pó caralho! Encostá-los à parede ainda era pouco! Mas os portugueses são muita burros, pá, graças a Deus! Já tínhamos feito uma revolução à séria! Olha, o que fazia cá falta era uma guerra civil! Vê lá os espanhóis onde é que eles tão. Ou atão uma merda maior ainda! Vê lá alemães. Foderam-se duas vezes e duas vezes vieram à tona. São como os cagalhões, os sacanas! Não se afundam nem à pedrada. 
 Agora aqui? Oh, pá! É levar no cu desde que nasces até que morres! E depois de morto só não te enrabam se não puderem! tás-te a rir? Sabes quanto é que gastámos com a morte do meu velho? Quase trezentas biscas, pá! Não tivesse ele deixado uns trocos e tinham-no enterrado na vala comum! É como eu te digo, ó Calisto! Isto tá bom é para os gatunos, pá!
 Se não fosse cá por merdas assaltava um banco! Mas bater com os costados na pildra e sujeito e a apanhar sabonetes! Foda-se, tá quieto! A merda toda é essa! Senão a ver se não era!
 Eu não sei onde é que isto vai parar, pá! Os putos, não têm educação nenhuma. Mandam mais eles que os pais! Na escola fazem o que lhes apetece. Se um professor lhe espeta um tabefe no focinho tá mais fodido có caralho. Havia eu de dar ao meu pai certas respostas que às vezes ouço para ai! Levava um avio de cachaporra pelos cornos abaixo que dava para o mês todo! Mas de quem é a culpa? Claro que é dos pais, pá! Dos pais e da merda dos psicólogos! Isso é outra raça que anda para aí a encher o cu à custa dos pacóvios! Eu bem gostava de saber se na casa deles os filhos fazem o que lhe dá na telha e é só conversinhas mansas, como na televisão. Gostava de saber se na casa deles não se grita. Urtigas no cu dos outros são malvas! Hoje não se pode fazer nada aos meninos! Senão ficam todos traumatizados. Coitadinhos! Levei poucas, eu! E ainda aqui ando! E digo-te que se levasse mais não tinham sido mal dadas! Sabes como é que dizia o meu pai? “A porrada não educa, mas conserva”. É como te digo, pá! Só se perdem as que caem no chão. Levassem eles umas lamparinas na trombil quando as pedem e não se via a pouca vergonha que se vê hoje! 
 Ó Calisto, não me fodas, pá! Atão mas antigamente havia respeito aos mais velhos e hoje não há porquê, caralho? Deixam-nos fazer tudo! Depois ficam como aquele puto do anúncio, que só dá vontade é de lhe dar duas bolachadas no focinho! E a ele e à mãe! Tem côdea! Foda-se! Tem côdea? Tivesse eu côdeas quando tinha a idade dele, pá. Vim de Angola num barco carga, com sete anos fui viver para a Charneca, para uma barraca de contraplacado, que aos meus velhos ninguém deu casa! Brinquedos eram pedras e paus, e aos onze, obras com ele, que já tinha escola a mais! Isso é que é trauma, não é umas lambadas quando fazem falta! Por isso é que esta merda anda cheia de paneleiros, ou o caralho, que até mete nojo! Tem cona! Raios partam esta merda, pá! 
 Havia de ser um filho meu a torcer-me o nariz ao pão! Ao pão ou ao que quer que fosse! É de pequenino que se torce o pepino, ou não é? Os meus cá, assim que começam a levantar cachimbo, e ainda são pequenitos, levam logo pela medida grossa. Era o que faltava, um fedelho meu mandar em casa! Antes cagar um pé de merda que levar um filho meu a um psicólogo! É uma corja, pá! É o que eu te digo. Vai por mim! Olha, psicólogos e políticos, era pô-los todos num barco com uma machadada no casco! Foda-se! Eu é que devia mandar nisto, pá! Não sei onde é que isto vai parar, ó Calisto… mas antes que isto piore, manda ai vir mais duas, que agora pago eu. 
 

Segredo é segredo!

- Gostas das minhas maminhas?
 e eu a acenar sins com a cabeça
 a não dizer nada
 tinha jurado 
 não dizer nada
 quando a Ana Maria
 - Jura por Deus que não dizes nada a ninguém.
 e eu 
 que sim 
 com a cabeça
 que sim
 que não dizia 
 - … nada a ninguém.
 a cabeça por mim
 - Juro.
 “por Deus”
 (por quem mais)
 a cabeça, por mil palavras, como se dissesse
 - Fica só entre nós.
 porque a Ana Maria
 - Se jurares que não contas a ninguém, deixo-te mexer. Queres mexer, não queres?
 e eu logo
 que sim
 que sim
 com a cabeça
 “por Deus”
 que sim
 que queria 
 a não dizer nada
 jurado já 
 e a Ana Maria  
 - Gostas?
 e eu
 que sim 
 com a cabeça
 que sim
 “por Deus”
 - Juro.
 a cabeça por mim
 que sim
 que sim.
 Eu tinha sete anos e a Ana Maria… bem, não sei. Trabalhava lá em casa desde o meu aniversário
 Janeiro, portanto.
 Estávamos nas férias da Páscoa, quando ela
 - Queres ver as minhas maminhas?
 e eu 
 pela primeira vez 
 que sim
 que a cabeça 
 por mim
 que sim
 de cima da minha cama
 um verbo sequer
 nada
 a cabeça apenas.
 Eu 
 sete anos 
 e a Ana Maria… bem, não sei. Quando se tem sete anos a idade dos adultos é-nos confusa. E tirando os velhos, têm todos a mesma idade. Digamos que para uma criança de sete anos
 ou pelo menos eu com sete anos
 os adultos eram-no a partir dos quinze
 pelo menos o meu primo Ricardo já devia ser, visto fumar. Embora
  como a Ana Maria
 - Jura por Deus que não dizes nada a ninguém.
 quando eu
 no quintal
 com patinhas de gato
 o meu primo Ricardo
 - Jura por Deus que não dizes nada a ninguém.
 e eu
 com a cabeça
 “por Deus”
 (por quem mais)
 que sim
 que não dizia 
 - …nada a ninguém.
 Portanto, a Ana Maria, adulta, como os meus pais, o meu tio Almiro, a minha tia Cila, o meu primo Ricardo
 já que fumava
 quinze anos
 e me dizia
 além de 
 - Jura…
 - A tua empregada, puto, dá-me cá uma ponta!
 e eu acenava que sim com a cabeça
 sem entender ponta 
 como sem entender ponta quando
 o Ricardo
 a fazer-me companhia nas férias.
 Não a mim
 sei-o agora
 à Ana Maria 
 que 
 - …dá-me cá uma ponta!
 e por
 sei-o agora
 seio agora
 que
 (- Queres ver as minhas maminhas?)
 a Ana Maria
 dezoito anos, talvez vinte
 Quando se tem sete anos a idade dos adultos é-nos confusa. E tirando os velhos…
 a Ana Maria
 sei-o agora
 gostava mais de mim que do meu primo Ricardo, pois nunca lhas havia mostrado. Nunca lhe havia perguntado
 - Gostas das minhas maminhas?
 sei-o agora
 porque um juramento com a cabeça não vale, não é? Espero que Deus entenda assim
 que a Ana Maria entenda que sim
 um descuido
 como um espirro
 juro que como um espirro
 “por Deus”
 que como um espirro
 - Juro.
 - Juro que a Ana Maria não me põe em cima da cama e me mostra as maminhas para eu mexer.
 - Quê, puto?
 o meu primo Ricardo
 - Quê, puto?
 obrigando-me a jurar de novo
 e eu
 “por Deus”
 (por quem mais)
 - Juro por Deus que não me deixa apertar assim…
 (a exemplificar com as mãos)
 deixando o meu primo Ricardo de boca à banda
 a jurar por Deus que
 - … nada a ninguém.
 - Juro.
 Afinal eu também jurara que ele
 quinze anos
 adulto
 portanto
 - … não fuma no quintal às escondidas, tia. Nem na garagem. Juro por Deus. 
 Afinal um segredo é um segredo!

Se eu fosse a contar…

- Tanta vez que eu levei aqui a sô dona Amália! Tanta vez! Nem queira a menina saber. Sempre que precisava de um táxi ligava lá para a central
 (ela não, a menina Estrela)
 mas é a mesma coisa
 ligava lá para a central
 (que na altura não havia cá telemóveis)
 e mandava vir o Pires. 
 - Tanta vez!
 - Era uma senhora. Coitadinha! É assim a vida! Vão-se embora os bons e os maus ficam cá, para semente, que é boa! Anda tudo ao contrário! Mas o que é que se há-de fazer. Deus é que sabe. Olhe, que lhe tenha lá alminha em descanso! 
 - Tanta vez, menina! Tanta vez!
 - Olhe, uma vez, eram quatro da manhã
 (nunca mais me esqueço, tinha ido levar um cliente à Artilharia 1) 
 ligaram-me para o rádio para ir à Rua de São Bento, 193. Já sabia para quem era. Meia hora depois arrancávamos para o Porto.  
 - Tinha uma confiança em mim, que a menina nem calcula! Sei de coisas que nem os melhores amigos dela sonhavam! E o que já insistiram comigo para escrever um livro!? Calhando, ficava rico! Mas eu quero lá saber do dinheiro! Olhe, tenho uma casa paga, o carro é meu, uma filha formada, que já me deu dois netinhos
 (são estas duas jóias, aqui ao lado do S. Cristóvão)
 de modo que o dinheiro… 
 - Há coisas que não têm preço, menina. Não concorda? Obviamente! É uma riqueza que está aqui dentro e vai comigo para a cova. Por isso, quando a malta amiga
 - Ó Pires, porque é que não escreves um livro com essas coisas, pá?
 eu logo
 - Não!
 E não! Por dinheiro nenhum! Olhe, só se fosse pela saúde destas duas joínhas que aqui estão. Nem pela minha. Pode a menina acreditar. Nem pela minha! Segredo é segredo. Pelo menos cá comigo é assim. Quero chegar lá acima de consciência limpa, piscar o olho à sô dona Amália e receber aquela gargalhada que dizia
 - Ó Pires, só você para me aturar estas coisas todas, homem!
 - Ai, que saudades, meu Deus! 
 - Bem, não importa! O que lá vai lá vai. Como a sô dona Amália dizia, e muito bem, “ninguém foge ao seu destino”, e o meu, olhe, é este, andar de cá para lá a levar histórias de um lado para o outro. Mas se eu fosse a contar… ai Jesus! Caía outra vez o Carmo e a Trindade. Olha, olha! O coronel Baptista Lima… ui! Dava cá um livro! Mas não. Fica cá dentro que está muito bem. Ou pensa que foi para o Porto sozinha, naquela noite? Ah! As pessoas sabem lá! Os artistas são homens e mulheres, como toda a gente. Têm é de se abrigar mais, que senão comem-nos vivo. É por essas e por outras que aqui o Pires não quer outra coisa que esta vidinha discreta. Às vezes é complicada. E de que maneira! Mas não trocava isto por nada, menina. Acredite que não. E quem me tirasse este carrinho das mãos era abri uma cova e chutar-me lá para dentro. Mas ser artista… Não! Eu sou dos bastidores. Olhe, ainda fiz teatro, quando era novo. Entrei numa peça com o mestre Eugénio Salvador, que Deus tenha, no Maria Vitória. A menina já não é desse tempo. Mas não dava para aquilo. Tinha de trabalhar, e depois os ensaios… Enfim! Entretanto conheci a minha Elvira e, olhe, o teatro foi outro. Ah,ah,ah… Ai, ai! Mas prefiro assim. Vejo muito, falo é pouco!
 - Falei na sô dona Amália porque causa do fadinho que passou. Ainda hoje, e os anos que já lá vão, sempre que a ouço na rádio, fico todo arrepiado. Olhe, de estar a falar nisso. Mas o que não faltam são artistas que eu já levei aqui, menina! Quer dizer, aqui não, que este é novo. Era um outro Mercedes, um 300 Diesel. Aquilo sim era uma máquina! Não é que me possa queixar deste 
 (Mercedes é Mercedes)
 mas já não se fazem carros daqueles. Sabe quantos anos trabalhou ele nas minhas mãos? Todo o santo dia, que nas folgas ia sempre dar uma volta com a patroa a e filha? Vinte e cinco! É verdade! Vinte e cinco anos, menina! E sabe quantas vezes é que me deu problemas? Uma. Um furo! Ah,ah,ah… Ai, ai! Até dava gosto! Para mim era família. E quando tive de me desfazer dele, foi como se me tivesse morrido um irmão. Até chorei. Palavra de honra, menina! E olhe que fiz duas campanhas na Índia. Isto pode parecer parvo, mas era um companheiro. Passei mais horas com ele do que com a minha mulher. Olha, olha! Se fosse a fazer contas: dias de trabalhar doze, catorze horas. Semanas sem folgas, que isto a vida não era simples. A malta nova hoje queixa-se, e a menina desculpe, mas sabem lá o que isto já foi.
 - De modo que não é este, mas… A gente que aquele menino conheceu! Olhe, aquele é que se soubesse escrever tinha mais histórias que o Diabo! Que um homem aqui à frente vai de olhos na estrada. Nem sou cá pessoa de espreitar pelo retrovisor. Se falarem comigo, tudo bem, senão, vou aqui no meu cantinho, caladinho que nem um rato. Ouço as notícias, e tal. O resto também interessa pouco. Até a rádio já não é o que era. Dantes era uma companhia, agora… O que é bom acaba depressa. Sabe? Tenho saudades é dos Parodiantes! Ah,ah,ah… Esses andavam sempre comigo para todo o lado. E cheguei a transportar alguns. Não me lembro agora é do nome de nenhum. Bem, não importa. Mas aquele menino se soubesse escrever… Ui! As coisas que às vezes se fazem nos bancos de trás dos táxis. Imagino!
 - Olha-me para este agora. Anda lá com isso, pá! Cartas da farinha amparo! Hoje qualquer um tem carta! Por isso é que isto anda tudo entupido e é só acidentes. No meu tempo, menina, para se tirar a carta até aulas de mecânica tínhamos de ter! Mas não era cá aprender a mudar pneus! Era mecânica! Agora, desde que se pague, toma lá e faz-te à estrada. Tenho mais medo de certos tipos que andam na estrada que do Diabo!
 - Mas como lhe dizia, menina: Tantos! Nunca mais daqui saíamos. Olhe, só para ter uma ideia: Raul Solnado; Carlos do Carmo; o falecido Ary dos Santos; a Beatriz Costa, coitadinha, que Deus também já lá tem; o grande Tony de Matos, outro que também já lá está. Tantos, menina! Olhe o Badaró. Esse nem sei se ainda é vivo ou não. Já não é do seu tempo. Ainda se lembra!? É o do limpa o pó, é. Era um prato, esse malandro. A Ivone Silva. Ai, do que eu me fui lembrar! Uma vez apanhei-a à porta do ABC, valha-me Nossa Senhora, nem sabia onde morava… Foi o saudoso José Viana que a teve de ajudar a entrar no táxi, que vinha às arrecuas. 
 - Não é assim, ó Ivone! 
 parece que o estou a ouvir
 e ela
 - É assim é. É para trás que mija a burra!
 Era uma senhora!
 Tantos, menina! Tantos! Nunca mais daqui saíamos.