Saturday, July 26, 2008

Eta frescura braba!

Cliente estranho sempre aparece! Uns até acho graça. Ficam assim de bobinho, querendo ser nosso pai e nosso filho ao mesmo tempo. Mas outros, por Deus, que não há quem aguente. É o caso de um cara dos seus cinquenta e tantos que a única coisa que quer é melar meu corpo durante uma hora inteira. Cinquenta minutos para ser mais exacta.
Não sei porque continuo recebendo ele. Aliás, sei sim. O cara me paga como nenhum outro. Normalmente cobro por hora
Cinquenta minutos para ser mais exacta.
duzentos euros
mas o preço varia um pouco conforme a variedade da coisa. Tem cliente que chega a deixar quase o dobro e outros que vêm sempre com um carinho extra. Mas esse, me deixa quinhentinhos, direitinhos, na mesinha.
E apenas para fica no chove não molha, no beijinho bobo.
É por isso que eu sigo fazendo ele. Depois que ele sai, fico meia hora no chuveiro, esfregando a pele como se coberta de um grude melento que parece não sair por nada desse mundo. É como se os seus beijos se entranhassem por debaixo da pele.
Da primeira vez em que ele
- Tenho um pedido muito especial a fazer-lhe.
fiquei logo com a pulga atrás da orelha. Sempre que um cliente chega com esse papo mole, vem bomba na certa.
- Queria ficar apenas a contemplá-la. A vê-la nua.
Não falei? Fiquei gelada. Na minha profissão a gente também se acanha. Para quem pensa que é tudo moleza. É sempre preferível o cliente tradicional. Chega, faz o tem a fazer, paga e se despede. Quanto menos frescura melhor. De preferência que seja simpático, atencioso e meigo. Mas entre um cara bruto e um cara fresco… não sei mesmo o que é pior.
E aí foi. Tirei a roupa, me deitei na cama… não disse nada. E ao final, quinhentinhos na minha mão. Nem queria acreditar. Nunca tinha ganho dinheiro desse jeito. Nuinha sobre a cama… Deus do céu! Vê se pode!? E o cara ali, me olhando, como se uma pintura famosa ou uma borboleta rara.
Da segunda vez
mal reconheci a voz no celular
(faz parte do meu trabalho. Afinal a gente tem de se proteger de algum jeito. E a voz - o papo - é o primeiro filtro)
ainda hesitei em aceitar, mas

o cara foi generoso, delicado comigo. E apesar da frescura…
quinhentinhos na minha mão.
Por isso
(quem sabe se não volta a pagar bem! Se não for assim, não aceito mais)
- Na quarta está bom para você?
- …
- Às sete? Deixa eu ver.
É sempre bom dar a ideia de que se tem de dar uma checada na agenda preenchida.
- Às sete para mim está perfeito.
- …
- Até lá, então!
No dia e hora marcados lá estava ele de novo, cheio das frescuras. Dessa vez
- Permite-me que a cheire?
E ao meu consentimento mudo com a cabeça começou a me fungar por todo o corpo. Me senti como um traque no meio de um ônibus cheio de gente. Mas, fazer o quê? Nunca me tinha sentido tão desnuda diante de ninguém e, para quem diz que é “vida fácil”, foi porque nunca se sentiu bunda de cachorro farejada. O sujeito me cheirava por debaixo do meu perfume; me procurando onde eu sou de mim e de quem me quero dar. Me sentindo nua por debaixo da minha própria pele. Invadida. Não sei explicar. Um negócio estranho; perturbador. Porque a nudez não está na roupa que se tira e era precisamente essa intimidade que ele buscava em mim.
Faz dois meses já que faço esse cliente e, de cada vez que vai, nunca me deixa sem os quinhentinhos. Não sei até quando seguirei fazendo ele. Talvez até ao dia em que ele com o papo de
- Permite-me que a lamba?
pois já passou da festinha para o beijinho
e temo que quando esse dia chegar, o seguinte seja para me comer. Não seria isso um problema se fosse ele um cara normal. Mas com tanta frescura, receio bem que me queira comer de faca e garfo e não com o talher de pau que Deus lhe deu. Se é que Deus lhe deu algum!

Há pessoas que nascem para serem únicas

Há pessoas que nascem para serem únicas. Não, não são todas. Mas é o caso do Hilário. Dono de um potencial inacreditável e de um Snack-bar na Avenida de Paris
(zona privilegiada da cidade).
Cursou engenharia electrónica no Instituto Superior Técnico e sempre viveu ali perto, na casa que ainda hoje habita, depois do súbito desaparecimento do pai
(- … a PIDE.)
e da morte da mãe. Por isso não terminou o curso
no qual
assegura
(e ninguém tem motivos para não crê-lo)
não havia pai para ele
porque o Hilário
- Conheci pessoalmente o Elvis Presley.
numa das muitas viagens que fez aos Estados Unidos.
Mas a vida dá mais voltas que um tambor de uma máquina de lavar, e umas vezes está-se por cima e outras enrolado de cabeça para baixo.
Poucas coisas, para não dizer nenhumas, havia que, contadas por outros, não tivessem acontecido ao Hilário levantadas à potência. De modo que, quando um dia o Paulo Luís
cliente habitual da casa
- Arranjei um sarrabulho no Cais do Sodré ontem à noite, que se não fosse a bófia ter chegado a tempo, tinha desgraçado a minha vida.
todos torcemos nariz.
- Três sacanas estiveram mais de uma hora a espicaçar-me a paciência. E vocês sabem que se há gajo pacífico sou eu.
O Paulo Luís fora praticante de luta livre em novo
(treinado pelo grande Tarzan Taborda)
e só nunca entrou em competições para não matar do coração a senhora sua mãe, a quem faltava o ar sempre que o filho metia a roupa do treino no saco e saía para a Caparica. Um campeão sem nunca ter competido. E não houve falta de ofertas para que o “Cordeiro Negro” entrasse no ringue para matar.
- Este tipo é perigosíssimo!
(ouviram uma vez o mestre Taborda dizer)
- É melhor mesmo que nunca entre no ringue. No dia que entrar… - e pendurou a frase, passando o polegar pela saliência do pescoço
E nada disto era mentira, porque no dia em que Paulo Luís pisasse o ringue, a sua pobre mãe haveria de cair para o lado, mortinha da Silva.
No entanto, quando o PauloLuís
- Arranjei um sarrabulho no Cais do Sodré ontem à noite…
todos torcemos o nariz.
Não que fosse uma história impossível, mas…
De qualquer das formas éramos testemunhas que se havia gajo pacífico era ele.
O Hilário, a respeito disso, declarou logo
- A mim, uma vez…
(assim começava sempre as suas histórias)
- … no México, tinha ido com um grupo de camaradas
(era um comuna dos sete costados, como o pai)
- …a um bar, fora do hotel. E nisto, um grupo de mexicanos cai-lhes em cima na hora em que eu vou à casa de banho. Assim que volto e vejo aquele sarrabulho… meus meninos… nunca na história do México caiu uma tempestade de cadeiras pelos cornos abaixo como aquela noite! Se não eram trinta, não eram nada! Deixei ali uma despesa, que nem a vida toda a alombar daria para pagá-la. Nem a polícia escapou!
E nós a não duvidarmos, porque há pessoas que nascem para serem únicas. É o caso do Hilário, dono de um potencial inacreditável
(única coisa inacreditável nele)
e de um Snack-Bar na avenida de Paris.
(zona privilegiada da cidade).
Cursou engenharia electrónica no Instituto Superior Técnico e sempre viveu ali perto, na casa que ainda hoje habita, depois do súbito desaparecimento do pai
(comuna dos sete costados)
e da morte da mãe. Por isso não terminou o curso
no qual
assegura
(e ninguém tem motivos para não crê-lo)
não havia pai para ele
porque o Hilário
- Quantas vezes não vêm aqui professores do Técnico tomar uma cervejinha, como quem não quer a coisa e, vai no fim, tumba, estão a tirar dúvidas comigo. Colegas meus, da faculdade, pois. Eram umas nódoas. E hoje, professores! É assim a vida! Meus amigos, isto quem não tem paizinho nem padrinhos, está tramado e bem tramado! De modo que eu, que não sou um tipo orgulhoso, tiro-lhas todas como se fossem criancinhas de seis anos. Está aqui o Lerpa que não me deixa mentir.
e o Lerpa
que não o deixa mentir
a fazer sinal com a cabeça
sinal apenas
sim, talvez
talvez não
mas que todos entenderam com um
“- É verdade, sim senhor.”
Ensurdecera em Angola, mas nunca se habituara à ideia. Uma mina. Sabia-se, sem que nunca o tivesse contado. Quando falava ninguém o interrompia. Nem havia como. Aprendera a ler nos lábios e isso chegava-lhe para se fazer presente. Um dia, sem mais nem menos
- Uma vez tive um combate de nove horas. Nunca pensei sair de lá vivo.
E nós a torcermos o nariz
apesar do Lerpa
sempre cheio de medalhas na lapela do camuflado
que não despia nunca.
Nós a torcermos o nariz
(na Feira da Ladra já as vi à venda por bom preço)
apesar do testemunho de outros companheiros
dos recortes de jornal
porque
(na Feira da Ladra já as vi
por bom preço)
enquanto que o Hilário
- Isso não é nada! A mim, uma vez…
e a servir-nos uma história das suas, quentinha, numa travessa de pipis.
E nós a não duvidarmos, porque há pessoas que nascem para serem únicas.
não são todas.
caso do Hilário
potencial inacreditável
Snack-bar na Avenida
(…privilegiada da cidade)
engenharia electrónica
Instituto Superior
sempre
ali perto
casa que ainda hoje
desaparecimento do pai
morte da mãe
(a PIDE e a miséria)
por isso
o curso…
no entanto
as dúvidas aos ex-colegas
- …umas nódoas…
apesar de
sempre que alguém
- Ó Hilário, não me podes passar lá por casa para dares um olhadela na instalação?
responder sempre
- Eh, pá, ando com o tempo todo contadinho.
E nós a não duvidarmos, porque há pessoas que nascem para serem únicas.