Monday, September 25, 2006

...de repente

Ainda que quisesse contar como foi que tudo começou, não creio que fosse capaz de o fazer sem falsear factos.

Foi de repente. Será mais honesto dizê-lo. De repente, como quase sempre acontece. E de repente, uma mão de aliança no dedo a descasar-me os botões da camisa, numa fome de animal por bagas. E de repente, o contraste dourado de uma promessa esquecida a perder-se-me entre o negrume do peito.

Tinha um nome que não convém que se diga, duas filhas pequenas e um homem de negócios com quem casou, ainda muito nova, quando o sonho de ser arquitecta era ainda um ramo verde.

Ainda que quisesse contar como foi que tudo aconteceu

numa pensão barata da Pascoal de Melo. Não que não pudessemos pagar mais, mas porque ambos, de repente, quisemos assim.

- Também sei ser puta! O que é que ele julga?!

Dissera-mo uma vez, entre um copo de cerveja e um desabafo desesperado numa das raras conversas que tivemos no final do expediente.

- Também sei ser puta!

E não sabia. Sabia ser pouco mais que uma mulher carente que apenas conhecera um homem na vida.

- O que é que ele julga?!

E eu a não saber o que é que ele julga. A saber apenas que

…pouco mais que uma mulher carente.

E de repente - porque tudo acontece de repente -, nós, guiados pelo corrimão sombrio, gasto pelo suor das mãos, até ao primeiro andar de uma pensão barta da Pascoal de Melo. Não que não pudessemos pagar mais

onde uma senhora - se é que as donas das espeluncas podem ser senhoras -, uma mulher de cinquenta, entremeava romances da Maria com janeirar de molas.

- Tem quartos para alugar? – como se quisessemos mais do que um.

- Tem quartos... – na curva do corrimão sombrio

gasto pelo suor das mãos

- Tem... – no lugubre patamar da escada, onde uma senhora, ou uma mulher de cinquenta

- Por quanto tempo?

Uma vida inteira, um final de tarde, um “até que a coragem volte” para voltar para casa, para mais um bocadinho, para mais uma apneia de afecto no gélido mar do desengano.

E de repente, porque tudo acontece de repente, uma mão de aliança no dedo, a procurar honestidade no interior da minha roupa, enquato me provocava, com olhar de mulher carente, e não de puta, como ela achava que também sabia ser. Ainda que soubesse ser pouco mais que… à procura de conforto, não sexo, um abraço

não vingança

- O que é que ele julga?!

somente um beijo, sincero, desejoso da mulher que ainda achava ser.

Tão nova e já tão sem futuro! Cada dia menos um. Cada-dia, cada-dia, como pouca-terra, pouca-terra, num devorar de carril por um comboio sem destino, às voltas na serra até ao limite do carvão.

Tão nova e…

e a seguir a mim o quê?

A seguir a

- Tive um convite para ir trabalhar para Toronto.

…o quê?

Uma depressão?

Umas férias no Algarve, numa tentativa desesperançada de reconciliação? A última; como a primeira, sem destino, às voltas na serra em pouca-terra, pouca-terra, até ao limite do carvão.

Um psiquiatra?

- … muito bom!

aconselhado por uma amiga em processo de divórcio.

- … a mim foi o que me valeu!

Ou

- …uns copos e isso passa!

por outra, já divorciada.

Numa mezinha caseira de gin tónico e prozac (em simultâneo ou alternados).

E eu a pensar nisso agora (claro que não em Toronto, em Lisboa), dois meses depois da última vez em que

- Boa tarde.

sem perguntar

- Tem quartos?

sem perguntar

- Tem quartos para alugar?

Simplesmente

- Boa tarde. - como um silêncio absoluto.

- Boa tarde. - porque era sempre de tarde. Porque ela, uma mãe de família: duas filhas pequenas e um homem de negócios com quem casou, ainda muito nova, quando o sonho de ser arquitecta, ou feliz, era ainda um ramo verde.

E eu a pensar nisso agora (claro que não em Toronto…), dois meses depois da última vez em que

- Boa tarde. – na curva do corrimão sombrio, gasto pelo suor das mãos

sem conseguir contar como foi que tudo começou, sem falsear factos; com a nítida sensação que foi de repente.

O jardim de outros tempos

Ele vinha devagar, ao ritmo de quem há muito menosprezou a pressa e o seu sem porquê de ser.

A janela do escritório a dar para o pequeno jardim da praça - um quadro de limites elásticos, assim me aproximasse mais ou mais me afastasse dela -, a janela, moldura de um verde descascado, contentora daquele quotidiano impressionista, apenas um “por onde chegar”, de longe, ao jardim compreendido quase na totalidade, assim me aproximasse mais ou mais me afastasse dela. Era uma natureza morta, à qual ele, devagar, vinha trazer um pouco de vida; um pouco da que ainda lhe restava e de boa vontade depositava ali.

Sentava-se sempre no mesmo banco. O banco já o reconhecia ao longe e sorria - naquele sorriso feliz que o bancos de jardim fazem ao verem alguém conhecido aproximar-se - quando o via aparecer, ao ritmo de quem há muito menosprezou a pressa e o seu sem porquê de ser.

Ali ficava a olhar para o jardim. Não aquele, o jardim de outros tempos, o jardim das suas recordações com canteiros de vestidos de folhos e chapéus de palha com fitas coloridas. Ficava ali, no antigamente, no tempo dos sonhos tidos, um minuto, uma vida, até que uma mão, vagarosa, ao ritmo de quem há muito menosprezou a pressa e…, a tirar do bolso uma carcaça, sempre a mesma - porque as coisas iguais são sempre as mesmas - para a desfazer, devagar, ao ritmo de quem há muito…, para o empedrado do jardim da sua memória, onde os pombos de hoje, vestidos como os pombos de outrora, arrulhavam aos seus pés num rabujar de guarda nocturno.

Uma gaiola de pássaros, atrás de si, talvez por não chegar às migalhas, agitava-se num apetecer, como que exclamando:

- Senhor Polícia! Senhor Polícia!

porque

- Não se pode dar comida aos pombos!

Mas nenhum polícia. Nunca nenhum polícia. Se calhar um bufo, num outro banco, num outro tempo: num tempo em que ainda se podia dar comida aos pombos. Num tempo em que

… canteiros de vestidos de folhos e chapéus de palha com fitas coloridas.

Ali passava uma hora. O tempo de desfazer a carcaça, sempre a mesma - porque as coisas iguais…

uma hora

em movimentos de crochet, fazendo e desfazendo a meada, a carcaça (o que importa), porque as coisas iguais são sempre as mesmas.

o tempo de desfazer a carcaça, devagar, ao ritmo de quem há muito menosprezou a pressa e o seu sem porquê de ser.

Depois levantava-se, devagar…

e desaparecia do quadro, do jardim emoldurado pelos caixilhos de madeira da minha janela de escritório, porque o escritório, ao contrário daquilo que se diz, não tem janela (e isto só percebe quem é de perceber)

desaparecia do quadro,

verde descascado

uma natureza morta na qual ele, devagar

arrastando consigo um pouco de vida; um pouco da que ainda lhe restava e de boa vontade depositava ali.

Os olhos do banco levantavam-se para ele. Tristes. Naquele olhar triste que o bancos de jardim fazem quando os deixam sozinhos. Mas não lhe dizia nada. Não lhe pedia que não fosse, nem que voltasse. Não porque os bancos de jardim não falem, não. Mas porque são orgulhosos de mais para pedir. Para além de amuarem com muita facilidade. Mas passava-lhe depressa. No dia seguinte abria-lhe de novo um sorriso de tábuas verdes assim que o via vir, devagar, ao ritmo de quem há muito menosprezou a pressa e o seu sem porquê de ser.

Assim

todos os dias de um calendário que não conhecia domingos ou feriados. Assim, uma vida inteira dentro de uma vida esfarelada em mil bocados; em mil migalhas (…que importa) …as coisas iguais são sempre as mesmas.

Assim, até ao dia em que nenhum sorriso de tábuas verdes; nenhuma carcaça, nenhum pássaro agitado dentro da gaiola exclamando

- Senhor Polícia! Senhor Polícia!

porque

- Não se pode dar comida aos pombos.

Assim, até ao dia em que a natureza morta daquele quadro deixou de receber um pouco de vida; um pouco da que ainda lhe restava e de boa vontade depositava ali. Assim até ao dia em que o artista pintou por cima dele o lugar vazio da sua ausência. Assim, até ao dia em que o meu escritório uma loja de telemóveis de vigésima quinta geração e uma carcaça no meu bolso a caminho do jardim. Não aquele, o jardim de outros tempos, devagar, ao ritmo de quem há muito menosprezou a pressa e o seu sem porquê de ser.

Friday, September 15, 2006

Uma questão de vocação!

O senhor Mário a explicar-me matemática,

equações talvez

não sei dizer. Acho que nunca aprendi nada em matemática. Mas equações, talvez. É disso que trata a matemática, não é? Não sei… nunca aprendi nada em matemática. Mas o senhor Mário a explicar-me matemática, de cigarro na boca,

nunca tirava o cigarro da boca

para quê tirar o cigarro da boca se

tirar o cigarro, voltar a pôr o cigarro

na boca

o senhor Mário a descobrir-me a vocação sem querer, com gravidade na voz, como um Newton

com a cinza a cai-lhe do cigarro, para cima da mesa da marquise, sem gravidade, onde eu

talvez equações. Não sei dizer.

sem sacudi-la para o chão

a dizer:

- Eh pá, que linha tão direitinha!

Quando eu

a fazer simplesmente um risco, furioso, frustrado, para separar os exercícios,

equações talvez. Não sei dizer. Acho que nunca aprendi nada…

simplesmente um risco, furioso, frustrado

não para separar os exercícios, as equações talvez … mas porque não futebol no Domingo à tarde, como os outros que sabiam tanto de matemática como eu.

- Eh pá, que linha tão direitinha! - admiradíssimo - Nunca consegui fazer uma linha tão direita na vida!

E o senhor Mário com uma vida longuíssima, com tempo de sobra para futebol e matemática, enquanto eu, pouco tempo, muito pouco tempo. Porque o tempo que conta é aquele que passou e não o que ainda está para vir. Porque se eu morresse de fúria, de frustração, eu

menos tempo que o senhor Mário.

Cada incógnita um passe atrasado, cada algarismo um golo por marcar, cada sinal de igual uma diferença incalculável no tempo que se apagava diante da minha borracha exausta porque

… nunca aprendi nada em matemática.

ainda que

o Senhor Mário, com uma vida longuíssima, com tempo de sobra para futebol e matemática. Equações, talvez. Não sei dizer. Mas isto sou eu a fazer contas ao tempo e contas não é comigo. Acho…

um risco

muito pouco tempo

E o senhor Mário com uma vida longuíssima. Admiradíssimo, como eu em relação aos exercícios que ele conseguia estender ao longo da folha, numa sequência interminável de confusão, um caos a expandir-se no universo da folha, como a massa dos rissóis da minha tia Adelaide.

Acho que a minha tia Adelaide fazia rissóis. Não sei dizer. Acho que nunca…

Colocar números e letras à sorte na folha também eu sou capaz de fazer, na mesma lógica de raciocínio que a minha avó em relação às cantoras de ópera ou do meu avô em relação aos quadros do Picasso.

Aquilo também eu sou capaz de fazer.

- Eh pá, que linha tão direitinha! - admiradíssimo

de cigarro na boca

para quê tirar o cigarro

- Faz lá outra. - expectante. Como se estivesse de repente diante de um génio.

- Faz lá outra.

numa inversão de papéis

e eu a fazer outra, igualmente direita

igualmente

- Eh pá! - envolto no fumo do cigarro, de olhos pequeninos, talvez porque o fumo do tabaco

e os exercícios a ficarem por ali, porque algo mais interessante

- Eh pá!

do que

equações, talvez. Não sei dizer. Acho que nunca aprendi nada em matemática.

porque algo mais interessante

linhas direitas; um risco, furioso, frustrado, para separar os exercícios

equações

e eu a entusiasmar-me e a fazer mais uma e outra enquanto

- Eh pá!

uma e outra, até que

a limonada da dona Helena

- Limonada para os meninos! - doce, apesar do limão. Doce porque a voz da dona Helena

- Limonada para os meninos!

porque a voz da dona Helena a tratar-me por você. Sempre por você, ainda que eu apenas treze anos

sempre

- Tome. - de copo na mão, de limonada

doce

sempre por você, apesar do limão

ainda para mais agora que eu era um génio do traço

- Tome!

como se dissesse

- Senhor

E eu a responder com um traço

não com um obrigado

apenas um traço em jeito de autografo para a posteridade.

Com o senhor Mário

- Ó Helena, olha lá para isto. Este gajo é fantástico!

embora a dona Helena sempre

você

apesar de

- Este gajo… - ou do limão.

- Nunca consegui fazer uma linha tão direita na vida! - até ao fundo do copo

até amanhã

até ao saltar do muro para o meu quintal… muro que parecia agora não ter mais de um palmo de altura, porque eu

- …fantástico!

- … tão direitas…

a esquecer-me do futebol, da matemática; a sentar-me na mesa da sala a replicar os exercícios, um atrás do outro, até a minha avó

- Anda lanchar.

não você

- Anda lanchar.

agora que eu era um génio do traço

não você

somente

- Anda lanchar.

e eu

- Já vou. Estou a acabar uns exercícios. - e nada era mentira. Uma folha, cinco, sete, cheias de linhas

- … tão direitas…

já não frustrados, porque eu

- …fantástico!

porque a minha vocação… descoberta.

Passaria a vida a fazer riscos direitos e não precisaria de matemática para nada, nem do futebol. Pois há tanta ciência num risco direito, como no cálculo de integrais, ou o senhor Mário nunca teria dito

- “Este gajo é fantástico!”

Wednesday, August 02, 2006

Só quem ama…

- Conta-me uma história de encantar!

E uma história a surgir da tua boca, amorosa, para mim.

Uma história, e não

- Uma história?!

ou

- Que história é que queres que te conte?

como um

- Se tem mesmo de ser! - silencioso

mas apenas

- Era uma vez…

… amorosa, para mim.

A encantar-me.

- Era uma vez…

…da tua boca…

porque todas as histórias começam assim, ou não seria histórias de encantar, como as que

- Há muito, muito tempo…

E uma história a surgir da tua boca, amorosa…

Simplesmente porque eu

A encantar-me.

Tudo era simples no tempo em que eu

- Conta-me uma história de encantar!

e tu ma contavas tão simplesmente.

…amorosa…

Não era submissão, como os submissos poderiam julgar, mas amor. Só quem ama conta histórias de encantar quando

- Conta-me uma história…

Quem é submisso conta carneiros - eventualmente em forma de histórias - para entreter o tempo, para encantar o sono.

Não amaria Scheherazade o rei Shahryar?

Se não amasse ter-lhe ia contado carneiros - eventualmente em forma de histórias - para entreter o tempo, para…

carneiros

mas não histórias. Só quem ama conta histórias de encantar.

- Era uma vez…

não

- Há muito, muito tempo…

- …uma vez…

A nossa vez

A vez em eu te dizia

- Fica nua, que te quero demasiado!

E a roupa a cair-te aos pés, sobrando, num sorriso dado, e não

- Fico nua?!

ou

- Assim, sem mais nem menos?!

como um

- Se tem mesmo de ser! - silencioso

mas apenas

… a roupa a cair-te aos pés… num sorriso

Porque eu te queria, demasiado, e nada mais importava que tal. A roupa a cair-te aos pés, sobrando

e tu na minha direcção

num sorriso dado

Tudo era simples no tempo em que eu

- Fica nua...

não por submissão, como os submissos poderiam julgar, mas por amor. Só quem ama se despe quando

- Fica nua, que te quero demasiado!

Quem é submisso tira a roupa - eventualmente em forma de ficar nu - para seduzir o tempo, para encantar o sono.

Não amaria Scheherazade o rei Shahryar?

Se não amasse teria tirado a roupa - eventualmente em forma ficar nua - para seduzir o tempo, para…

mas não nua. Só quem ama fica nu. Tudo o mais é conversa. Única e exclusivamente conversa.

Nada disto é compreensível. Nada! Rigorosamente nada. E nada disto é explicável. Nada! Rigorosamente nada.

- Aninha-te, que quero ir-me!

E o teu corpo a moldar-se à forma natural, para mim, e não

- Aninho-me?!

ou

- Como assim?

como um

- Se tem mesmo de ser! - silencioso

mas apenas

a descobrir a nuca ansiosa,

suada,

Subindo os rins,

sem palavras (em silêncio).

Tu sabes,

fêmea amestrada pelo instinto!

Esticando os dedos até ao limite de si.

Até ao limite;

mesmo até ao limite.

Suspirando,

surpreendendo-se.

Inspirando fundo e prendendo-me o cheiro dentro de si…

libertando-o,

devagar,

devagar,

devagar…

Abandonando-se num gemido e arrepanhando o leito como um gatinho a mamar.

Derretendo-se!

Tudo era simples no tempo em que eu

- Aninha-te!

não por submissão, como os submissos poderiam julgar, mas por amor. Só quem ama se aninha quando

- Aninha-te que quero ir-me!

Quem é submisso ajoelha-se - eventualmente em forma de aninho - para rezar ao tempo, para adorar o sono.

Não amaria Scheherazade o rei Shahryar?

Se não amasse ter-se-ia ajoelhado - eventualmente em forma de aninho - para rezar ao tempo, para…

mas não aninhado. Só quem ama se aninha quando

…nada disto é explicável. Nada! Rigorosamente nada.

Saturday, July 15, 2006

...por favor, faz um esforço!

O salão cheio de convidados e sorrisos cínicos, ou sinceros, não sei bem. Nunca soube distinguir.

O jantar não estava mau e a Guida estava linda, maravilhosa, um arraso.

- Estás linda!

- Maravilhosa!

- Um arraso!

Duas pedras de gelo a derreterem, como a minha paciência, no copo de whisky que o António

- Toma Miguel. É assim, não é?

Era assim, sim.

Nunca tive estomago para rendez-vous e croquetes, mas a Guida

- Miguel, por favor, faz um esforço!

E eu a fazê-lo, por que a Guida

-... por favor...

Estava farto de intelectualismos e críticos de arte!

- É o Bernardo Vilanova, crítico de arte.

Que raio de merda é um crítico de arte? – eu a pensar.

Que raio de merda é um crítico de arte? – no meu rosto enjoado pelo apertar gelatinoso da sua mão “sensível”.

- É duma sensíbilidade!

Uma não sei quantas a comentar para a Guida ou para si mesma, não sei bem. Nunca soube distinguir.

- Chegou ontem de Milão onde esteve a inaugurar uma galeria. – a Guida para mim.

- Cada dia um vernissage! – nos seus lábios “sensíveis”.

E eu a cagar-me para cada dia dele. E eu farto de... e críticos de arte! A arte não é possível de ser criticada. Só é possível ser amada ou não. A arte não se pode mudar, trasformar, melhorar, piorar. Mas nada disto lhe disse. Porque isso seria adiantar conversa e eu

a cagar-me para cada dia dele; para cada opinião.

- É o Bernardo Vilanova.

- Muito gosto. – sem qualquer entusiasmo na voz.

- Crítico de arte.

- Hum!

- Muito gosto. – porque a Guida

- Miguel, por favor, faz um esforço!

Por isso eu

- Muito gosto. – ainda que sem qualquer entusiasmo na voz.

O sofrimento é uma lesma cansada que se arrasta sem vontade. 23:47, e ainda agora acabou o jantar.

… não estava mau e a Guida estava linda, maravilhosa, um arraso.

- Estás linda!

- Maravilhosa!

Ponham-me uma cruz às costas, coroem-me a paciência com espinhos, mas andem depressa com o tempo.

- Então Miguel, quando é que sai outro livro? – um amigo de faculdade da Guida. Luís, ou Angelino, não sei bem. Nunca soube distinguir

E eu com vontade de

- Estás mesmo interessado em saber, ou perguntaste apenas para meter conversa?

apenas a dizer

-Um dia destes. - sem qualquer entusiasmo na voz.

- Um dia destes.

e não

- Estás mesmo interessado...

porque a Guida

- Miguel, por favor...

23:58, e uma taça de champanhe no lugar do copo de Whisky, sem pedras de gelo, sem paciência, apenas bolhinhas, sensíveis, como a mão gasosa do crítico de arte.

- É o Bernardo Vilanova...

Estou-me a cagar para isso! Eu a cagar-me para cada dia dele; para cada opinião. Mas apenas

- Hum! – cínico, ou sincero, não sei bem. Nunca soube distinguir.

Apenas

- Hum! – porque a Guida

- Miguel...

Estou-me a cagar para o Bernardo e para o Vilanova, ainda que somente

- Muito gosto. – ainda que sem qualquer entusiasmo na voz. E uma taça de champanhe no lugar do copo de whisky que o António

- É assim, não é?

no lugar da cruz, ou da croa de espinhos, não sei bem. Nunca soube distinguir.

Era assim, sim.

Uma taça de champanhe, falso ou genuino, não sei bem. Nunca soube...

Uma taça de champanhe, porque estas coisas é sempre com champanhe que se brindam. Ainda que eu preferisse uma cruz; uma croa de espinhos.

Sempre achei que a arte devia ser vendida na rua. Porque toda a arte é vadia, vagabunda. E não é arte se não o for. Na rua porque é selvagem e não num jardim artológico.

- Parabéns Guida! A exposição está fantástica!

- Parabéns Miguel! Por acréscimo. Por cortesia. Por educação, maquilhada, ou natural, não sei bem. Nunca soube distinguir.

- Puta que vos pariu!

Num avolumar de vontade. Ainda que apenas

- Obrigado. – sem qualquer entusiasmo na voz.

- Obrigado.

Porque a Guida

- Miguel, por favor, faz um esforço!

Acorda!

De repente, parece que acordei de um sonho e tinha vinte e três anos. O calor de Julho bateu-me nas ventas dormentes como uma lambada de Deus, à saída da faculdade, como que a dizer:

- Acorda!

Tinha acabado de defender o meu projecto de fim de curso e estava formado. Um senhor engenheiro! E agora? Senti tudo menos alívio. Sentia-me como se de repente uma desconhecida me abordasse na rua com uma barriga de sete meses a anunciar:

- Parabéns, vais ser pai!

Enquanto eu, de olhos abertos, a fazer força nas pálpebras para as descerrar. Porque não se pode acreditar de olhos fechados.

Parece que até já estava a ver o meu pai, pondo-me a mão vaidosa em cima do ombro

- Agora sim, vai começar uma vida nova! Eu com a tua idade…

e desfiar de um rosário ladainhado, ouvido vezes sem conta. Por minha conta, agora! Nessa noite mal dormi e tive sonhos recorrentes de angústia, como se estivesse sozinho no meio e uma medina árabe e não soubesse como de lá sair, nem como falar com os transeuntes que, como fantasmas, passavam por mim sem me ver, embora eu

- Desculpe, como é que eu saio daqui?

embora eu, não em árabe

- Tenho um exame importantíssimo e já estou atrasado!

embora eu, apenas a dormir.

Nunca nada na vida fiz sozinho. Nem a minha própria sexualidade me foi permitida descobrir por mim. O primeiro orgasmo na mão de uma prima mais velha, numas férias em Armação de Pêra; uma sensação de nascimento e morte ao mesmo tempo, e o constrangimento no rosto da minha mãe, na manhã seguinte, ao fitar-me os manchados calções do pijama.

Lembro-me do meu primeiro dia de aulas – dos meus pais agarrados às minhas mãos minúsculas, como se tivessem medo de se perder – e do sorrido batonado da minha mãe ao portão do liceu, no meu último dia de secundária.

- Queres que te deixe na faculdade? - no dia da matricula, o meu pai, numa tentativa desesperada de esticar um pouco mais a tripa umbilical.

Sempre presentes, sempre colados à biqueira dos meus sapatos, impedindo-me de cair e de andar.

Lembro-me da minha primeira borbulha de acne e das mil na manhã seguinte, numa odiosa colecção estampada na caderneta horrível da minha cara. Enquanto a minha mãe:

- É normal filho! - e eu a ver na cara dos meninos bonitos da escola que era tudo menos normal.

A primeira lâmina de barbear, oferecida pelo meu pai aos quinze anos, seguida do incontrolável discurso:

- Eu com a tua idade já tinha barba!

Com a minha idade ele já era o máximo! E a revolta dentro de mim a querer soltar-me a língua para lhe perguntar:

- Então e o que é que aconteceu para ficares assim?

E a não dizer nada, ainda que com vontade de

- Então e o que é que aconteceu…

E uma dualidade enorme debatendo-se dentro de mim. A raiva a puxar-me pela língua; o medo a pôr-lhe freio.

A minha mãe a explicar-me o ciclo menstrual, garantindo-me que:

- As mulheres apreciam um homem que compreenda o funcionamento da sua intimidade.

Ao passo que o meu pai:

- Da primeira vez custa-lhes um bocadinho, mas é mais fita que outra coisa!

O que me fez passar mais tempo a falar de trompas de Falópio e ovulação do que propriamente gozar a minha primeira vez, com uma rapariga que percebia mais de sexo que os meus dois pais juntos. Percebi-o quando um

- Não!

admirado, seguido de um admirado

- Porquê?

quando lhe perguntei

- Doeu-te?

Que vergonha!

A minha primeira bebedeira e eterna jura falsa de não repetir. O chegar a casa aos trambolhões com o universo às cambalhotas dentro do estômago e a desculpa enjoada na manhã seguinte de que devia ter comido algo estragado, com a minha mãe nos meus ouvidos de cristal:

- Ai coitadinho!

E o meu pai:

- São essas porcarias que vocês agora comem para aí!

porque o menino deles não bebia!

A minha primeira ganza, segunda, terceira e o cair para o lado a rir porque:

- Isto não bate nada!

A ida a inspecção militar e o medo de ter de rapar o cabelo; de botas no lugar dos meus sapatinhos de vela; do meu quarto transformado em caserna e a voz doce da minha mãe num despertar de cornetim:

- Mancebo Rodrigues!

em vez de

- João. Acorda filho!

E de repente, já engenheiro, sem noção de coisa nenhuma, sem vontade de coisíssima nenhuma, além de correr a esconder-me de novo no útero dormente da dona Júlia. Engenheiro de sonhos de papel. Engenheiro de vontades castradas, uma após outra, como cepas ao cair do Inverno. E eu a querer adormecer e acordar com cinco anos, num tempo em que ainda não engenheiro, ainda não calções manchados de vergonha, ainda não

- Não! Porquê?

ainda não

- Com a tua idade…

Eu a querer adormecer e acordar com cinco anos, após a sesta, para o lanche de bolachas com doce de morango, com a voz doce da minha mãe nos meus ouvidos pirralhos:

- João. Acorda filho!

Plim

A moeda a cair

plim

no som que as moedas fazem, ou parece que fazem

como num desconjuro

plim

a moeda

a cair

na caixa invisível

e a cortina da cabine a subir devagar, a despir devagar a bailarina que

devagar

desapertando os atilhos da pouca roupa de trabalho.

Um gingar de corpo fingido

o gingar

o corpo não, que esse, bem sincero, graças a Deus e aos seus ricos paizinhos, abençoados sejam.

Um gingar de corpo, fingido, em movimentos de natação sincronizada, sem água nem vontade. Um rodar de cabeça, uma seara de trigo levantada por um vendaval, apenas na cabine, inviolável, unicamente acessível à custa de

plim

na caixa invisível, porque a cortina cansada a procurar repouso.

Plim

não como um desconjuro; como um reencontro feliz de moedas conhecidas.

Uma sera de trigo num rodopio de

- Trabalho é trabalho!

E uma mão a procurar o bolso

a procurar no bolso

não as moedas, que ainda agora caiu uma

plim

outra coisa

enquanto a seara de trigo a chegar-se à vitrine do talho

agora apenas um animal para abate, não uma bailarina de corpo sincero, graças a Deus e aos seus ricos paizinhos, abençoados sejam.

A faca afiada

não no bolso

na mão segura

E o animal a mostras-se todo - por dentro e por fora -, a bater-se, a apertar-se; a encolher-se, a esticar-se, sem mostrar os dentes, o mais importante.

E a faca num talhar de carne

Não no bolso

num deslizar de metal

plim, plim, plim

até que o animal exausto, a recolher, como a faca, romba de tanto esquartejar. Até que o animal a recolher ao curro e outro a sair para a arena. Maior, mais feliz, menos

- Trabalho é trabalho!

de corpo não tão sincero, graças a Deus e aos seus ricos paizinhos...

uma desconhecida a invadir-me a intimidade, e eu envergonhado porque

a faca

não no bolso

e eu envergonhado porque... diante de olhos estranhos…

a retirar-me também; a procurar qualquer coisa com um olhar clínico; a não procurar nada. Aliás, a procurar não encontar o olhar de mais nenhum outro comprador.

ainda que eles a desolharem do mesmo jeito

porque ali não havia gente

não havia ninguém, e o segredo a alma do negócio.

Assim, a retirar-me para a claridade do meio-dia, porque a hora de almoço quase no limite, enquanto nas minhas costas, um preto de balde e esfregona na mão, de cabine em cabine, a limpar restos de sangue que, como moedas

plim

pingados das facas num suspiro de morte

para o chão

plim

plim

plim.

Sunday, March 26, 2006

…carne de macaco e banana cozida

- Quando eu estive preso na Guiné… - o meu tio Ricardo à mesa do almoço, de cigarro preso na pontinha dos dedos, com a mão de lado, como se segurasse uma bandeja… - só nos davam carne de macaco e banana cozida!

E eu a saber que era mentira. E toda a gente a saber que era mentira, menos a minha avó, que durante quatro anos julgou o filho morto, embora apenas

- Preso, minha mãe! Nem queira imaginar! Um horror!

embora apenas em Espanha, com um catalão que conhecera no Algarve, um amigo (que nesse tempo os homens ainda não tinham namorados).

- Um horror!

E eu a saber que era mentira, porque a minha mãe (ou talvez a minha tia para a minha mãe):

- Achas mesmo que o Ricardo esteve no ultramar?!

porque minha mãe

- Era uma autêntica mulher quando se maquilhava e vestia com as nossas roupas!

porque o meu pai

- Chamavam-lhe a Borboletinha da Ribeira!

porque a minha mãe (não a minha tia para a minha mãe)

- Coitado! Todos faziam troça dele! Não tinha um único amigo!

Até ao dia em que, na Praia da Rocha (não em Santa Margarida como todos pensavam), um catalão:

- Tienes fuego?

E o meu tio (não no quartel como todos pensavam), num dancing-bar da Portimão, de braço esticado, com a arma de fogo na mão (não a G3 como todos pensavam); um isqueiro de prata que lhe havia dado um outro amigo (que nesse tempo os homens ainda não tinham namorados).

- Coitado! Todos faziam troça dele! Não tinha um único amigo!

Até ao dia em que (na manhã seguinte) o novo amigo, (que nesse tempo os homens…) a pedir-lhe

- Vien comigo para Barcelona!

Até ao dia em que

- Fui mobilizado para a Guiné!

à hora do jantar (como agora à hora do almoço), mas sem o cigarro preso na pontinha dos dedos, com a mão de lado, como se segurasse uma bandeja, porque o meu avô ainda vivo e

- Eu que sonhe que vocês fumam!

Até ao dia em que uma choradeira enorme porque:

- Ai, que o meu rico filho vai para a guerra!

Ainda que apenas para Barcelona. Ainda que apenas com um amigo (que nesse tempo…).

- Coitado! Todos faziam troça dele! Não tinha um único amigo!

E, em menos de uma semana, no comboio para Lisboa, onde dias depois um barco o enviaria, não para o ultramar, com outros tantos da sua idade (como toda a gente pensava), mas para Barcelona, apenas com um amigo (que nesse tempo os homens ainda não tinham namorados).

- Chegava a estar aos três dias sem uma pinga de água! - e uns lábios em forma beijo a sorverem ao de leve o filtro preso na pontinha dos dedos, numa mão de lado, como se segurasse uma bandeja, porque o meu avô há muito falecido e já não

- Eu que sonhe que vocês fumam!

- Três dias! Imaginem vocês!

enquanto a minha avó a emocionar-se e a apertar-lhe a mãozinha gorda aninhada sobre um delicado cruzar de pernas.

- Eram uns selvagens! Não sei como não morri!

E eu a saber que era mentira. Não porque a minha mãe (ou a minha tia para minha mãe), mas porque um dia, um diário, sobre os meus joelhos esfolados de miúdo traquina, a abrir-se em segredo, como uma caixa de Pandora e lá de dentro

“Esteban! É assim que ele se chama. Que nome meu Deus! Que homem! Pediu-me lume a noite toda. E de cada vez que se aproximava, de cigarro nos dedos, eu tremia todo, como se um “fiscal de isqueiros” ou um polícia

- A licença do isqueiro?

E não apenas

- Tienes fuego?

Como se um “fiscal de isqueiros” ou um polícia

- Ai não sabia?! Decreto-lei nº 28219!

E não apenas

- Muchas gracias!

Não tirou os olhos de mim a noite toda. Eu tremia por dentro, como se um “fiscal de isqueiros” ou um polícia

- São duzentos e cinquenta escudos de multa!

E não apenas

- Es mui guapo!

Que loucura, meu Deus!”

- Não sei como não morri! … carne de macaco e banana cozida! Um horror!

E eu a saber que era mentira. Não porque a minha mãe (ou a minha tia para minha mãe), mas porque um dia, um diário - segundo, terceiro, quarto - sobre os meus joelhos

“Como foi que ele me pode fazer uma coisa destas?!” Cabrão! Cabrão! Cabrão! Mil vezes cabrão! Hijo de puta! Cabron! Com um balarinozinho de merda! Filho da puta, cabrão! Mil vezes cabrão! Quatro anos da minha vida…Paneleiro de merda! Filho da puta, filho da puta, filho da puta…”

- Não sei como não morri! Um horror!

porque um dia, um diário - segundo, terceiro, quarto - sobre os meus joelhos

“Foi Deus que não quis que eu morresse! Foi o pior dia da minha vida! Nunca me tinha sentido tão só! Nada valia a pena e… Cheguei ao hospital já quase sem vida! Se não tivesse sido a senhoria (que todos os dias me batia à porta a reclamar a renda em atraso)…”

- Se não tivesse sido a preta que nos levava a comida (se é que àquilo se podia chamar comida), a apiedar-se de nós…

“Se não tivesse sido a senhoria (que todos os dias me batia à porta a reclamar a renda em atraso)…”

- Hoje não estaria aqui! - o meu tio Ricardo à mesa do almoço, de cigarro preso na pontinha dos dedos, com a mão de lado, como se segurasse uma bandeja, porque o meu avô há muito falecido e já não

- Eu que sonhe…