Thursday, April 30, 2009

Diálogo Monológico

- Estou?
- Sou eu.
- Então se sabes que sou eu podias pelo menos fingir e ser simpático!
- Não, não estou a começar, André. Infelizmente!
- O que eu quero é saber como é que é logo. Ficaste de me dizer qualquer coisa, lembras-te?!
- Estás sempre muito ocupado. Só os outros é que não fazem nada.
- Que humor é que queres que eu tenha, André? Estive a tarde toda à espera que me ligasses para combinarmos as coisas. Não me posso comprometer com as pessoas sem saber como é que é contigo, e tu, nem ai nem ui. E ainda tens o desplante de me dizer, com um arzinho todo calmo, que estou com um “humozinho que vai lá vai”.
- Pelo amor de Deus, André! Agora digo-te eu, não comeces. Como é que é afinal?
- Ó André, caramba! Como é que é o quê? Vamos ou não vamos?
- Ainda tens de ver? É que só podes estar a brincar comigo!
- Se tu te lembrasses é que eu me admirava.
- E quando é que sabes?
- Daqui a uma hora!
- Eu disse à Sónia que o mais tardar às quatro horas lhe dizia alguma coisa. São três e meia.
- Então se está bem, vamos, porque é que é que disseste que só daqui a uma hora é que sabias?
- E agora já não precisas de falar com o Director?
- Vê lá, não arranjes problemas por causa de mim!
- Não, não estou a ser chata, André! Tu é que te esqueces das coisas que combinas comigo e depois e vens com desculpazinhas esfarrapadas, como os miúdos.
- Vá, esquece! Não vale a pena estar agora a discutir isso. Há-de ser sempre a mesma coisa!
- Como é que é, apanhas o Ruben e deixa-lo na tua mãe?
- Ó André, sabes perfeitamente que estou sem carro.
- Não te lembraste? Novidade!
- Sai às cinco. Nem sequer sabes a que hora a que o teu filho sai do colégio!
- Não estou a pegar por tudo e por nada, André. Agora se tu achas que estares-te nas tintas para tudo o que não tenha a ver directamente contigo é normal, então se calar estou a pegar por tudo e por nada.
- Claro, falamos depois! Contigo é sempre depois!
- Sim, vá, não interessa. Apanha mas é o teu filho e deixa-o na tua mãe. Ah, e avisa-a que ele dorme lá hoje. Mas não te esqueças, senão já sabes como é.
- Como é quê? Parece tu que não sabes como é! Ah que Deus que nunca me dizem para onde vão, quando é que vêm, e fica aqui o menino, e não sei se o deito, se espero por vocês. Ninguém se preocupa comigo; só sirvo para tapar buracos… nhanhanha nhanhanha…
- Oh! Não é verdade, queres ver?
- Ó André, não estou nada em dia não. Que maçada!
- É mentira o que eu disse? Parece que não conheces a tua mãe.
- Pronto! Mas eu disse que a minha é melhor? Quem parece que está a querer embirrar és tu.
- Claro! Não fosse sempre eu a começar! Eu disse apenas para deixares o Ruben na tua mãe e para a avisares de que o neto dela dorme lá hoje, mais nada.
- O que eu disse foi que, se não lhe dizes ela fica preocupada.
- Pronto, não foi isso que eu disse. Esquece. Tens razão.
- Sim, sim… Se não tivesses é que eu me admirava!
- Bem, esquece lá isso. Avisa-a, é só o que eu te peço. Ah, e já agora, se não for abusar muito do meu marido, passa na lavandaria e apanha-me o vestido que lá deixei.
- É nas amoreiras. Conheces outra?
- Sim, no centro comercial.
- Não, não precisas de nenhum talão. Diz que é para mim, elas sabem.
- Não, não quero mais nada. A não ser que me apanhes às seis.
- Espero lá em baixo.
- Mas custa-te muito dar a volta? Não vens de carro?
- Oh!
- Toda a gente sai daqui, só para ti é que é muito trânsito.
- É só porque estou carregada. Tenho uma caixa de dossiers, a pasta, a mala, o portátil… Se achas que são só dois passinhos com isto tudo às costas.
- Mas se te custar muito, diz, que eu apanho um táxi. Vê lá, não apanhes um esgotamento nervoso no trânsito por minha causa.
- É em Cascais.
- Eu já tinha-te dito, André.
- Que culpa tenho eu que a Sónia e o Marcelo vivam em Cascais, que seja hora de ponta, sexta-feira e esteja tudo a sair de Lisboa?
- Olha, se é para isto, mais vale dizeres de uma vez que não queres ir.
- Parece! São só complicações!
-Pronto, está bem.
- Então vá.
- Sim, às seis.
- Até logo.

Reflexo

E a vir-me à memória, nós
agora que te foste embora
nós na roulotte do teu tio
nós em Armação de Pêra
nós na casa de campo do Paulo e da Marta
nós na Arrifana
nós no banco de trás do carro dos meus pais
como a Anita no Jardim Zoológico
a Anita no Parque
a Anita na Floresta
nós
a vir-me à memória, nós
agora que te foste embora
porque de repente
ou eu a achar que de repente
(agora que te foste embora)
os meus olhos no teu espelho
à procura de restos de ti
uma sombra
uma ponta de cabelo
um resto de brilho dos teus olhos, que tantas horas ali pousaram
(que o espelho é o poleiro dos olhos)
tristes
tantas horas ali
interrogativos
à procura de ti
como eu agora que te foste embora
à procura de ti
um resto
alguma coisa esquecida
(tu que eras tão distraída…)
alguma coisa te há-de ter ficado para trás
alguma coisa deves ter esquecido entre um retoque de batom e uma escovadela de rímel…
alguma coisa…
desespero
(não o substantivo, o verbo)
desespero
alguma coisa
mas nada
apenas eu
o mesmo que nada
a minha cara transtornada pela tua ausência.
Onde será que os espelhos guardam os reflexos?
Pergunto-lhe, aos gritos
desgraçado
desespero
(… o verbo)
desespero
arranco-o da parede, chocalho-o, louco…
tens de cair
tens de cair
tens de cair
alguma coisa tua
uma sombra
uma ponta de cabelo
um resto de brilho dos teus olhos…
Por Deus, alguma coisa!
um resto
um sinal de ti.
Mas nada de coisa nenhuma
apenas eu
o mesmo que nada
a minha cara transtornada pela tua ausência.
Onde será que os espelhos guardam os reflexos?
pergunto
aos gritos
atirando-o ao chão
desgraçado
num revolver de cacos
sou mil pedaços, agora
que te foste embora
mil pedaços
mil nadas
mil caras transtornadas pela tua ausência
espalhados
dentro
fora de mim
as caras, os cacos
transtornados
fora de si
dentro
fora de mim
louco
os dedos em sangue e…
nada
agora que te foste embora
apenas eu
o mesmo que nada
em mil pedaços.
Não creio em superstições absurdas: sete anos de azar. Sem ti, a vida toda. Não me chegaria a vida toda a partir espelhos para cobrir o azar que é não ter-te
alguma coisa tua
uma sombra
uma ponta de cabelo
um resto de brilho dos teus olhos…
alguma coisa tua…
Por Deus, alguma coisa!
um resto
um sinal de ti
alguma coisa esquecida
(tu que eras tão distraída…)
alguma coisa te há-de ter ficado para trás
alguma coisa deves ter esquecido entre um retoque de batom e uma escovadela de rímel…
alguma coisa
alguma coisa

Sete anos de azar? Quem dera sete anos de azar e depois
tu
alguma coisa tua de volta ao espelho
(a outro espelho)
uma sombra
uma ponta de cabelo
um resto de brilho dos teus olhos…
Os dedos em sangue, mas de ti…
nem sombra.
Sete anos de azar
sete anos de desespero
(o substantivo, agora)
sete anos no meio dos cacos
sete anos na merda
sete anos no Tibete…
como a Anita no circo
a Anita no Ballet
a Anita na cozinha
uma espécie de penitência: sete anos da tua ausência; sete anões
ou lá como se diz anos grandes!
Sete anos. O que são sete anos!? Azar é não encontrar-te aqui, onde sei que estás
porque sei que estás
tens de estar
alguma coisa te há-de ter ficado para trás
que os reflexos, como os espíritos, não desaparecem da noite para o dia
alguma coisa
no meio dos cacos
mil lamelas de vidro salpicadas de sangue sob o meu olhar microscópico na procura de ti
caco a caco
dia a dia
(reflexo estilhaçado da nossa existência).
Eu sei que estás
ainda há cacos
de espelho
de mim
de nós
eu sei que estás
ainda há cacos
e enquanto há cacos há esperança.

Wednesday, April 01, 2009

Quando estamos carentes…

A Ana, nua, é uma mulher com movimentos de gata. Estica-se, rebola, ronrona e entrega-se num abandono manso que as palavras que conheço me não bastam para o explicar. Ana tem vinte e nove anos e quando não está na cama comigo preocupa-se com a idade. Não é muito bonita, tem sardas no peito magro, dedos compridos, púbis negra, ligada ao umbigo por um carreiro de penugem descolorada. Podia dizer que Ana é esguia, mas já lhe referi os dedos e a magreza do peito. Se não refiro mais é, talvez, porque Ana seja apenas isto. Insisto: se não refiro mais… apenas isto.
Embora pudesse encher a página com coisas de Ana… não o faço. Isto apenas me basta. E a quem lê… a quem lê tanto lhe dá, e mais espaço fica para compor como for. De Ana apenas mais três coisas: casada, mãe de um filho e minha amante.
Conhecemo-nos pela Internet. Facilitador de emoções e conversas
bonequinhos amarelos que falam por nós; uma flor, um “lol” e
um encontro na Sé
cafezinho discreto…
- Parece que nos conhecemos há muito tempo, já!
a Ana a dizer e eu a concordar.
Quando estamos carentes sentimos afinidade com um número muito maior de gente. Olhamos para alguém na rua que nos devolve o olhar e logo
- Parece que nos conhecemos há muito tempo, já!
E apesar de o saber
quando a Ana
- Parece que nos conhecemos há muito tempo, já!
eu a concordar
porque discordar é adiantar conversa e conversa não adianta nada.
De modo que

qualquer coisa que a Ana
- …, não achas?
eu
(que talvez nem achasse)
- Sem dúvida!
Porque quando estamos carentes concordamos com um número muito maior de gente. Olhamos para alguém na rua que nos devolve o olhar e logo
- Sem dúvida!
e daí a um encontro na Sé
cafezinho discreto
um pulinho
como dali para a minha cama
onde a Ana
nua
movimentos de gata
entregando-se
num abandono manso que as palavras que conheço me não bastam para o explicar
a garantir que
- Nunca tinha sentido isto antes.
Porque quando estamos carentes somos compatíveis na cama com um número muito maior de gente. Olhamos para alguém na almofada que nos devolve o olhar e logo
- Nunca tinha sentido isto antes.
porque quando estamos carentes a memória é uma coisa difusa, um suspiro de açúcar que engana a fome. Daí que
- Nunca tinha sentido isto antes.
e um olhar, um sorriso, um gesto parvo, uma carantonha, uma gargalhada, um abraço rebolado em lençóis adolescentes
e
- És tão parvo!
- … tão parva!
Porque quando estamos carentes achamos graça a um número muito maior de gente. Olhamos para alguém na dobra do lençol que nos devolve o olhar e logo
- És tão parvo!
- … tão parva!
em gargalhadas com vontade de infinito, porque nos sentimos apaixonados, já
tão certos, já, de que
- Acho que estou apaixonado…
- … apaixonada por ti!
Porque quando estamos carentes apaixonamo-nos por um número muito maior de gente. Olhamos para alguém na rua, na almofada, na dobra do lençol, que nos devolve o olhar e logo
- Amo-te!
prenhes de força, capazes de tudo
seguros da correspondência exacta entre o sentimento e a expressão
- Amo-te!
Porque quando estamos carentes amamos um número muito maior de gente. Olhamos para alguém no ecrã, que nos devolve um bonequinho amarelo, uma flor… e
- Amo-te!
“lol”
com a mesma facilidade com que
- Podemos encontrar-nos na Sé.
cafezinho discreto
e
num pulinho
movimentos de gata
sardas no peito magro, dedos compridos, púbis negra, ligada ao umbigo por um carreiro de penugem descolorada.
Não custa nada
um bonequinho amarelo, uma flor, um “lol”
e…
- Parece que nos conhecemos há muito tempo, já!
Afinal, quando estamos carentes sentimos afinidade com um número muito maior de gente. Olhamos para alguém na rua que nos devolve o olhar e logo
- Parece que nos conhecemos!?
- Há muito tempo, já!

Dez cêntimos

- Olhe, desculpe! Eu sou do Barreiro e fui assaltado. Vim aqui à Loja do Cidadão tratar do bilhete de identidade
que vou para Espanha trabalhar daqui a duas semanas
o cunhado de um primo meu, que vive na Suiça, tem um restaurante em Sevilha e arranjou-me lá trabalho
e como o B.I. estava quase a caducar, vim aqui tratar disso
que lá no Barreiro demora muito mais tempo.
Mas enganei-me na saída do metro
que eu não conheço muito bem Lisboa
e saí ali no Martim Moniz.
Andei às voltas, às voltas a ver se dava com isto, até que lá me resolvi a perguntar alguém.
Olhe, foi a minha desgraça!
Três tipos disseram-me que também iam para lá
marroquinos, ou não sei
que tinham de tratar de uns papeis e que se quisesse podia ri com eles.
Na minha boa fé lá fui.
Se eu soubesse!
Meteram-se por umas ruas estreitas e depois lá por uns becos…
e eu a achar aquilo esquisito
até que às tantas, viraram-se a mim e, olhe
marcaram-me todo
tenho aqui na perna, no braço…
E agora estou desesperado.
Roubaram-me tudo.
Até o telemóvel.
Que senão ligava ao meu cunhado
que ele trabalha ali para o Prior Velho, ou Sete Rios, ou o que é que é
e ele vinha-me buscar
mas nem sei o número de cor
que uma pessoa agora habitua-se a guardar tudo no telemóvel.
Sacanas!
Ainda para mais a minha sobrinha faz anos hoje.
Dois aninhos!
Olhe, tinha uma fotografia dela na carteia. Até lha mostrava. Mariana. Chama-se mariana. E eu… olhe
estou todo dorido, minha senhora. E tenho a roupa toda suja, até me rasgaram o casaco
Sacanas, pá!
Estes não apanha a polícia. Tá quéto! Agora e fosse eu, ou a senhora…
Eu ainda pensei ir à polícia! Mas neste estado? Iam mesmo acreditar em mim. Tenho umas dores neste braço que nem imagina, minha senhora.
Até tenho vergonha de estar aqui a incomodar as pessoas. Ainda hão-de pensar que é para droga. E neste estado. Eu pensava o mesmo! Mas não é minha senhora. Juro que não é. Pela saúde da minha sobrinha, que é coisa que mais amo nesta vida.
Mas estou desesperado. Estou aqui há mais de uma hora para arranjar isto, minha senhora: um euro e meio. Mas neste estado quem é que me ajuda? Se a senhora pudesse. São só dez cêntimos que me faltam, minha senhora. Dez cêntimos para o bilhete.

Gina

Gina
(já de si o nome é mau)
trabalhava a dias em casas particulares e a noites
(fins-de-semana apenas)
em casas… particularmente.
Cinjamo-nos ao que importa: a dias em casas particulares. Dois filhos: Berta e Lucas. Ambos mulatos
de pais diferentes
e ela
Gina
(já de si o nome…)
branquinha como um cadáver exangue. E como um cadáver, magra; peito nenhum. O rosto… nada de especial
aliás
(para vinte e sete anos)
muito mal tratadinho.
Numa orelha, nem um furo, na outra, uma colecção de argolas, aranhas, meias-luas, o diabo…
Calças de ganga ruças
sempre…
minto
quase sempre ruças.
Ténis grandes, tipo bota, e t-shirt branca com qualquer coisa estampada
sempre…
minto
quase sempre estampada
letras, figuras, abstracções, o diabo…
Perfume? Desodorizante, talvez. É capaz que, desodorizante. Agora que penso nisso, é capaz que, desodorizante
capaz de jurar que desodorizante.
Olhos baços. Apenas para enfeitar o rosto.
Gina
a dias
a noites
(fins-de-semana apenas)
… particularmente.
Berta e Lucas
pais diferentes
ambos pretos
mulatos os filhos
a garantir que
(ainda que se não possa provar)
Gina
(já de si o nome é mau)
um gosto especial pelo exótico
(exótico para nós, caucasianos descoloridos)
diria.
Fazia dias
(noites…
…particularmente)
que não aparecia pelo bairro. Os filhos
Berta e Lucas
ambos mulatos
de pais diferentes
de pais ausentes
dois dias em casa, fechados à fome.
Fazia dias
(noites…
…particularmente)
Que
Gina
(já de si o nome é mau)
que não aparecia
até que a notícia
no lugar das calças ruças
da orelha intacta
ao contrário dos braços, das pernas, das mãos…
nem um furo
a notícia a chegar primeiro que a colecção de argolas, aranhas, meias-luas, o diabo…
a notícia
num sprint de etíope esganado com fome
a passar pelos ténis
pela t-shirt
qualquer coisa estampada
letras, figuras, abstracções, o diabo…
dispensando perfume…
Desodorizante, talvez.
A notícia
num sprint de corcel pela encosta da Maria Pia
nomeando os perigos do desporto equestre
afirmando que quem se mete na equitação arrisca-se a cair do cavalo.