Thursday, September 30, 2010

A mania das palavras

Ao toque dos teus lábios no meu ombro descoberto, um arrepio
não um arrepio no estômago, na espinha, no ventre, sequer.
Como é que eu explico?
Surpresa. Acho que surpresa, apenas. Uma espécie de frio, de medo, de desconforto…
não bem frio, medo, desconforto…
Como é que eu explico?
Se calhar porque há muito tempo que nenhuns lábios no meu ombro. Se calhar não tanto os lábios. Mais o bigode, talvez. Possível até que um arrepio de cócegas. É isso, Marcelo! Um arrepio de cócegas. Como é que eu poderia sentir desconforto em relação a ti; uma espéciezinha de repulsa!? Claro que não!
É certo que estremeci. Parece que petrifiquei, quando a tua perna a subir pela minha até quase à cintura. Não estava à espera, só isso.
Tal como a mão na cova do meu braço
a descer devagarinho
como uma pedra de gelo a derreter sobre uma bancada inclinada
a agarrar-me o seio
todo
a apertá-lo…
Não bem um desconforto, um…
Como é que eu explico?
Quando os teus lábios
ou o bigode dos teus lábios
no silêncio das coisas moles
a pegar-se-me ao pescoço…
Como é que eu explico?
o cheiro acre do hálito…
Não entendas mal!
O cheiro acre de uma mistura de coisas que vão ficando da vida toda
(quem sabe se, a procurar bem, não acharia aí o cheiro do nosso primeiro beijo, a minha saliva de menina ingénua!?
Quem sabe!?)
Não entendas mal!
Talvez um acumular de palavras
sedimentadas entre os dentes
debaixo da língua.
A mania das palavras se esconderem debaixo da língua!
Se calhar é isso
o cheiro acre das palavras por dizer
palavras que sempre tiveste vontade, mas que a língua
- Venham cá! Onde é que vocês vão?!
Mais do que a coragem
a língua
- Venham cá!
a acumulá-las
até que
um cheiro acre de palavras mortas
e
se alguma se esgueirasse por entre os lábios adormecidos pelo palheto
logo o bigode
- Venham cá! Onde é que vocês vão?!
a absorvê-las
como ao vapor da comida
da sopa de nabiças
dos pastelinhos de bacalhau
(que eu nunca soube fazer como a tua mãe os fazia…)
que aí ficaram do jantar
(os meus, a que te foste habituando ao longo destes vinte anos)
sob a mistura do café e do tabaco
a São Domingos que não dispensas
- Um homem farta-se de trabalhar!
Pois está claro!
E daí o acre.
Donde mais?
O seio apertado, como um pombo apanhado de surpresa a meio da noite num parapeito da cidade
a fingir-se de morto
bico encolhido
uma espécie de frio, de medo, de desconforto…
não bem frio, medo, desconforto…
Como é que eu explico?
Uma espécie de.
A mão a largar o pombo
e o teu relógio a arranhar-me a barriga
não me queixo
não foi por mal
pouca luz debaixo da colcha
dois ponteirozinhos fluorescentes a alumiar caminho…
Como é que eu explico?
Não bem frio, medo, desconforto…
Como é que eu explico?
Uma espécie de.
E os meus olhos a fecharem-se
que a luz da tua mesinha de cabeceira a projectar uma sombra enorme nas minhas costas, nas portas do roupeiro. Quantos anos terá aquele roupeiro, Marcelo? Já era dos teus pais. Lembras-te? Não, não estou noutro lado. É que… Lembrei-me, só isso.
E o teu relógio a dar horas nas minhas as pernas
para cima e para baixo
como a mão da minha mãe quando eu caía
e ela
- Pronto, já passou.
para cima e para baixo
- Pronto…
o elástico dos interiores a afastar-se da pele
a permitir mais espaço ao relógio
dois ponteirozinhos fluorescente a indicar o caminho à tua mão, como duas lanternas no escuro
já não no tecido
já não na pele
numa coisa intermédia que não sei bem se eu ou não
e nisto a mão inteira a fazer-se encolher
um arrepio
não um arrepio no estômago, na espinha, no ventre, sequer.
Como é que eu explico?
Se calhar um desconforto. Sim, é capaz que um desconforto, mesmo
devia ter-me arranjado… Não estava à espera.
Eu sei que não te importas
é coisa rápida
além de que gostas de mim…
Não é, Marcelo?
ainda que as palavras debaixo da língua
numa mania que não se entende
a azedarem-te o hálito
palavras que sempre tiveste vontade, mas que a língua
o bigode
- Venham cá! Onde é que vocês vão?!
a absorvê-las
como ao vapor da comida
a sedimentá-las entre os dentes, debaixo da língua, num acumular acre de palavras mortas.
Eu sei que não te importas
é coisa rápida
mas o que é que tu queres!?

Não estava à espera…
Há muito tempo que nenhuns lábios no meu ombro, no meu pescoço, nenhum tique-taque no meio das minhas pernas
que o elástico dos interiores a afastar-se da pele
a permitir mais espaço
que uma mão inteira
delicada
se assim se pode dizer
a pegar, com cuidado, no pombo assustado de mim.
Não estava à espera…
O teu bigode a apagar-me os lábios
e o cheiro acre de uma mistura de coisas que vão ficando da vida toda, a luz dos olhos
como a colher de óleo de fígado de bacalhau que a minha mãe
- Laurinda Maria, não me faças fitas!
a apagar-me a luz dos olhos.
Não para imaginar outra coisa; para custar menos
mas por reflexo
por um jeito que me ficou desse tempo em que
- Está bem, está bem! Tem de ser, tem de ser, tem de ser…
a encolher a língua
colher na língua
língua na língua
a procurar palavras
- … Tem de ser, tem de ser, tem de ser…
a engolir o fígado de bacalhau
o bacalhau inteiro
a tua língua
mil cheiros
sabores
sopa de nabiças
pastelinhos de bacalhau
ou de fígado de bacalhau
- … Tem de ser, tem de ser, tem de ser…
Não uma espécie de repulsa. Um reflexo
um jeito que me ficou desse tempo em que
- Está bem, está bem!...
E nisto, um pouco mais de ti entre nós
crescente
o teu corpo a subir para cima de mim
a procurar encaixar-se entre as minhas pernas dormentes
como o pombo no parapeito
Não eu, Marcelo. As pernas. O dia todo na loja, de pé… Sabes como é?!
Mas tu a dares o jeito
ponta de colher a afastar os lábios
- Laurinda Maria, não me faças fitas!
e eu
- Está bem, está bem! Tem de ser, tem de ser, tem de ser…
de olhos fechados
e a colher
o espéculo dos teus dedos
a afastar os lábios
- Pronto! Já está! Estás a ver?! Não custa nada!
a voz da minha mãe nos meus olhos encolhidos
nos meus olhos fechados
- … Estás a ver!
- … Não custa nada!
a esperar pelo entretanto em que o desconforto
ou lá que nome lhe dar
abranda
em razão inversa à tua respiração arfante, cachorro a fungar pombos no parapeito de mim.
É só esperar um pouco
e depois até parece mais fácil
quase parece agradável
mais ou menos na altura em que tu estremeces
um arrepio
como eu ao início
mas diferente
e parece que paras de gostar de mim.
Eu sei que não, Marcelo.
As palavras é que…
Eu sei…
Uma mania que não se entende.
Afinal, um beijo na cabeça
como uma voz na infância
- Pronto! Já está! Estás a ver?! Não custa nada!
um beijo
na cabeça
aplauso ao cair do pano sobre o palco ensonado das minhas pernas
um beijo
antes da mão no interruptor me apagar
como um cheiro acre
a luz dos olhos
e a tua voz
na permissão censória do bigode
me dizer
- Até amanhã.
e reduzir o quarto ao silêncio acre das palavras mortas.

Saturday, September 25, 2010

Salmões no Tejo

Pesava dos olhos. Não pensava em nada.
Pensava no sono que me enchia a cabeça, como o azul intenso da manhã clara
céu e mar…
Não!
Não pensava em nada.
O Tejo enorme à minha frente
ou o Atlântico, já
naquele limbo misterioso que é a Cruz Quebrada
entroncamento entre dois rios e o oceano
onde a estação se confunde com a espera, e eu
com o banco enfadado
com o relógio dormente
com o horizonte deserto de comboios e gente
onde o tempo não passa e a vida se gasta toda
e onde apenas um albatroz na beira do telhado
que não há abutres neste Oeste
(há quem diga que albatrozes tão pouco)
(há quem diga tanta coisa)
na beira do telhado
com um olho posto no céu
no mar
no azul intenso da manhã clara
e o outro
que os albatrozes
como os abutres e os desconfiados
têm um olho para cada lado
o outro
nos restos de um velho a nascer na paisagem.
Vinha devagar
a arrastar os pés
zec, zec
no chinelar cansado
como se cada passo
um degrau e meio
avançando a passinhos de cego, arrastando a vida, forçando-a a mais um passo, mais um passo…
e a vida
agarrada aos pés
implorando-lhe que não
por misericórdia
que já chegava
que já não havia mais nada para andar
que estava cansada
que quanto mais andasse mais acabaria com ela…
Mas o velho
o pobre do velho
(que todo o velho é pobre)
confundindo
(como toda a gente a dada altura)
a vida com a morte
arrastava-se
(como uma presa mordida)
arrastando-a
cansada
implorante
- Pára! Por favor, pára! Senta-te, homem de Deus! Descansa! Não vês que acabas connosco?!
Mas o velho
o pobre do velho
(que todo o velho é pobre)
confundindo
(como toda a gente…)
a vida com a morte
mais um passo, mais um passo…
no zec, zec dos chinelos gastos
fugindo da vida como se da morte
vergado e lento
que a morte é uma cruz que se carrega às costas pela vida toda.
Cada passo mais um passo a menos. E a cada passinho lento mais longe da vida; mais próximo da morte
confundindo tudo
apesar da vida
- Pára! (…) Não vês que acabas connosco?!
o velho
surdo
(que todo o velho é surdo)
a arrastar as pernas para os braços da morte
como um salmão exausto, rio acima
pela orla do Tejo
e por mais que a vida
- Não há salmões no Tejo, homem de Deus!
o velho
o pobre do velho
zec, zec
passeio afora
rio acima
zec, zec
num barbatanear cansado
a deitar as guelras pela boca.
Na beira do telhado
o albatroz
que não há abutres neste Oeste
com um olho posto no céu
no mar
no azul intenso da manhã clara
e o outro
que os albatrozes
como os abutres e os desconfiados
têm um olho para cada lado
o outro
desconfiado
nos restos daquele salmão velho
porque em tantos anos de vida nunca um salmão no Tejo
desconfiado
a olhar os restos do velho que demorava a passar
como uma dor, uma angústia
no zec, zec, dos chinelos gastos
como os dias
gastos
de tanto
zec, zec
sem para onde ou remédio.
Demorou a passar
como uma tristeza, um desgosto de amor
mas já lá vai
salmão perdido a caminho de Albarracim
num zec, zec, de barbatanas gastas.
Demorou a passar
como uma pena de quinze anos, como o último dia antes das férias
como a vida toda que é um instante
espaço morto entre duas estações
Cruz Quebrada – Cais do Sodré
mas que passa, todavia
como um par de chinelos rio acima
num zec, zec arrastado a caminho de Albarracim.
O Tejo enorme à minha frente
para lá das grade que o separam da estação onde o comboio nunca mais chega do Atlântico para fazer paragem naquele limbo misterioso e levar-me de volta a Lisboa, que o tempo passa sem um homem se dar conta, e qualquer dia é um dia qualquer
que já não importa
pois cada passo
um degrau e meio
a arrastar a paisagem
num zec, zec miudinho
que já não leva a muito longe
e desperta o instinto do albatroz
(que há quem diga não haver por estas latitudes do mundo)
com um olho posto no céu
no mar
no azul intenso da manhã clara
e o outro
desconfiado
no gesto lento
no passo gasto
à espera do instante exacto de picar o voo
que ele afinal, há mais salmões no Tejo do que aquilo que se pode imaginar.