Thursday, February 02, 2006

Sim ou não?

- Costumas pensar em mim? - perguntou-me ele numa saída para o almoço a meio do corredor onde íamos sozinhos.

- Quê?

- Perguntei-te se costumas pensar em mim?

Eu tinha ouvido a pergunta, claro, mas não queria acreditar, ou melhor, não queria que a tivesse feito. Mas já que a fizera e, pior ainda, que lha havia feito repetir, tudo quanto queria era que um espaço infinito se abrisse de repente entre nós dois.

- Como assim? - fiz-me de desentendida.

- Se costumas pensar em mim?

- Eu ouvi a pergunta!

- Então porque é que não respondes?

- Porque não estou a perceber?

- Esquece! - disse-me ele, encolhendo os ombros, como é hábito nos homens quando querem ficar “por ali” numa conversa inconveniente.

- Não, mas explica-te! - insisti, em direcção do elevador.

- Esquece! - repetiu ele, andando ao meu lado, mexendo no telemóvel cúmplice, que entretanto havia tirado do bolso das calças sob o pretexto, talvez, de ver as horas.

- Então mas porque é que perguntaste aquilo?

Para quem não queria que aquela conversa tivesse começado, estava-lhe a dar corda demais. Mas como agora era ele o peão, senti que podia abrir um pouco a guarda ao rei. Todavia, a minha esperteza era igual à sua e não houve grande tempo para preparar a defesa: era de novo a sua vez de jogar.

- Fiz-te uma pergunta simples, e tu entendeste muito bem! Não precisavas de tempo para responder. Era sim ou não. Mas já vi que sim, que pensas, caso contrário terias dito que não, ou então, dado a resposta típica das mulheres em situações embaraçosas: - “Tás parvo?!”.

Não sabia o que dizer e, apesar de me irritar, como a todas as mulheres, a designação colectiva, era exactamente isso que me ia saindo.

A seta indicava que o teleporte dos nossos dias não haveria de demorar. De repente, o ar do corredor tornou-se duas vezes mais quente e as suas palavras eram pinceladas rubras nas minhas bochechas claras.

- Mas esquece! - disse pela terceira vez, diante do meu mutismo embaraçado.

- Esquece o quê?! O que é que estás a insinuar? - perguntei-lhe eu toda da cor das minha bochechas, como se um pouco de ira pudesse dar-me razão, tirar a dele ou disfarçar o caso.

Tlim… as portas do elevador a dispensarem palavras mágicas para se abrirem de par em par. E nós ali-babacas, a dois passos um do outro, dentro da caixa mágica, quando um novo tlim nos meus ouvidos fechou por completo aquela câmara frigorifica avariada. O ar mais quente ainda; as minhas bochechas mais rubras ainda e o silêncio a acelerar na razão inversa do elevador. Eu olhava para as minhas mãos. Ele, não sei para onde olhava. Nunca me tinha sentido tão apertada na vida. Um terceiro tlim; um solavanco; uma parede imóvel à nossa frente e uma chama silenciosa a queimar-nos vivos dentro daquele cubo mágico sem solução à vista.

Claro que pensava nele! Claro que ele sabia disso, ou não me teria feito a pergunta que fez! Claro que sim, ou eu ter-me-ia irritado de imediato assim que o seu dedo fez parar o elevador! Claro que sim, ou teria resistido à investida dos seus lábios gulosos na direcção dos meus! Claro que sim!

Nove andares e meio separavam-nos do restaurante do rés-do-chão, onde o resto da equipa já estaria a pedir o prato do dia, como de costume. Nove andares e meio; nove minutos e meio… nove semanas e meia.

Um esmagar de lábios incandescentes, contra o cinzeiro do desejo e a prova irrefutável no reflexo do espelho. Começava o filme, e nem banda sonora faltava: uma desenxabida música de elevador. Que raiva, ser tão fraca! - pensava a cada botão da minha blusa que abandonava a casa. - Odeio-me por isso! - enquanto os meus collants desciam até meio da perna. - Oh, valha-me Deus, onde é que eu estou com a cabeça? - e um cair de calças até à altura dos joelhos. - Penso nisso depois! - e a vontade a provar que qualquer ninho de vespas pode ser uma boa cama.

Um minuto; dois minutos; um sem fim; eternidade… O ajeitar de trapos apressado; o atar de cabelo a disfarçar o ar comprometido, como se o mundo nos tivesse visto em directo; um pouco de batom, e eu a perceber finalmente para que é que os elevadores têm espelhos. O olhar apalermado em volta à procura de manchas na saia, nas calças, no fundo dos olhos; o sair apresado inventando assunto e falando mais alto que o costume, num reflexo infantil impossível de controlar, e o vigilante do edifício sem perceber nada; o vigilante… a perceber tudo: - Bom apetite doutores! - como se perguntasse: - “Bom apetite, doutores?”. Malvado! Coitado! E o ar quente da tarde a refrescar-nos as faces denunciantes.

Um olhar apalermado. Um riso parvo. Nervoso. E uma vontade de lhe dizer: - Não quero que penses que sou gaja destas coisas! - como se me quisesse desculpar pela minha fraqueza, pelos meus desejos de mulher. Mas achei o cliché foleiro. Mas o que foi aquilo que nos aconteceu se não um cliché foleiro?

- Merda! Será que ele está apensar em alguma coisa? Então porque é que eu tenho de estar?

E a porta do restaurante a sorrir com malícia nas minhas bochechas condizentes com o letreiro da entrada.

- Merda! Porque é que tenho eu de me sentir culpada? Porquê nós sempre culpadas? Porquê nós… merda…eu!

- Então, só agora?! Perderam o elevador da uma? - atirou-nos um colega com ironia no arquear dos lábios.

O silêncio dos nossos olhos parados nos olhos curiosos de todos. Uma resposta simples. Mais uma resposta simples. Sim ou não? Uma infinidade de tempo. Nove segundos e meio de silêncio

- Não! - respondeu ele.

- Sim! - respondi eu.

Wednesday, February 01, 2006

O próximo Natal…

Para trás e para a frente, na velha cadeira de balouço colonial, embalando o pouco tempo que lhe restava de uma vida cheia histórias repetidas vezes sem fim, passava o meu tio Henrique as tardes soalheiras a olhar para o cemitério dos Prazeres, da sua marquise de Campo de Ourique.

“O próximo Natal vou passá-lo ali!” - costumava dizer de cada vez que alguém por lá aparecia. Ia para vinte anos que não lho ouvia.

Há uns dias fui visitá-lo. E não tivesse eu aprendido já, que nada é porque sim, diria que não sabia bem porquê o havia feito. Fui porque me sentia completamente só. Porque sim… sentia-me só!

Lá estava ele, surdo, no seu mundo antigo, a contemplar a praça em frente ao cemitério, onde provavelmente pretos de outros tempos corriam de um lado para o outro, cumprindo as suas ordens de Sinhô pátrão. A pele, como a mortalha de um cigarro mal enrolado, quase lhe deixava ver o rendilhado dos ossos cansados e, a cabeça magra, coberta por uma penugem clara de bebé, era um globo terrestre gasto, cheio de imperfeições e pequenos rios sub cutâneos.

Cheguei-me a ele, dei-lhe os dois beijos da minha infância, disse “olá tio” e sentei-me no silêncio dos seus olhos baços a olhar para a tarde, que já ia do meio para a frente. Não me reconheceu, mas assumiu que fosse alguém da casa. Na sua idade já não se fazem perguntas, porque de pouco já servem as respostas.

- “O próximo Natal vou passá-lo ali!” - disse num pestanejar lento, pejado de uma certeza cada vez mais próxima da verdade.

Fiz o sorriso cúmplice das crianças que compreendem pela primeira vez aquilo que lhes dizem e não disse nada, porque era assim que devia ser.

Na parede, ao lado da janela, uma gaiola abandonada, e a lembrança de um canário feliz (porque cantava) a esfregar o bico no poleiro da minha memória. “Dou-lhe ovo para que fique sempre amarelinho!” - dizia-me o meu tio, nesse tempo em que já era velho e garantia que o próximo Natal o haveria de passar do outro lado da praça.

Uma pequena bandeja apareceu entre nós dois, na ponta dos dedos da dona Alda (antiga empregada da casa, e agora ama do meu tio). Trazia-me um refresco de limão e o sorriso franco da minha recordação de si. Que saudades! E de novo os dois, sozinhos, no silêncio deixado pelo chinelar minguante da velha senhora.

Há muitos anos que ali não ia, mas tudo estava agradavelmente na mesma. O adocicado cheiro a mofo de casa antiga, que se podia sentir logo à entrada do prédio e que tão boas recordações me trazia; as desfeitas fitas de plástico castanho, que há muito deixaram de impedir as moscas de esvoaçar livres da marquise para o resto da casa; o ressequido quadro de feira antiga, com motivos de caça, onde uma lebre adormecida numa travessa resistia, indolente, à passagem do tempo. O pequeno armário de esquina, em forma de sapateira, que sempre me despertou a curiosidade para o que teria dentro e que nunca tivera força suficiente para abrir, e a enorme mancha de humidade no canto do tecto, provavelmente morta, pois não estava maior nem mais pequena.

O Sol morno do fim da tarde entrava tranquilo pela marquise adentro, batendo em cheio nos nossos consanguíneos joelhos. Não me apetecia dizer nada e nada exigia que eu falasse. Tinha vinte e oito anos e uma péssima notícia no bolso do casaco. Um atestado de óbito antecipado, assinado pelo analista do Curry Cabral.

- Não tive cuidado! - disse por fim, como se o meu tio me tivesse perguntado alguma coisa. - O amor tinha pressa, e eu… muita falta de amor! Não posso dizer que não pensei nisso, mas… era preciso muito azar!

Afinal não foi preciso assim tanto! E, no silêncio psicanalítico, fui entregando ao meu tio Henrique a angústia que mais ninguém naquele momento poderia acolher tão bem quanto ele. E, como um bom psicanalista, haveria de a levar para o túmulo… quem sabe, antes do próximo Natal?!

De vez em quando os seus lábios invisíveis abriam-se e uma lesma gigante movia-se a custo dentro da sua boca deserta, num som imperceptível, que eu entendia como um “hum, hum” analítico.

Chegava ao fim a sessão, e a tarde de Campo de Ourique. Um beijo terno de agradecimento pousou na testa enrugada do meu tio Henrique: o seu merecido honorário.

- Bem tio, vou andando!

Os seus olhos, presos para lá da janela que o separava do jazigo de família, oscilavam tranquilos no embalo suave dos ciprestes. E, sem se mover, como se falasse para dentro de si, com os fantasmas que há muito lhe faziam companhia nas tardes lentas do fim da vida, apenas disse:

- O próximo Natal vou passá-lo ali!

Agarrado à gasta maçaneta de porcelana da porta da rua, uma pincelada de ironia desenhou um sorriso amarelado na máscara de cera da minha cara. Baixei a voz resignada e murmurei:

- Eu também tio! Eu também!

Só mais um pouco…

Os primeiros ameaços de luz entravam agora pelas últimas frestas dos estores, que nunca conseguíamos fechar completamente, e eu sentia o frio daquela manhã de Novembro entrar-me na alma sem convite, puxar uma cadeira e sentar-se. Aos poucos, o teu corpo foi ganhando cor e as unhas cinzentas dos teus pés eram já vermelhas. Fixei os olhos nelas e deixei-me ficar mais um pouco, encostado à almofada de penas que a tua mãe nos tinha oferecido. Só mais um pouco!

Adorava esses dedos bobos, encarapuçados de vermelho, como fantoches animados no pequeno palco dos teus pés. E eu que odiava verniz vermelho… e eu que adorava tudo em ti! Só mais um pouco!

Dormias tranquila, na cama que durante um ano e meio foi de nós dois, sem imaginar que fosses acordar sozinha e para sempre. Tive pena, ao imaginar o teu rosto trémulo ao acordar. Pena de nós. Pena de tudo quanto fomos se espraiar como uma onda de espuma sobre o areal morno da praia; um lençol de cetim branco a tomar a forma morna do teu corpo dormente. Só mais um pouco!

Não preguei olho durante a pouca noite que ainda nos restava para dormir. Tinha medo de adormecer e acordar depois de ti, e das torradas com sumo de laranja que fazias sempre depois de cada reconciliação. E eu estava cansado das nossas torradas com sumo de laranja! Tinha medo de não conseguir resistir mais uma vez às formas perfeitas desse teu corpo de mel, que dispensava qualquer movimento para me vencer; desses teus olhos de oceano profundo tentando-me a mais um mergulho de perder o fôlego. Tinha medo de me faltarem as forças para chegar a terra; de nunca mais conseguir voltar à tona. Só mais um pouco!

Um raio de sol mais ousado incendiou-te a curva do joelho, onde terminava a depilação e começavam os pêlos louros que me deixavam completamente fora de mim. Pormenores. E tu eras uma montanha de pormenores! Mas eu tinha de ir. Tinha-me jurado que seria a última vez; que não haveria mais volta; não mais discussões; chantagens emocionais; não mais desconfianças e cenas de ciúme; não mais reconciliações como esta… não mais torradas com sumo de laranja! Só mais um pouco!

A barriga grávida da tua perna descansava de lado, fora do lençol, numa imóvel dança do ventre, absorvendo a fraqueza dos meus olhos para ti. E eu lembrava-me da primeira vez que as vi, nas tuas calças bege à pirata - corsário, dizias tu - numa esplanada do Chiado, quando esperavas por uma amiga que nunca chegou a aparecer. Apaixonei-me de imediato por elas e depois por ti, e amei-te até à rendição, nessa noite, ainda em casa dos meus pais. Tinhas uma voz rouca, que me deixou inseguro, e fizeste questão de me pagar o café, sob o pretexto de precisares de dinheiro trocado para a máquina do tabaco. Como que para não te sentires frágil. Como que para não te sentir fácil. Como que para não me sentir o máximo. Como que para me fazeres sentir real... apenas eu.

Já tinha pensado ir e nada havia que me fizesse mudar de ideias. Tinha-o decidido antes. - Canalha! - por outras palavras, dirias tu, se to dissesse. Mas eu queria que acabasse em beleza. A mania da perfeição! Queria que ficasses com uma boa impressão de mim: a melhor das nossas noites de amor. Como se isso fosse aquilo que mais te importasse no acordar frustrado da minha ausência. Que pretensão esta que nos advoga o direito de decidir pelo outro! “Eu vou-me embora, mas ela nunca se há-de esquecer de mim!” Como se o melhor de mim fosse uma boa memória, ou uma noite de amor sem retorno. Nós homens vamos mil vezes embora, e mil vezes com a certeza de que é para sempre. Vocês vão apenas uma, a derradeira das mil e uma noites, num fechar de livro sobre a última página da história. Talvez por isso esteja a demorar tanto a ir. Só mais um pouco!

Não sei porque pensei nisso, se tudo estava já tão decidido! Tive medo! Talvez um medo antecipado de arrependimento. Talvez o medo de já te ter abandonado mil vezes e não as ter contado bem. Medo! É só isso que nos faz ficar mais um pouco debaixo do lençol da frustração. Medo, porque sou um homem e não um personagem de ficção. Medo de que quisesse voltar e a porta da tua vida tivesse mudado de casa. Por isso… só mais um pouco!

Moveste-te e passaste um braço mole por cima do meu peito, mas com força suficiente para me agarrar ali mais um pouco... só mais um pouco. Também eu estava cansado. Também eu precisava de uma desculpa para ficar só mais um pouco… mais uma vez. Aninhaste-te em mim, encaixei-te no meu corpo à tua medida; tive um raro arrepio de felicidade, fechei os olhos e disse baixinho, enquanto te beijava as pálpebras tranquilas: - Só mais um pouco! - como se tu me tivesses pedido alguma coisa.