Wednesday, February 01, 2006

O próximo Natal…

Para trás e para a frente, na velha cadeira de balouço colonial, embalando o pouco tempo que lhe restava de uma vida cheia histórias repetidas vezes sem fim, passava o meu tio Henrique as tardes soalheiras a olhar para o cemitério dos Prazeres, da sua marquise de Campo de Ourique.

“O próximo Natal vou passá-lo ali!” - costumava dizer de cada vez que alguém por lá aparecia. Ia para vinte anos que não lho ouvia.

Há uns dias fui visitá-lo. E não tivesse eu aprendido já, que nada é porque sim, diria que não sabia bem porquê o havia feito. Fui porque me sentia completamente só. Porque sim… sentia-me só!

Lá estava ele, surdo, no seu mundo antigo, a contemplar a praça em frente ao cemitério, onde provavelmente pretos de outros tempos corriam de um lado para o outro, cumprindo as suas ordens de Sinhô pátrão. A pele, como a mortalha de um cigarro mal enrolado, quase lhe deixava ver o rendilhado dos ossos cansados e, a cabeça magra, coberta por uma penugem clara de bebé, era um globo terrestre gasto, cheio de imperfeições e pequenos rios sub cutâneos.

Cheguei-me a ele, dei-lhe os dois beijos da minha infância, disse “olá tio” e sentei-me no silêncio dos seus olhos baços a olhar para a tarde, que já ia do meio para a frente. Não me reconheceu, mas assumiu que fosse alguém da casa. Na sua idade já não se fazem perguntas, porque de pouco já servem as respostas.

- “O próximo Natal vou passá-lo ali!” - disse num pestanejar lento, pejado de uma certeza cada vez mais próxima da verdade.

Fiz o sorriso cúmplice das crianças que compreendem pela primeira vez aquilo que lhes dizem e não disse nada, porque era assim que devia ser.

Na parede, ao lado da janela, uma gaiola abandonada, e a lembrança de um canário feliz (porque cantava) a esfregar o bico no poleiro da minha memória. “Dou-lhe ovo para que fique sempre amarelinho!” - dizia-me o meu tio, nesse tempo em que já era velho e garantia que o próximo Natal o haveria de passar do outro lado da praça.

Uma pequena bandeja apareceu entre nós dois, na ponta dos dedos da dona Alda (antiga empregada da casa, e agora ama do meu tio). Trazia-me um refresco de limão e o sorriso franco da minha recordação de si. Que saudades! E de novo os dois, sozinhos, no silêncio deixado pelo chinelar minguante da velha senhora.

Há muitos anos que ali não ia, mas tudo estava agradavelmente na mesma. O adocicado cheiro a mofo de casa antiga, que se podia sentir logo à entrada do prédio e que tão boas recordações me trazia; as desfeitas fitas de plástico castanho, que há muito deixaram de impedir as moscas de esvoaçar livres da marquise para o resto da casa; o ressequido quadro de feira antiga, com motivos de caça, onde uma lebre adormecida numa travessa resistia, indolente, à passagem do tempo. O pequeno armário de esquina, em forma de sapateira, que sempre me despertou a curiosidade para o que teria dentro e que nunca tivera força suficiente para abrir, e a enorme mancha de humidade no canto do tecto, provavelmente morta, pois não estava maior nem mais pequena.

O Sol morno do fim da tarde entrava tranquilo pela marquise adentro, batendo em cheio nos nossos consanguíneos joelhos. Não me apetecia dizer nada e nada exigia que eu falasse. Tinha vinte e oito anos e uma péssima notícia no bolso do casaco. Um atestado de óbito antecipado, assinado pelo analista do Curry Cabral.

- Não tive cuidado! - disse por fim, como se o meu tio me tivesse perguntado alguma coisa. - O amor tinha pressa, e eu… muita falta de amor! Não posso dizer que não pensei nisso, mas… era preciso muito azar!

Afinal não foi preciso assim tanto! E, no silêncio psicanalítico, fui entregando ao meu tio Henrique a angústia que mais ninguém naquele momento poderia acolher tão bem quanto ele. E, como um bom psicanalista, haveria de a levar para o túmulo… quem sabe, antes do próximo Natal?!

De vez em quando os seus lábios invisíveis abriam-se e uma lesma gigante movia-se a custo dentro da sua boca deserta, num som imperceptível, que eu entendia como um “hum, hum” analítico.

Chegava ao fim a sessão, e a tarde de Campo de Ourique. Um beijo terno de agradecimento pousou na testa enrugada do meu tio Henrique: o seu merecido honorário.

- Bem tio, vou andando!

Os seus olhos, presos para lá da janela que o separava do jazigo de família, oscilavam tranquilos no embalo suave dos ciprestes. E, sem se mover, como se falasse para dentro de si, com os fantasmas que há muito lhe faziam companhia nas tardes lentas do fim da vida, apenas disse:

- O próximo Natal vou passá-lo ali!

Agarrado à gasta maçaneta de porcelana da porta da rua, uma pincelada de ironia desenhou um sorriso amarelado na máscara de cera da minha cara. Baixei a voz resignada e murmurei:

- Eu também tio! Eu também!

1 comment:

Anonymous said...

Ha qualquer coisa de profundamente twisted num pais que tem 1 cemiterio dos prazeres...dos PRAZERES!!!! Qualquer dia ate somos 1 povo melancolico a lamentar o destino..eh...ops! Anyway, bom conto puto. Gostava de te ver a escrever sci fi, isso e k seria interessante. Momento gato fedorento: outro dia disseram me "ah, assim como assim..." e eu respondi "eu tambem, eu tambem"