Monday, October 27, 2008

Vertigem

Depois que a Soraia me trocou por aquele taxistazinho de merda a vida perdeu o sentido.

- Olha que essa gaja não é boa rês, pá! - o pessoal do snack-bar a avisar-me.

- Também para o que é! - defendia-me eu, indiferente

aparentemente indiferente

mal sabendo, ou querendo admitir, que já estava vidrado na curvas desastrosas daquele corpo.

- Olha que já deu a volta a uns quantos pategos aqui no bairro, Chico! - o pessoal a insistir. Principalmente aqueles que nunca se haviam acidentado nas curvas de morte da Soraia. Maldita seja!

- Dizem até que foi por causa dela que o Victor se matou, pá.

- Uns fracos, pá! - afirmava eu, todo galo. - Gajos que não sabem lidar com uma mulher! E enchia a boca para

- Uns fracos, pá!

e num inchar de peito ainda acrescentava

- Uma mulher é uma mulher, pá! Não tem nada que saber.

Até que a Soraia a afastar os joelhos e eu

- Uns fracos, pá!

a não saber lidar com ela

- Olha que nem todos os carros são para todas as mãozinhas! Passa lá uma bomba para as mãos de um nabo e logo vês o que lhe espera.

E a Soraia um carro de competição com 800 cilindros em triplo W.

- Olha que aquilo não vem com kit de unhas, Chico! Ou tens “mãozinhas” para a gaja, ou vais direitinho à parede que até te amolas.

E os joelhos da Soraia a afastarem-se na minha direcção

uma velocidade vertiginosa

estrada em bico

a afunilar

a afunilar

em direcção ao precipício

e eu

um franguinho com vertigens à beira do abismo

da boca do inferno.

E ela

… Soraia. Maldita seja!

a perceber que eu não tinha mãozinhas para aquilo

um nabo

mas enquanto lhe deu pica gozar o pacóvio, que todas as sextas e sábados aos bifes da Trindade

tudo muito certo

uma lady

e eu de peito inchado,

todo galo

franguinho com vertigens à beira do abismo

a passeá-la à porta do snack-bar, ao fim da noite, onde os outros, invejosos, babados, lhe mandavam olhares às ancas e piadas a meu respeito.

- Então, ó Chico, já nem falas à malta?!

e eu

que já nem falava à malta

nem um gesto de cabeça; uma piscadela de olho

nada

a andar, a andar

inchado que nem um peru

todo galo…

(franguinho com vertigens à beira do abismo)

Mas agora…

agora que aquele taxistazinho de merda a levou, sei lá para onde, acabou-se tudo. A voltarem-me à ideia as palavras do Calisto

- Dizem até foi por causa dela que o Victor se matou, pá.

as do Necas

- Ou tens “mãozinhas” para a gaja, ou vais direitinho à parede que até te amolas.

E o taxistazinho de merda, mais habituado a grandes andamentos

de certeza mais habituado a grandes andamentos

de manhã à noite com um Mercedes na patuças

a levar-ma, sei lá para onde…

a deixar-me um vazio enorme

cheio de ecos

onde as palavras do Calisto

- Dizem até foi por causa dela que o Victor se matou, pá.

- … foi por causa dela que o Victor se matou, pá.

- … o Victor se matou, pá.

- … se matou, pá.

a dar-me vontade de morrer

aqui

neste quarto vazio com barba de cinco dias, a português suave e latas de salsichas com pão de forma e vinho de pacote, que é só o tempo de descer ao supermercado

a horas que não me vejam

a horas que ninguém

- Então, ó Chico, já nem falas à malta?!

só o tempo de descer ao supermercado

e

tau

o que calhar e uns cigarros.

Neste quarto vazio

(cama e armário)

alugado ao segundo

que isto aqui não é uma pensão

- Olhe que isto aqui não é uma pensão!

a dona disto que não é uma pensão, à porta, a avisar-me

- Olhe que isto aqui não é uma pensão!

a dar-me ganas de lhe apertar o papo

de lhe berrar bem alto

- É um ninho de putas. É o que isto é!

a não dizer nada

a deixar-me ficar

no canto vazio do quarto

(cama e armário)

que para amar nem é preciso tanto

afinal

- Uma mulher é uma mulher… Não tem nada que saber.

e pelo visto até tem

- Ou tens “mãozinhas” para a gaja, ou vais direitinho à parede que até te amolas.

as palavras do Necas no eco surdo do quarto

alugado ao segundo pelo taxímetro da velha que

- Olhe que isto aqui não é uma pensão!

e ao dizer taxímetro

a começar tudo de novo

a Soraia, o snack-bar, a Trindade, a pensão

- Olhe que isto aqui não é uma pensão!

- Já sei que não é uma pensão, foda-se!

… um ninho de putas. É o que isto é!

a deixar-me ficar

na esperança desesperançada que volte

que entenda que eu

Chico

o homem da vida dela

na esperança desesperançada que o taxistazinho de merda a abandone

que as mulheres abandonadas regressam sempre aos braços encornados dos pacóvios que as choram em pontas.

A deixar-me ficar

numa vontade de morrer

a horas que não me vejam

neste quarto de cinco dias, só, com barba de tempo a descer, suave, ao vazio… tau… uns cigarros. Português de forma, de pacote, de supermercado salsichas de pão e vinho de latas…o que calhar.

aqui

no canto

vazio

onde uma barata

passeando-me pelas biqueiras das botas, sem respeito algum

(como o pessoal do snack-bar se me visse agora

Português sem forma, barba de cinco quartos, salsichas de pão e vinho suave, tempo em lata, dias de pacote

o que calhar e uns cigarros)

respeito algum

a barata

pelas biqueiras de mim, ou das botas

como se eu não mais que um obstáculo no caminho

eu não mais que um obstáculo no caminho

que uma barata faz lá ideia o que é um homem

um franguinho com vertigens à beira do abismo

à boca do ralo do polibã

agora

repleto de cabelos e pêlos fossilizados em restos de sabão, onde a barata

agora

ou eu

a barata

agora

em movimentos de antenas, à procura dos pêlos dela

… Soraia. Maldita seja!

Quais os dela? Quais o meus? Quais os de toda a gente que por aqui passou antes de nós, que

- …isto aqui não é uma pensão!

… um ninho de putas…

já sei

num desespero, perdido

Quais os dela? Quais os dela? Quais os dela?

em movimentos de antenas

a barata

ou eu

a barata

Quais os dela? Quais os dela? Quais os dela?

Que frustração! Nem um resto do seu corpo a ser-me permitido

um fio ondulado de saudade… Nada!

Confundi-me com ela, com meia cidade, com meio mundo... meia pensão…

e que resta de nós…

um monte de pentelhos no ralo, misturados com o sebo e sabão…

o abismo

o ralo aberto

movimento de antenas

um medo que vem de dentro

de mim

do ralo

de onde um frio

uma dor

um silêncio de gargalhadas pelos quatro cantos do quarto

vazio

a arrepiarem-me a couraça

nua

gelada

numa vertigem de abismo à boca do ralo

à boca do inferno

de onde um eco

profundo

nas minhas antenas à toa

vindo das entranhas da cidade

me repete

- Dizem até que foi por causa dela que o Victor se matou, pá.

- … que o Victor se matou, pá.

- … se matou, pá.

Dona Camille

Porque foi que morreu, dona Camille? E agora, dona Camille? Quem me dirá

- Entrre, mênino. Entrre.

dona Camille?

Quem me dará bolinhos de anis num cartuchinho de papel branco; me mandará aos recados, dona Camille? Eu sei que isso foi há trinta anos, dona Camille, quando a dona Camille uns cinquenta e eu

treze

catorze

quinze

e a dona Camille

- Entrre, mênino. Entrre.

em camisa de dormir

transparente

afinal eu uma criança

treze

catorze

quinze

e mal nenhum

idade para ser minha mãe

e em França tudo muito mais moderno.

Vai daí que

- Entrre, mênino. Entrre.

em camisa de dormir

transparente.

Viúva antes dos cinquenta

o senhor João Lemos

português a salto para Paris

um café

(uma boîte)

a mesma coisa em França

tudo muito mais moderno

uma noite, duas noites

um mês ou dois

e

aquela vidinha de lado

cansada já

dançar todas as noites

dançar apenas

(como se apenas não cansasse igual)

a aceitar o pedido

a dizer

- Sim.

perdão

- Oui.

num cartório de Paris.

Nunca teve filhos

(apesar de idade para ser minha mãe)

casamento tardio

passava dos quarenta

quando o senhor João Lemos

- A mademoiselle aceitaria casar-se comigo?

de modo que

quando disse sim

já tarde demais para ter filhos

(apesar de idade para ser minha mãe)

mas não sendo

- Entrre, mênino. Entrre.

em camisa de dormir

transparente

a pedir-me que ajudasse com isto, com aquilo

e nisto e naquilo o decote

malandro

a mostrar-me

- Olha para isto, ó puto! Ah! Diz lá que ainda não está enxuta, a velha!

e eu

para o decote

- Dona Camille, se faz favor!

que lá porque um decote a vida toda colado aos seios, direito nenhum de

- … Diz lá que ainda não está enxuta, a velha!

De modo que os olhos a falarem por mim, a dizerem

por mim

- Dona Camille, se faz favor!

a ficarem naquilo

num bate-boca

não eu

os olhos

a defenderem a dona Camille

a não admitirem faltas de educação ao decote

ordinário

pensava que malandro, mas

ordinário

e nisto uma voz

- Párra onde está o mênino a olhár?

a embrulhar-me o estômago, a entrançar-me as pernas, a comer-me letras às palavras que

- Par… eu… ah… nenhu...par…não…

e a voz

não a dona Camille

a voz

de conluio com o decote

ordinário

a perguntar-me

- Quér ver as minhas mêninas?

a engasgar-me o coração, aflito, num esperneio de coelho mal morto

a aproximarem-se de mim

a voz

o decote

umas mãos também

cúmplices todos

a aumentarem o decote, como uma boca que ri

a revelarem-me dois…

(enxutos)

a agarrarem-me na mão

a levarem-ma até eles, apertando-a

transfundindo-me o sangue do coração para as calças

engasgado

num esperneio de coelho mal morto

a puxarem-me para o sofá, onde a voz

não a dona Camille

a voz

- Gósta?

e eu

não sei se bem eu

qualquer coisa em mim

a fazer-me sim com a cabeça

que sim, que sim, que gostava

apesar de idade para ser minha…

mas não sendo

que sim, que sim

e as minhas calças a abrirem-se, uma mão a certa de encontrar o que procurava

treze anos

resistência alguma

a massajar, como a uma lamparina mágica onde um génio adormecido não tardaria a ser desperto

- Gósta?

a voz, as mãos, o decote, que já decote nenhum

uns seios

inteiros

(enxutos)

à espera de beijos

de qualquer coisa

um carinho

uma meiguice

algo que os acalmasse

(ou ao coração por detrás deles)

que uma mulher sozinha sofre muito

e que mal tem o carinho

o amor (?)

que se não fosse amor não se poria sobre o meu colo, a dona Camille

não a dona Camille

precipitei-me

é o nervosismo

o corpo apenas

não a dona Camille

insisto

o corpo apenas

mais forte que ela

sobre o meu colo

a abraçar-me o pescoço

a encher-me de beijos

a boca que

- Gósta?

a arrancar-me

que sins com a cabeça desvairada

a garantir-me, a boca

não a dona Camille

a boca

- Ai é tão bóm, mênino!

enquanto eu

a desmaiar

a arquejar de aflição…

Pobre dona Camille (!)

a viuvez, as saudades do carinho, que

sozinha

num país estranho

não havia quem lho desse

a arrancar de dentro de mim um vómito da alma que a fez brilhar

(os olhos)

que a fez brilhar

dizer-me

- Ai é tão bóm, mênino!

Uma vez, duas vezes

treze

catorze

quinze anos

até que eu uma namoradinha e

- Já não tenho idades para fazer recados.

a dar o recado à minha mãe, quando ela

- Olha, a dona Camille pediu se podias passar lá por casa hoje. Precisa que lhe faças um recado

- Já não tenho idades para fazer recados.

De modo que nunca mais fui

perdão dona Camille

um ingrato, eu sei

mas o quê(?)

dezasseis anos, quase

uma namoradinha e

sabe como é…

E talvez fosse isso, que devagarinho a foi levando, à dona Camille

que uma mulher viúva

saudades do carinho, que

sozinha

num país estranho

não havia quem lho desse.

Quando se é novo não se pensa nisso. Mas agora, quando a notícia chegou

talvez porque desiludido com o casamento

a namoradinha daquele tempo

a doer-me

a querer dizer

dona Camille

não morra, dona Camille

eu vou, dona Camille

ainda hoje, dona Camille

sem falta, dona Camille

juro que sem falta.

Não me custa nada

sinceramente

um recadinho, com todo o gosto

é só mudar de roupa, dona Camille

mas não morra, dona Camille

não morra!

Senão quem é que me abrirá a porta, dona Camille?

Quem é que me dirá

- Entrre, mênino. Entrre.

dona Camille?