Tuesday, April 24, 2007

Havia de ser meu filho

Quando descobri que o meu filho

enfim

quando descobri

o mundo desmoronou-me nas mãos como um castelo de cartas a que um sopro põe fim. Não era possível! Não podia ser possível. O meu João Ricardo. O único filho, a pôr termo ao sonho de

- Parabéns, dona Mariana!

- Obrigada! Muito Obrigada!

- E já tem nome?

- Francisca, Manuel, João Pedro, Ricardina…

Leonídio que fosse

Eliotéria, não me importo.

juro que não me importo, filho, que

Eliotéria

mas um nome, uma fralda presenteada, um bolçar de surpresa na toilette de Domingo

que gracinha

e eu que até nem gosto de surpresas, tu sabes, mas…

não me importo

juro que não me importo, filho!

Nem que tu

- A Ana Rita, mãe.

e eu

que até nem gosto de surpresas, tu sabes

- Quem, a filha do coveiro, que só ainda não morreu do fígado porque não há ninguém para lhe abrir a cova?

a acabar por não me importar filho. A garantir-te que

- Pode ser, filho. A mãe está do teu lado, ainda que no mercado

- Aquilo? Aquilo é mais batida cás pedras da rua!

porque o mais importante é a felicidade de um filho, não é João Ricardo?

Por isso

do teu lado

se tu

- A Ana Rita, mãe.

Ainda que no mercado

- Aquilo?

Ainda que o teu pai

- …mais batida cás pedras da rua!

Mas assim, filho! O que é que eu digo ao teu pai, que

tu sabes

- Olha-me páquele maricas, pá!

sempre que aquele apresentador que tu adoravas aparecia na televisão

- Isto só neste país que é quésta gente vem à tlevisão? Porra!

Não é por mim, filho

porque o mais importante é a felicidade de um filho

ainda que toda a vida o sonho de

- Parabéns, dona Mariana!

- Obrigada! Muito Obrigada!

de

- E já tem nome?

- Francisca, Manuel, João Pedro, Ricardina…

o sonho de

Leonídio que fosse

Eliotéria, não me importo.

Juro que não me importo, filho, que

Eliotéria

mas o teu pai

tu sabes

- Havia de ser meu filho que eu dava-lhe os calores!

sempre que aquele apresentador que tu adoravas

- Uns lambadões pus cornos abaixo, fazia-se homem quera um mimo! Até me dá raiva esta merda!

e tu caladito, enquanto o comando a estalar nas mãos danadas do teu pai, que

- Até me dá raiva esta merda!

Ai valha-me Santa Rita,

(senhora dos aflitos)

que nem pensar nisso é bom!

E no mercado, filho? E as vizinhas, filho?

Não é por mim

porque o mais importante é a felicidade de um filho

ainda que toda a vida

- Parabéns, dona Mariana!

mas as do mercado; as vizinhas

tu sabes bem como são as línguas; que volta não volta

- Então e o seu Ricardo, dona Mariana, quando é que arranja uma noiva?

E eu sempre

- Ele tem é de acabar os estudos! Isso é que ele tem!

- … um rapazinho muito atinado. Faz ele bem, que isto hoje em dia são os rapazes que têm de se pôr ao quito com elas! - a dona Paula da fruta com o seu jeito de varina da lota.

Porque tu sempre enfiado no quarto, de roda dos livros, pois

- Ele tem é de acabar os estudos!

Por isso

(na véspera de voltares para Coimbra

- … acabar os estudos!

que já quase nada para doutor advogado)

quando

pela alma da tua avó que sem querer

atrás da porta

tu, todo mesuras, me chegavas aos ouvidos num linguajar romântico, me deixei ficar, um niquito.

Pelo que há de mais sagrado nesta vida de Deus, João Ricardo!

um niquito

Uma namorada… estava curiosa. Se calhar tinhas vergonha da gente, sei lá, filho. Uma banca de hortaliça no mercado. Tantos que têm vergonha dos pais, não é filho!? Olha o teu primo Leonel, que depois de vir do Luxemburgo fez casas nos Casais de Cima e nem pelo Natal vem ver a família, a dois passinhos daqui! E por isso

curiosa

não bem curiosa

falta-ma palavra. Preocupada, talvez. Preocupada serve. Tu entendes a mãe, não entendes? Preocupada, filho, é isso. Pois tu, vinte e três aninhos e nunca

- É a Célia, a Lurdes, a Maria, a Ana Rita do coveiro

que fosse

- …mais batida cás pedras da rua!

e só

- Um dia destes!

sempre que alguém

- Então João, quando é que trazes a cachopa cá à terra?

Por isso

um niquito, filho

pelo que há de mais sagrado nesta vida

mas o suficiente para

Deus me castigar

para

- Também te amo muito, Filipe!

e eu a teimar com os meus ouvidos que

- Filipa

mas eles

- Filipe

Tu acreditas nisto João Ricardo? Eu a pensar: Filipe, que disparate tão grande! Vocês estão doidos. E os meus ouvidos a baterem o pé

- Filipe, Filipe, Filipe, mil vezes Filipe!

e eu

juro que um niquito, filho

só mais um niquito, filho

tinha de tirar as teimas, com os ouvidos, né, filho? Que a partir de certa idade, pouca confiança já, principalmente quando começam a trocar os “es” pelos “as”

vai daí

só mais um niquito

e tu

- Vais-me esperar, querido?

e agora os “as” pelos “os”

e os meus ouvidos

- O que é que a gente disse?

e tu

- Chego a Coimbra B às quatro e meia.

e tu

- Até amanhã, querido.

e tu

- Beijinho, amor!

e os meus ouvidos

- Então?

e eu

- Calem-se, calem-se, calem-se…

e eu a pedir a Deus todas as noites para que

- … nunca mo diga, Senhor. Faça com que o meu João Ricardo nunca mo diga…

Não é por mim, filho

porque o mais importante…

nem já pelas do mercado, filho

nem já pelas vizinhas, João Ricardo

mas pelo teu pai

tu sabes

até lhe dá raiva

sempre que aquele apresentador…


Monday, April 23, 2007

Página de diário

Já não dóis!

Hoje acordei com a sensação de que já não dóis. Quando há uns meses atrás me disseram que tudo iria passar, que era apenas uma questão de tempo, achei que o diziam só para me consolar a dor, já que a verdade em mim era contrária a tudo isso. Era porque nunca tinham amado! Todos quantos me diziam que

- Isso vai passar, Sandra.

era porque nunca tinham sentido o verdadeiro Amor. Comigo era diferente. Dramaticamente diferente. Doías-me como um pedaço de mim arrancado a sangue frio para nunca mais, mas

a verdade é que passou

a verdade é que

Já não dóis!

Hoje és um verbo no pretérito…

imperfeito.

Como é que conjuga o verbo do teu nome?

Eu era Rafael

Confirmo.

Tu eras Rafael

Achava eu!

Ele…não existia.

Nós éramos Rafael

Vós, se éreis, a serdes, não seríeis senão Rafael

Eles… eles não importavam.

Tudo era

(não era?)

Rafael.

Fiz-te mil perguntas que até ontem me devias as respostas; e ontem é um tempo indeterminado. Hoje que

acordei com a sensação de que já não dóis

já não preciso que mas dês, porque

não doendo

os porquês são “para quês”

isto é, nenhum sentido.

De qualquer modo, não tinha ficado completamente na ignorância. Respondera-as eu. Algumas sabia a resposta, e as que não sabia, tratei de inventar. Tu mesmo me dizias muitas vezes

- Lá a inventar és tu boa!

com o teu ar de enfado

(mas porque é que os homens sempre ar de enfado quando

- … apenas uma pergunta?)

- Fiz apenas uma pergunta! Gostas de mim?

- Que mania! - como resposta; resposta nenhuma.

Também esta pergunta não me importa que ma respondam. Inventarei uma resposta para ela, afinal

- Lá a inventar és tu boa!

com o teu ar de enfado.

- Se estavas à espera que eu fosse o príncipe encantado… - e a pendurares a frase no bengaleiro da vulgaridade.

bem que estava enganada!

- Né?

Eras um sapo. Um sapo vulgar, e por isso, todos os beijos em vão. Todos menos o primeiro

para saber

o segundo

para confirmar

e o terceiro para me desiludir.

Três beijos o bastante para saber se príncipe ou sapo. Tudo o mais um desperdício de afecto.

Podia ser dos meus beijos. Afinal nunca tinha beijado ninguém!

Nem mesmo um sapo!

Por isso

quatro, cinco, até a boca começar a amargar, até os lábios não saberem a mais que à cal fria das paredes húmidas; até que as lágrimas a humedecerem-me mais os lábios que a tua saliva; até que

beijos a mais para poder sair assim

sem nada.

Um beijo ao menos! Um saco de beijos sobre a rugosidade verde do teu egoísmo! Mas não. Mas nada. E tiveste de ser tu a dizer

- Fechou o casino do amor, menina. Isto é mesmo assim! Uns dias ganha-se outros dias… - e a pendurares a frase no bengaleiro da vulgaridade.

Mas eu continuava à espera. Sim, porque é de mulher ficar à espera (também isso tu nunca entendeste!) A princesa não sai a correr pela floresta procurando o príncipe. Ela espera e ele vem. Ele vem sempre. Não sabes? É sempre assim. Se calhar nunca te contaram histórias quando eras criança e eu estou a ser má contigo!

Será que não contam contos de fadas aos meninos? Que criança triste deves ter sido!

…e eu… a ser má contigo!

Um dia, quando for mãe, vou contar muitas. Vou contar sempre, que eu não quero filhos sapos aos saltos pelo palácio.

Se calhar… estou a ser má contigo!

Não, não estou! Se nunca ouviste contos de fadas não podes ser um príncipe. Porque só quem ouviu contos de fadas pode ser um príncipe. Nem que seja um príncipe com orelhas de burro.

Não me importo!

Por isso, és um sapo! Porque os sapos não têm orelhas, e por isso nunca nenhum conto de fadas. Pois só para os sapos os mimos das princesas são caprichos. E todas princesas têm miminhos

que não são caprichos

mas sim medinhos. Não sabes?

Porque é de princesa parecer frágil.

Entendes?

E por isso

- Mostra-me como gostas de mim!

- Mostra outra vez!

- Mostra mais!

- Mostra, mostra, mostra… mais, mais, mais e mais!

É simples, é só sentir.

Dai as respostas que eu queria de ti não serem palavras, mas olhares. E tu nunca olhaste para mim, ainda que muitas vezes os teus olhos no meu peito

não no meu coração

no meu peito

onde achavas que eu estava

ou onde apenas os teus olhos de sapo conseguiam chegar

e eu

porque já não dóis

a ser má contigo.

um anjo

Não havia bicho naquela santa casa de que se apiedassem as mãos da dona Irene. Pombos, galinhas, patos - os mais tramados de depenar - coelhos, perus, enfim, o que houvesse de comer. Marchava tudo a eito ainda que lhe ouvisse dizer, não poucas as vezes

- Eu tenho muita pena, mas o que é que eu hei-de fazer!? Não os comemos vivos!

E realmente isso era uma verdade.

De tudo

- …tenho muita pena…

mas o que haveria de fazer!? Não os comíamos vivos!

- …muita pena…

mas de nada mais do que dos gatos.

Felizmente, ou num dizer mais católico, graças a Deus - que serão com certeza duas formas de dizer o mesmo, por isso -

felizmente

naquela casa nunca faltaram animais, principalmente gatos. Não me lembro de um único dia sem um miado. Mas sempre que nascia mais um, que nunca era mais um, lá ia a piedosa da dona Irene

- Tonito, filho, tenho ali um trabalhinho para ti.

E o Tonito já sabia do que se tratava.

Tonito era um miúdo, também, um pouco mais velho que eu e, por isso, para mim, adulto já. Vivia numa casa quase em frente à nossa e era a ele a quem a minha avó dava cinco escudos, naquela altura, para a aliviar da tortura de se ver livre daquelas pequenas criaturas, das quais

- …muita pena…

Ficava sempre um para tirar o leite à gata

- Tadinha!

para que não encaroçasse e ganhasse febre.

- Tadinha!

Pelo menos um. E nem sequer ela a escolhê-lo. Normalmente um macho, que as fêmeas (como na Índia; na China) ninguém as quer, e apesar de não haver dote ao barulho, um macho, na pior das hipóteses, havia apenas que se lhe dar de comer e umas vassouradas quando marcasse o território junto à porta de casa . Já que nenhuma vizinha se haveria de queixar

- Ó vizinha Irene, olhe que o seu gato andou lá por casa a fazer das suas!

Já que nenhuma vizinha…

- E agora, como é que é?

Punha-os num saco, num berreiro cego, que ainda eram criaturas de um dia ou dois, e lá ia ele, com os cinco dinheiros no bolso.

Sentia que ele era o máximo, pois fazia, para a idade que tinha, uma tarefa que a minha própria avó não era capaz de fazer. Ela que era uma mulher de mãos impiedosas no que tocava a pombos, galinhas, patos - os mais tramados de depenar - coelhos, perus, enfim, o que houvesse de comer.

E eu a achá-lo corajoso porque matava gatos e eu um cobarde porque, o olhar de esguelha, sempre que a dona Irene a caminho do poço com uma galinha numa mão e uma tigela e uma faca na outra.

- Eu tenho muita pena… Não os comemos vivos!

e daí a nada, a regressar do patíbulo, onde à sombra de uma macieira tinha apartado a galinha para um lado e a vida para o outro.

Eu um cobarde, com vontade de me lançar ao pescoço do Tonito, ou aos pés, esbofeteá-lo ou implorar-lhe que não matasse os gatinhos, que ninguém precisava de saber de nada

- … um segredo só da gente!

Levar a gata para longe, com os filhotes todos. Um final feliz para uma história tão simples. Que partiria o meu porquinho e lhe dava dez escudo para o resgate

- …quinze

- …tudo o que tiver

mas a não dizer nada. A ficar-me pela vontade estéril de um gesto apenas; a ir com ele, a vê-lo abrir um buraco onde os haveria de…

a pedir-lhe

não que os não matasse. Não que se apiedasse daquelas pobres criaturas, mas a

- Deixa-me experimentar.

e a deixar cair um gatinho dentro do buraco, a querer matá-lo com cuidado; a não querer magoá-lo; a não querer sentir-me culpado. O gatinho num miado aflito, como se a mãe o tivesse deixado cair de cima de um precipício, numa aflição cega

que ainda eram criaturas de um dia ou dois

enquanto o Tonito a tirar-me o saco das mão assassinas, com os cinco dinheiros no bolso, num

- Não é assim que se matam os gatos, pá!

numa repreensão de mestre verdugo.

- Não é assim…

como se eu um perfeito imbecil. Um perfeito imbecil.

e a chapar um de encontro ao fundo da cova num silêncio cego.

que ainda eram criaturas de um dia ou dois

numa execução perfeita. Enquanto eu de olhos nas mãos para não ver. Como quando a minha avó a caminho do poço com uma galinha numa mão e uma tigela e uma faca na outra. De olhos nas mãos, para não estar presente, para não ser culpado, a caminho de casa, com aquela imagem a correr nos meus calcanhares e a acordar de noite com num miado aflito, como se a mãe o tivesse deixado cair à porta do quarto, dos sonhos, não para se vingar, que os gatinhos mortos não são vingativos.

Eu um fraco, um cobarde, debaixo das mantas, de mãos nos ouvidos para não estar presente, para não ser culpado, sem uma única moeda, um único

- Obrigada, joinha! És um anjo.

embora os anjos, tanto quanto sei, não matam gatos por cinco dinheiros.