Wednesday, June 30, 2010

Plataforma de embarque

Lembro-me como se fosse hoje. Uma floresta de gente, de um lado para o outro
na época em que as pessoas apenas pernas
e uma voz
lá em cima
a lembrar deuses
e eu
pela mão nervosa da minha mãe, na plataforma de embarque de Santa Apolónia, com a voz do meu pai
muito para lá das pernas
a recomendar
- Porta-te bem rapazão!
e eu
que não era rapazão
a dizer que sim com a cabeça
não a dizer
- Sim.
apenas com a cabeça
porque a voz atabalhoada talvez não chegasse lá acima
(que a voz dos pequenos, como a dos burros, nunca chega ao céu)
é ver o caso da avó Maria, a rezar baixinho pela sorte dos filhos e dos netos que
- … pouca sorte.
e quando é pouca
dizia
- … mais vale nenhuma!
de modo que
sim com a cabeça
não a dizer

apenas com a cabeça
onde uma mão
de Deus
do meu pai
(naquela idade, uma e a mesma coisa)
a repetir
porque nunca é demais um aviso
- Porta-te bem rapazão!
A mesma mão que depois na barriga da minha mãe, antes do beijo na face
que naquele tempo a boca apenas para comer e falar
(pouco de cada)
pois nem para rezar a Deus se precisava de abri-la. Apesar da avó Maria de gengivas polidas
a mastigar orações, duras, como côdeas, que é com pão que se comunga à mesa de Deus e não com as rodelinhas de Farinha Amparo, que o padre Simeão
- Corpo de Cristo.
“Corpo de Cristo uma ova! Farinha Amparo, ou pensa que me engana!?” e
apesar de não precisar
a boca da avó Maria lá ia macerando as palavras, as côdeas, o corpo do Senhor
- … assim na Terra como no Céu…
de gengivas polidas
num “nham, nham” suplicante
pela sorte dos filhos e dos netos que
- … pouca sorte.
e quando é pouca…
(já se sabe)
num “nham, nham” suplicante
como a boca da minha mãe por um beijo que
na face
que naquele tempo os beijos na boca reservavam-se à intimidade do quarto
(se por ventura alguma intimidade no quarto)
pois como na oração da avó Maria
pela sorte dos filhos e dos netos que
- …não nos deixeis
Senhor
- …cair em tentação…
De modo que
uma mão na cabeça
um beijo na face
e umas costas enormes a afastarem-se de nós. Não o meu pai
umas costas enormes
a diminuírem na plataforma de embarque de Santa Apolónia
até quase ao meu tamanho
o meu pai
ou as costas
quase do meu tamanho
cabeça e tronco
um pouco mais do que umas pernas
um homem
o meu pai, um homem
deus algum
um homem
a apequenar-se
a apequenar-se
(que à distância todos os gigantes são pequenos; todos os deuses são mundanos)
a afastar-se
de nós
cada vez mais pequeno
duas malas
pouco pai já
já não duas pernas
duas malas
um sobretudo
a caminho do comboio, a caminho de
- Paris de França, filho.
a minha mãe a responder à pergunta de “para onde” “o pai”
como se
- Paris de França…
Póvoa de Santo Adrião
para onde, dali a pouco
a camioneta
que naquele tempo
autocarro
como beijo na boca
não se usava.
- Paris de França, filho.
numa voz tremida
a lembrar-me a avó Maria
…orações polidas, a mastigar gengivas, duras, côdeas de Deus, não rodelinhas de Farinha Amparo
- … o pão-nosso de cada dia …
que é com pão que se comunga à mesa do Senhor, padre Simeão!
voz tremida
na plataforma de embarque de Santa Apolónia
- Paris de França, filho.
como se
- Paris de França…
Póvoa de Santo Adrião
para onde, dali a pouco…
Lembro-me como se fosse hoje. Uma floresta de gente, de um lado para o outro
a minha mãe
na plataforma de embarque de Santa Apolónia
uma mão no ar a despedir-se de um par de malas
de um sobretudo
de si mesma
na mala do meu pai
numa moldura foleira
(a própria palavra - foleira)
uma mão no ar
a outra a segurar a barriga, a minha irmã Cristina
que eu
(um rapazão)
a não precisar já que me segurassem a mãozinha
a mão, corrijo
onde tantos dedos quantos o anos que tinha
fácil a conta quando me perguntavam
- Quantos anos tens tu?
logo muito pronto, de mãozinha no ar
mão, corrijo
logo muito pronto
num juramento solene
- Estes.
de mão no ar
como a minha mãe na plataforma de embarque de Santa Apolónia
uma mão cheia
de anos
de tristeza
de adeus
e por isso
quando seis, já
ainda a levantar uma mão apenas. Para quê complicar as coisas quando, a partir de certa altura, uma mão cheia diz tudo?
anos
tristeza
adeus…
…para quê complicar as coisas…?
uma mão apenas
no ar
cheia
vazia
cheia de vazio
outra forma de dizê-lo
adeus…
apenas uma
… para quê complicar…?
a outra, na barriga
enorme
sete meses
para que a minha irmã não chorasse
pois (para quem não sabe) os bebés choram na barriga das mães. E quando a placenta já lhes não contém o peso das lágrimas, vêm chorar cá para fora, que há mais espaço para o lamento. Se calhar por isso a Cristina a nascer de oito meses, pois as lágrimas da minha mãe a irem-lhe pela goela abaixo juntar-se às suas, que nos olhos, uma lentura apenas .
E nisto um
Tuu-Tuu
ou eu a achar que um
Tuu-Tuu
a pôr o comboio em marcha
- Paris de França…
Mil cabeças à janela…
- Qual é o pai, mãe?
E uma lágrima a transbordar da placenta para os lábios sumidos, que agora, sim, era a sério
Tuu-Tuu
- Qual é o pai, mãe?
a não alcançar resposta
porque a voz atabalhoada talvez não chegasse lá acima
(que a voz dos pequenos…)
o caso da avó Maria
a não alcançar resposta
- … assim na Terra como no Céu…
- Qual é o pai, mãe?
a não alcançar resposta
mil cabeças à janela
e um alarido de braços no ar a despedirem-se do meu pai
da minha mãe
na mala
numa moldura foleira
(a própria palavra…)
a caminho de França
há cinquenta e três anos
como se fosse hoje
a última vez que
- …rapazão!
na plataforma de embarque de Santa Apolónia
uma floresta de gente
pernas e vozes
braços no ar
a despedirem-se
do meu pai
para sempre
(…)
para sempre
para sempre
para sempre
Tuu-Tuu…