Thursday, July 05, 2007

Toma lá

Chamava-se Suzy e foi a minha primeira boneca. Recebera-a de presente no meu quinto aniversário quando o meu pai

- Toma lá.

sem embrulho, sem nada. Para não sufocar

não por desleixo

para não sufocar.

Eu compreendo, pai!

- Toma lá.

Apenas aos cinco. Antes disso, qualquer memória; vida alguma. Antes, creio que não existia. As coisas que não lembramos não existem, não é? Devo ter nascido com cinco anos. No dia em que o meu pai

- Toma lá.

Sem embrulho…

não por desleixo

para não sufocar.

Eu compreendo, pai!

Foi o dia mais feliz da minha vida. Ainda hoje é, porque foi o meu primeiro dia

pois

antes disso, qualquer memória; vida alguma.

o meu primeiro dia

por isso, não

- Trinta e oito.

quando

- Idade?

mas trinta e três

visto que

as coisas que não lembramos não existem, não é?

Tratava-a como parte de mim. Ainda me recordo do cheiro a borracha doce da sua cara, e de um cheiro mais pesado; dos seus cabelos. O cheiro abafado dos cabelos das bonecas. Um cheiro único, indescritível por metáforas ou comparações. É o cheiro do cabelo das bonecas. Dizer o quê!? O cheiro que quem nunca teve bonecas não pode compreender, por mais que

mais pesado

abafado

metáforas.

No dia seguinte dei-lhe banho e cortei-lhe o cabelo. Durante uns dias tudo normal. Mas quando percebi que não voltava a crescer, tive o primeiro contacto
não com a palavra
com o sentido - irreversibilidade - pois uma criança não tem contacto com palavras deste tamanho mal acaba de nascer.

Por isso

apenas o sentido

irreversibilidade:

o primeiro contacto com a morte; com a realidade. A minha primeira dor; primeira desilusão. Não o Pai Natal, como a muitos; não quando o meu pai

- Toma lá.

sem embrulho, sem nada. Para não sufocar

não por desleixo

para não sufocar.

Eu compreendo, pai!

Nada disso! Os cabelos da Suzy. Nada era mais real para mim e nada me custou até hoje como aquele confronto; o facto de a Suzy não estar viva.

O meu primeiro desgosto; primeiro luto. A minha primeira culpa, pois tinha sido eu a matá-la: Dalila traiçoeira. A sua vida nos cabelos. E agora nada. Nem um brilho. Apenas um amontoado de borracha e tecido pronta a decompor-se-me nas mãos.

Sem embrulho, sem nada.

Eu compreendo, pai!

Os cabelos sempre do mesmo tamanho, a única coisa a crescer era a frustração do nunca mais; a certeza que a boneca morta, ainda que não apodrecesse

ainda que de olhos abertos

se a punha em pé ou sentava -

mas nenhum brilho; pontinha alguma de vida -

o cheiro a borracha ainda presente, mas aquele cheiro mais

pesado

o cheiro abafado dos cabelos das bonecas

único

indescritível por metáforas

comparações

que quem nunca teve bonecas não pode compreender

esse

nunca mais.

E eu a perceber que nem só de olhos fechados se está realmente morto. Por isso, quando o meu pai morreu, a dor a não custar-me tanto. A custar-me quase nada. Não porque ele sempre ausente, nenhuma palavra, nenhum gesto

um embrulho que fosse

mas porque muito cedo contacto com

o sentido

não com a palavra

com o sentido apenas

pois uma criança não tem contacto com

(irreversibilidade)

palavras deste tamanho mal acaba de nascer.

E por isso habituada já. O que custa e a primeira vez, não é?

E eu a ouvir, uns anos mais tarde, que aos mortos crescem as unhas e o cabelo e a ter a garantia de que a Suzy mais que morta

pois nem unhas nem cabelo

silêncio apenas.

Morta desde sempre, uma fraude. Até nisso, a única coisa que o meu pai

- Toma lá.

desprovida de afecto, de vida

de embrulhos

cheia por mim de coisas invisíveis

ilusões

como tudo na minha vida: o meu pai; as minhas memórias de mim

desde os cinco anos

quando nasci

sempre eu a encher de coisas invisíveis

ilusões

o “não sei quê” entre nós.

Enquanto o pai

nem uma palavra, um gesto

um embrulho que fosse.

Sempre eu a

- …compreendo, pai!

Morta desde sempre. Enganada desde sempre. Eu que a tinha enterrado no jardim, porque a julgava morta e ela simplesmente

cansada

como o meu pai

- …cansado, filha.

- Não maces o teu pai, Mafalda. Não vês que está cansado, filha.

Como a Suzy. Não morta, cansada apenas…

Por isso, quando o meu pai morreu, a dor a não custar-me tanto. A custar-me quase nada. Não porque ele sempre ausente; nunca uma palavra, um gesto

um embrulho que fosse

mas porque muito cedo contacto com

o sentido

não com a palavra

com o sentido.

I.N.R.I

- O André não anda nada bem, Gaspar!

a mãe do meu melhor amigo, num desses cafés da moda, onde combinou comigo um encontro para falar do filho.

- Tu és o melhor amigo dele, Gaspar. De certeza que a ti ele ouve.

e o André

- Não me chateies Gaspar! Foda-se, pareces a minha mãe!

se eu por ventura

- Meu, o que e que se passa contigo?

- Passa-se que de um dia para o outro toda a gente acha que tem o direito de se meter na minha vida!

- Não é que eu me queira meter na vida dele. Entendes, Gaspar? Mas é que ando preocupada. Que diabo, sou mãe!

E os meus olhos a ganharem vida própria na direcção daquele peito de mãe, aflito, onde um Cristo fulgente me convidava a um abraço.

- Não pára em casa; não me dá ouvidos; só fala aos gritos; não quer estudar nem trabalhar. Eu não sei onde isto vai parar!

- Nem eu! - respondi por reflexo, incapaz de controlar os olhos.

- Mas sabes alguma coisa, Gaspar?

- O suficiente para fazer uma mulher da sua idade muito feliz! - formou-se-me no pensamento.

- Não, não. Não sei nada. - transformou-se-me nos lábios.

como que renegando aquele Cristo que me tentava os olhos. Ali estava Deus e o Diabo, à direita e à esquerda do Senhor, a testarem a minha fé, numa Santíssima Trindade, dizendo-me

- Olha para mim. Olha para mim…

num hipnotismo difícil de resistir.

- Olha para mim, Gaspar. Sabes alguma coisa?

- Hum?

- Estás-me a ouvir?

- Sim, claro! Não sei nada.

- No outro dia encontrei-lhe isto debaixo da cama.

e uma mão estendida na minha direcção com uma pratinha queimada, onde faltava o bombom, provavelmente na sua boca, a sua língua, que eu teria de buscar sem usar as mãos, como um Cristo.

- Olha para mim. - um peito aflito.

- Olha para mim. - uma cruz aflita.

e eu num esforço tremendo a fingir não reparar que a mãe do André

soutien algum

necessidade alguma de um, apesar da idade

quarenta e poucos

dois filhos.

- Nem com a irmã ele fala. E eram unha e carne.

Unha e carne, unha e carne, unha e carne…

soutien algum

necessidade alguma

e eu num esforço tremendo a fingir que a mãe do André não estava a inventar aquele pretexto todo para se fazer a mim

para me entregar ao suplício num ecce homo.

E eu num esforço tremendo a fingir que acreditava que as mulheres não todas iguais. E eu num esforço tremendo a fingir que se tinha esquecido do soutien com a pressa de falar comigo.

- Ando com a cabeça esgotada.

- Olha para mim..

Os olhos pareciam preocupados, mas os lábios…

- Olha para mim…

- E para mim.

- E para mim.

E nisto o crucifixo a mexer-se. Os braços de Cristo a forçarem os cravos

dois pinguinhos de ouro

não cravos

pinguinhos de ouro

porque para um rei é o mínimo

ainda que sendo rei do judeus

portanto

a forçarem os pinguinhos de ouro

tentado pelo abismo que se abria a seus pés. Não poderia haver pior calvário! E nisto eu cheio de inveja do Redentor; de braços esforçados contra os pinguinhos de ouro, procurando lançar-se no abismo, render-se à tentação, ao vale do inferno profundo, o purgatório indeciso entre o bem e o mal

- … o bom e o mau seio… - na explicação psicanalítica do meu pai.

ambos bons

apesar da idade

quarenta e poucos

E eu a querer que ele caísse da cruz, a querer tomar o seu lugar, o seu martírio, a Paixão por completo

vontade de gritar

- Sou eu o rei dos judeus!

- Barrabás? - Não senhor! O profeta.

a pedir a Deus que me martirizasse a mim

dois pinguinhos de ouro

três, pronto

cravos de ferro, que não sou de luxos

porque dali, com certeza que se vê melhor o mundo, a aflição dos homens

o peito de uma mãe que

- … a cabeça esgotada.

soutien algum

necessidade alguma de um, apesar da idade

quarenta e poucos

dois filhos.

- No outro dia encontrei isto

e não uma pratinha

pratinha alguma

um invólucro de borracha transparente

como se

- O corpo de Cristo.

na pontinha dos seus dedos

e o corpo de Cristo uma composição de latex

talvez por questões de higiene ou de conservação

e eu fingindo que a acreditar

que as mulheres não todas iguais.

E eu fingindo que a acreditar

que o decote apenas por causa do calor

não para torturar Cristo, ou o mais forte dos homens.

E eu com inveja daquele Mártir e de sua tentação Madalénica.

Com vontade de gritar

- Sou eu, sou eu o rei dos Judeus. O filho do Senhor. O Messias. O que vocês quiserem, mas por favor, um lugar na cruz.

dois pinguinhos de ouro

três, pronto

cravos de ferro

o que der mais jeito.

Dispenso a coroa. Não sou de ostentações.

E um suor frio a percorrer-me o corpo

uma fraqueza

de repente

- Nada. Não se passa nada!

- Gaspar!?

uma quebra de tenção, talvez

- Deve ser isso. Uma quebra de tenção!

talvez açúcar

qualquer coisa do género

mais “qualquer coisa do género”

tudo desfocado

turvo

os sentidos

qualquer coisa do género

- Gaspar!?

- Gaspar…

- Olha para mim.

- Estás bem?

- Não, não sei nada.

Hora de Almoço

Uma hora de almoço, e já lá vão dez minutos, porque nunca saio a horas e

cinco minutos mais cedo

eu de novo a subir a escada, porque não se justifica o elevador para um primeiro andar. Daí que uma hora de almoço uma força de expressão com quarenta e cinco minutos apenas. Da mesma forma a vida, que devia ser cem anos, não bem cem anos, visto que dez minutos depois; cinco minutos antes. E com a conversa já lá vão mais cinco e a hora de almoço reduzida a quarenta minutinhos apenas. Porque a partir de certa hora, minutinhos e não minutos.

A vida a encurtar, a hora de almoço a encurtar e

- Uma sandes de ovo e um sumo natural.

Saudavelzinho!

Se os ovos da capoeira da tia Alzira, não de um aviário qualquer, algures em Espanha.

O mais certo!

Saudavelzinho!

Se não os compostos químicos no concentrado de sumo que, natural, importado algures da América Latina.

Mas então o quê!? Um homem trabalha, tem de se alimentar. E que não trabalhasse, ora essa! Rápido e barato, que uma hora de almoço

não bem cem anos

dez minutos depois; cinco minutos antes.

por isso

- Uma sandes de ovo…

espanhol

- …e um sumo natural.

latino-americano

(como se a América Latina um só país)

Saudavelzinho!

E em quinze minutos eu fora, na rua outra vez, que os balcões dos snack-bares não são para fazer sala. Há mais quem queira comer e não lhe reste mais que dez minutos de vida,

portanto,

outra vez na rua

sozinho

porque nenhum colega de trabalho

ou melhor

no restaurante vegetariano, ali ao pé, onde nunca entrei. Não porque não vegetariano, mas porque o dinheiro, como a vida, a hora de almoço, a encurtar. Ou pelo feitio solitário, não sei. Se calhar apenas por não muito bem-vindo, ainda que

- Se não fosses tão amigo da carninha…

como quem diz (sem dizer)

“vinhas connosco”.

nunca me tenham convidado.

E eu apenas

- Pois!

como quem diz

“vão-se lixar!”

como para o empregado de balcão

- Uma sandes de ovo e um sumo natural.

Saudavelzinho!

- … tão amigo da carninha…

Menos quinze minutos, quatro euros e trinta; cinco com o café.

Na rua, portanto, dizia, não com os colegas de trabalho

no vegetariano

não porque vegetarianos, mas porque uma boa desculpa para eu não os acompanhar

visto que

- … tão amigo da carninha…

E eu que não acompanharia de qualquer das formas, porque o ordenado, como a vida, a hora de almoço…

eu que não acompanharia

eu que não acompanho

Podem ir a outro restaurante, não se prendam por mim!

Coitados! Sempre a privarem-se

- …da carninha…

do peixinho

Saudavelzinho!

- Se não fosses tão amigo da carninha…

Se não fosse tão amigo da carninha o quê?

Celso

Vinhas

Chamo-me Celso Vinhas!

Podem completar a frase, sem se comprometerem. Podem simplesmente

“Se não fosses tão amigo da carninha, Celso!”

- Custa muito? Hum? Custa?

Em vez das reticências

Celso

Digam:

“Se não fosses tão amigo da carninha, Celso Vinhas”

connosco

E eu, de qualquer das formas

descansados

não ia

somente

- Pois!

não tinha intenções de mais que

- Pois!

Por isso, completem a frase com o meu nome, ao menos!

Eu prometo que

- Pois!

não mais que

- Pois!

Não comprometo, prometo!

Eu feliz porque a acelerar. O tempo, a vida, o ordenado. Vinte e cinco minutos ainda; uns trocos depois das despesas pagas: um cinema, um livro; uma excentricidadezinha de quando em quando. Quem sabe um teatro; um dia uma ópera no São Carlos! E os sonhos a consumirem tempo - que é disso que os sonhos se alimentam - como pombos cheios de asas a debicarem ponteiros pelas praças fora

Pic, pic, pic, pic…

Melhor um livro. Mais tempo. Que o teatro, como o cinema, a vida ou a ópera, uma hora de almoço e

Puf

já se foi

(porque cinco minutos mais cedo… de novo a subir a escada… não se justifica o elevador para um primeiro andar)

enquanto o livro, o mesmo preço, e uma longa metragem, uma série.

Sigo pela avenida, procurando o Sol por entre a ramagem, e sento-me a admirar um canteiro, onde um carreiro de formigas (sem pausa para o almoço) m m m m m m m m m m m m, em filinha, m m m m m m m m m m m m

sem pausa para o almoço que as formigas

- … se alimentam de trabalho! - como diz o patrão Esteves, ao ver-nos sair para o almoço

- Vocês deviam era ser como as formigas que…

Realmente nunca vi uma formiga a comer. Desde criança que me despertam o interesse. Quando será que pausam para o almoço? Lá em cima devem-se fazer a mesma pergunta!

Será que almoçam juntas? No vegetariano uma e outras

- …tão amigas de carninha…

E nisto, eu de cócoras, a aproximar os olhos

não bem olhos

as antenas

(digamos que antenas, para facilitar)

e a cabeça toda já dentro do formigueiro, o corpo todo numa marcha rápida que a vida não bem cem anos

dez minutos depois; cinco minutos antes.

e túnel após túnel, galeria após galeria, num correr desalmado, cada qual com a sua folhinha na boca

a sua pasta

o seu jornal

qualquer coisa que não distingo porque sete minutos apenas e ainda duas ruas um túnel, uma praça ou galeria

cheias de m m m m m m m m m m m m, em filinha, m m m m m m m m m m m m, num agitar louco que

Lá em cima

a mesma pergunta

despertam o interesse

para cá, para lá, para cá, para lá…

como pombos cheios de asas a debicarem ponteiros pelas praças fora

Pic, pic, pic, pic…

e

cinco minutos mais cedo

a desembocar

na minha galeria

de olhos afogueados

não bem olhos

antenas

(digamos que antenas, para facilitar)

a subir a escada, porque não se justifica o elevador para um primeiro andar.