Sunday, March 26, 2006

…carne de macaco e banana cozida

- Quando eu estive preso na Guiné… - o meu tio Ricardo à mesa do almoço, de cigarro preso na pontinha dos dedos, com a mão de lado, como se segurasse uma bandeja… - só nos davam carne de macaco e banana cozida!

E eu a saber que era mentira. E toda a gente a saber que era mentira, menos a minha avó, que durante quatro anos julgou o filho morto, embora apenas

- Preso, minha mãe! Nem queira imaginar! Um horror!

embora apenas em Espanha, com um catalão que conhecera no Algarve, um amigo (que nesse tempo os homens ainda não tinham namorados).

- Um horror!

E eu a saber que era mentira, porque a minha mãe (ou talvez a minha tia para a minha mãe):

- Achas mesmo que o Ricardo esteve no ultramar?!

porque minha mãe

- Era uma autêntica mulher quando se maquilhava e vestia com as nossas roupas!

porque o meu pai

- Chamavam-lhe a Borboletinha da Ribeira!

porque a minha mãe (não a minha tia para a minha mãe)

- Coitado! Todos faziam troça dele! Não tinha um único amigo!

Até ao dia em que, na Praia da Rocha (não em Santa Margarida como todos pensavam), um catalão:

- Tienes fuego?

E o meu tio (não no quartel como todos pensavam), num dancing-bar da Portimão, de braço esticado, com a arma de fogo na mão (não a G3 como todos pensavam); um isqueiro de prata que lhe havia dado um outro amigo (que nesse tempo os homens ainda não tinham namorados).

- Coitado! Todos faziam troça dele! Não tinha um único amigo!

Até ao dia em que (na manhã seguinte) o novo amigo, (que nesse tempo os homens…) a pedir-lhe

- Vien comigo para Barcelona!

Até ao dia em que

- Fui mobilizado para a Guiné!

à hora do jantar (como agora à hora do almoço), mas sem o cigarro preso na pontinha dos dedos, com a mão de lado, como se segurasse uma bandeja, porque o meu avô ainda vivo e

- Eu que sonhe que vocês fumam!

Até ao dia em que uma choradeira enorme porque:

- Ai, que o meu rico filho vai para a guerra!

Ainda que apenas para Barcelona. Ainda que apenas com um amigo (que nesse tempo…).

- Coitado! Todos faziam troça dele! Não tinha um único amigo!

E, em menos de uma semana, no comboio para Lisboa, onde dias depois um barco o enviaria, não para o ultramar, com outros tantos da sua idade (como toda a gente pensava), mas para Barcelona, apenas com um amigo (que nesse tempo os homens ainda não tinham namorados).

- Chegava a estar aos três dias sem uma pinga de água! - e uns lábios em forma beijo a sorverem ao de leve o filtro preso na pontinha dos dedos, numa mão de lado, como se segurasse uma bandeja, porque o meu avô há muito falecido e já não

- Eu que sonhe que vocês fumam!

- Três dias! Imaginem vocês!

enquanto a minha avó a emocionar-se e a apertar-lhe a mãozinha gorda aninhada sobre um delicado cruzar de pernas.

- Eram uns selvagens! Não sei como não morri!

E eu a saber que era mentira. Não porque a minha mãe (ou a minha tia para minha mãe), mas porque um dia, um diário, sobre os meus joelhos esfolados de miúdo traquina, a abrir-se em segredo, como uma caixa de Pandora e lá de dentro

“Esteban! É assim que ele se chama. Que nome meu Deus! Que homem! Pediu-me lume a noite toda. E de cada vez que se aproximava, de cigarro nos dedos, eu tremia todo, como se um “fiscal de isqueiros” ou um polícia

- A licença do isqueiro?

E não apenas

- Tienes fuego?

Como se um “fiscal de isqueiros” ou um polícia

- Ai não sabia?! Decreto-lei nº 28219!

E não apenas

- Muchas gracias!

Não tirou os olhos de mim a noite toda. Eu tremia por dentro, como se um “fiscal de isqueiros” ou um polícia

- São duzentos e cinquenta escudos de multa!

E não apenas

- Es mui guapo!

Que loucura, meu Deus!”

- Não sei como não morri! … carne de macaco e banana cozida! Um horror!

E eu a saber que era mentira. Não porque a minha mãe (ou a minha tia para minha mãe), mas porque um dia, um diário - segundo, terceiro, quarto - sobre os meus joelhos

“Como foi que ele me pode fazer uma coisa destas?!” Cabrão! Cabrão! Cabrão! Mil vezes cabrão! Hijo de puta! Cabron! Com um balarinozinho de merda! Filho da puta, cabrão! Mil vezes cabrão! Quatro anos da minha vida…Paneleiro de merda! Filho da puta, filho da puta, filho da puta…”

- Não sei como não morri! Um horror!

porque um dia, um diário - segundo, terceiro, quarto - sobre os meus joelhos

“Foi Deus que não quis que eu morresse! Foi o pior dia da minha vida! Nunca me tinha sentido tão só! Nada valia a pena e… Cheguei ao hospital já quase sem vida! Se não tivesse sido a senhoria (que todos os dias me batia à porta a reclamar a renda em atraso)…”

- Se não tivesse sido a preta que nos levava a comida (se é que àquilo se podia chamar comida), a apiedar-se de nós…

“Se não tivesse sido a senhoria (que todos os dias me batia à porta a reclamar a renda em atraso)…”

- Hoje não estaria aqui! - o meu tio Ricardo à mesa do almoço, de cigarro preso na pontinha dos dedos, com a mão de lado, como se segurasse uma bandeja, porque o meu avô há muito falecido e já não

- Eu que sonhe…

Wednesday, March 15, 2006

E se de repente parássemos para pensar?

- E se de repente parássemos para pensar? - o Ramos a perguntar para o ar do café, no intervalo de dois golos de cerveja, onde apenas nós dois, ao fim do dia, depois do trabalho.

- “E se de repente parássemos para pensar?”

Eu a não dizer nada e, pousado o copo, lambidos os lábios, o Ramos, que não esperava resposta, a responder:

- Seria uma tragédia! - entre um franzir de testa e um esgar de boca. Para continuar logo de seguida:

- Somos (e ai de quem disser o contrário) seres pensantes. Mas, se parássemos para pensar no que isso significa realmente, a que conclusão chegaríamos? A mim parece-me que a nenhuma! Somos todos mais espertos que o vizinho do lado. O que significa - repara - que o vizinho do lado é mais esperto que nós. E aqui começa o paradoxo e termina a argumentação. A verdade é que passamos a vida a tentar enganarmo-nos uns aos outros, esquecendo-nos que os outros fazem exactamente o mesmo. Damos graxa ao patrão e ele finge que não percebe; sorrimos para o peito da secretária e ela finge que não percebe (ao mesmo tempo que aumenta o decote e diminui a saia para aquele colega de trabalho que também finge que não percebe). E até nos achamos mais espertos que nós mesmos, ou não passaríamos a vida e tentar enganar-nos quando, ao vermos o cabelo desaparecer do espelho, mudamos o risco e o reflexo finge que não percebe. Da mesma forma que elas olham para o peito a render-se à inclemente lei da gravidade, apertam o wonderbra, dão duas voltas no provador da loja e a imagem, de busto em riste, finge que não percebe. E assim nos vamos coçando uns aos outros, conforme a conveniência do momento, pois, apesar de seres pensantes, não temos tempo para pensar em tudo. Asinus asinum fricat.

Muito gosta o Ramos das expressões latinas!

- Que é como quem diz… - e traduzia, à sua maneira - …um burro arranja sempre outro burro que o coce.

Enquanto um gesto circular, na linguagem que só os empregados dos cafés entendem, a pedir mais duas cervejas para aquele canto do café, onde apenas nós dois, ao fim do dia, depois do trabalho. Enquanto o Ramos:

- Acordamos um dia e estamos cheios de responsabilidades: filhos para criar, casamento para gerir, casa, carro (vários outros luxos para pagar) e horários para cumprir. Mas já são sete e meia e não podemos perder tempo com questões existenciais, porque ainda temos de acordar e preparar os miúdos (que ainda ontem éramos nós) e levá-los ao infantário antes de seguir para o trabalho. Um duche metódico e sem prazer desperta-nos os sentidos moles e começamos a sentirmo-nos melhor, como se realmente estivéssemos no caminho certo e, ao chegarmos à garagem, temos o dissipar de todas as nossas dúvidas, a concretude material de todos os nossos sonhos.

E os meus dedos a afagarem a chave do carro, como se uma parte de mim, como se me doesse a sua perda… e doeria com certeza! E os meus dedos a afagarem a chave do carro na continuação de mim, ao lado do telemóvel, da carteira, do maço de tabaco, do isqueiro, dos óculos escuros, no meio de um pensamento feito, dito: - Mas que raio de tanta coisa têm as mulheres para pôr na mala? E a resposta a vir em forma de duas cervejas para a mesa. E a resposta a apagar-se cinzeiro e na lembrança. E a resposta a sumir-se entre os lábios do Ramos que:

- No posto do costume, que nos acompanha a caminho do trabalho, surge uma música que conhecemos de cor e que nos reporta vinte anos atrás, àquele beijo despido de responsabilidade que demos numa colega de escola, na época em que ainda era frequente ouvirmos “ainda não tens idade para isto, para aquilo e para aqueloutro”. Mas à entrada da cidade o trânsito abranda e uma notícia despersonalizada rebenta-nos o balão da lembrança, e um atentado no Médio Oriente toma o lugar do beijo sem nome na memória. Mais dez, menos quinze, mais vinte, menos cem… O que importa? E o pensamento não pensado de: - Onde é que isto vai parar? E uma buzinadela tolhe o esboço de reacção, e outra e outra diminui-nos aquilo de que mais soberbamente nos orgulhamos: a nossa racionalidade! Enquanto o mundo avança lento num marasmo de pára-arranca rumo ao centro da cidade, rumo à outra ponta do universo.

Os meus olhos fixos nas palavras invisíveis que se entrançavam diante dos lábios lambidos do Ramos, e o movimento concordante da minha cabeça, a darem-me, com certeza, um ar hipnotizado de cão de chapeleira.

- A porta da empresa, a cara inchada dos colegas, o gel e o rímel, os apertos de mão porque sim e um beijo ou outro pela mesma razão. “Aos seus lugares…preparar…largar!” Começa o desenfreanço e, até à hora do almoço, tudo perece real. Somo adultos, finalmente! Responsáveis! Doutor! Doutora! Dona Alice! Senhor António! Fotocópia, fax, telefone, mail, pbx, xpto! Elevador rumo ao bar da esquina… Moda, desporto, collans, motores, ombros largos, belas ancas, e: uma fatia de quiche, uma sopa, uma salada, um sumo natural, uma conversa actual sem propósito ou consequência e os velhos temas de sempre. Homens v.s mulheres, bons v.s maus, espertos v.s parvos, ricos v.s pobres, amor v.s sexo, Homem v.s animal…

Temos representação simbólica.

Mas denominamo-nos racionais!

Inventámos o fogo!

E depois a pólvora, as ligaduras e a morfina.

Inventámos a roda!

E cada vez somos mais quadrados!

Conquistámos o dom da fala!

E perdemos a dádiva da escuta!

Criámos cidades, inventámos o automóvel e o relógio!

E depois a necessidade urgente de férias no campo.

Organizámos sociedades e fizemos leis!

E constantemente colocamos em causa a sua justiça.

Casamo-nos para toda a vida!

E uns anos depois juramos que nem mortos queremos ver a outra pessoa à frente.

Descobrimos a comida rápida!

E construímos ginásios por todo o lado.

E o discurso flúi, infecundo, num propósito masturbatório de alivio de tensão. Três quartos de hora: comida rápida, conversa rápida, café expresso! Até que… de novo adultos e responsáveis, e mais papeis e valores virtuais, mais reuniões e sorrisos profissionais, mais segundos, mais minutos, menos horas e de novo dentro do carro a caminho de casa, com o recibo do ordenado aos pulos no bolso; o comprovativo da nossa esperteza; a prova cabal que orgulhosamente exibimos perante nós mesmos e que apenas nos diz que vendemos o nosso tempo por um preço que mal chega para comprar um “tempinho” para nós.

E os meus dedos, húmidos do copo (não da ansiedade), a folgarem ligeiramente a corda, em forma de gravata colorida, que me apertava o goto, enquanto a minha cabeça, presa por um arame, apenas: sim, sim, sim, num balanço sem vontade.

- Mas a nossa cabeça não aguenta com tudo - continuava o Ramos - ainda que sejamos o topo de gama do macaco moderno, e a atenção vai para o carro do lado, onde uma jovem retoca a imagem gasta no retrovisor mágico. Espelho meu, espelho meu…Uma buzinadela e um cartaz antigo a lembrar-nos de uma promessa por cumprir com o rosto de um político no qual já nem sabemos se votámos ou não. E avançamos, lentos… primeira, ponto morto; segunda, velocidade de cruzeiro; stop à frente… stop… stop atrás. Insiste, inspira…repete do início. Mas seguimos em frente, porque ainda temos de ir buscar os miúdos ao infantário, deixando para trás o senhor do cartaz a sorrir para o carro seguinte. E um cliché, como um desabafo, a sair-nos qual espirro inesperado, ante o sorriso político que já não vemos: “Eles querem todos é tacho!” - um comentário insignificante vazio de significado. Mas seguimos em frente, porque ainda temos de passar no supermercado a comprar qualquer coisa rápida para comer diante da televisão, pois cada minuto é de ouro e esses ninguém nos paga. O melhor tira nódoas; os melhores cereais; o melhor creme hidratante; o iogurte macérrimo, menos 200% de gordura. Ómega3; L. casei imunitass; bífidos activos; poliinsaturados. E, logo de seguida, as perguntas por que todos esperam: - Quem quer ser bonita? Quem quer ser famoso? Quem quer ser milionário? E todos de braço no ar. Eu! Eu! Eu! E o sonho aumenta enquanto a cabeça pende sobre o peito vazio, porque o sono nos faz festas na cabeça dormente como que dizendo: - Lindo menino! Linda menina!

E um bocejo contido a formar-se-me diante da boca muda, trazendo-me as lágrimas aos olhos, enquanto um dedo a aproveitar a deixa para se instalar entre lábios, encaixando a unha entre os dentes nervosos, por só agora se lembrarem que já sete da tarde e o boletim da sorte aos pulos no bolso… no mesmo bolso que o recibo do ordenado… No mesmo bolso que o recibo do ordenado!!! No mesmo bolso que a desculpa, dita: - Olha, são dez euros que ficam em caixa! No mesmo bolso que as palavras do Ramos:

- E assim, mais uma folha amarelece e cai da árvore dos dias. E assim, menos uma folha verde no calendário da vida. E assim, folha a folha, vamos desaparecendo da face do espelho (já sem risco ou wonderbra que nos valha) e já temos de nos pôr nos bicos dos pés, como há muitos anos atrás, para chegar à prateleira onde íamos buscar já não nos lembramos de quê! E assim hipotecamos os melhores anos da nossa vida a arranjar dinheiro para pagarmos os remédios e a mensalidade do lar quando chegar a hora do merecido descanso. Porque afinal, a vida não é só… (isto?). E assim deixamos passar o comboio dos sonhos à espera da limousine da ilusão (que são coisas distintas), e que “na realidade” não passa de uma abóbora sem réstia de magia. E assim nos perdemos do que somos, à procura daquilo que julgamos ser. E assim se passa o tempo na vida de um macaco sábio: o expoente máximo da cadeia evolutiva (ai de quem disser o contrário)! Mas a fona da vida não nos dá muito tempo para pensarmos nisto e ainda bem. Porque o que será que acontecia se de repente parássemos para pensar? - o Ramos a perguntar para o ar do café, no intervalo de dois golos de cerveja, onde apenas nós dois, ao fim do dia, depois do trabalho. O Ramos, que não esperava resposta, a responder:

- Seria uma tragédia! - entre um franzir de testa e um esgar de boca.

Eu a não dizer nada, enquanto ele, pousando o copo, lambendo os lábios, fazendo um gesto circular, na linguagem que só os empregados dos cafés entendem, não para duas cervejas, mas a conta, porque o tempo passa depressa e o Ramos:

- Ainda tenho de ir apanhar a mulher e os putos!

Porque o tempo passa depressa e o Ramos:

- É assim a vida! - na mais portuguesas das expressões.

Porque o tempo passa depressa e o Ramos, como se não tivesse dito nada:

- Bem, até amanhã Zé Miguel!

Porque o tempo... passa depressa!

Sunday, March 05, 2006

Só até que a poeira assente…

Lembro-me perfeitamente do dia em que ela lá apareceu em casa, de malas e sacos na mão. Trazia um vestido azul, do qual não me recordo muito bem, mas que lhe ficava acima dos joelhos, quadrados e grossos, que nunca consegui esquecer. Era uma amiga de liceu da minha mãe e chamava-se Virgínia. Eu devia de ter os meus treze, catorze anos, e na cara nem um ameaço de barba. Tinha descoberto há pouco tempo os últimos fluidos do meu corpo, aos quais os joelhos de Virgínia vieram trazer um novo sentido.

Vinha para passar uns dias, até organizar a vida, que estava virada do avesso, mas foi ficando

- Só mais uns dias!

agarrada às folhas do calendário.

O homem com quem vivia tinha-a posto fora de casa, e nem os próprios pais a quiseram receber.

- Não se juntasse com ele! Eu avisei-a! - dissera o pai para mãe que, ao segredá-lo a uma vizinha, o soltou no ar da Ribeira do Porto.

Tinha vindo para Lisboa atrás de um sonho (de um desejo, será mais verdade), mas a felicidade não durou muito tempo pois, segundo ouvi da sua boca e da da minha mãe:

- Os homens fartam-se depressa dos brinquedos!

Depois de o meu pai sair de casa, ia para três anos, o escritório ficara livre. Livre dele, mas cheio de outras inutilidades. A porta vivia fechada e era lá que a minha mãe guardava toda a tralha que a fazia lembrar-se dele, mas que ainda não tinha conseguido deitar fora. Foi outra coisa que aprendi acerca das mulheres! Agora as coisas iriam ocupar caixotes debaixo das camas (da minha inclusive), pois seria lá que Virgínia se haveria de instalar nos próximos tempos. Como dizia:

- Só até que a poeira assente…e a cabeça também!

No entanto, nessa noite, haveria de dormir na sala. Mal instalada segundo a minha mãe,

- Nunca tão bem!

segundo ela mesma. Nessa noite, aqueles joelhos quadrados e grossos fizeram de mim um homem à séria e foram o meu objecto de vício durante mais uns dias, altura em que comecei a escorregar os olhos pelas arredondadas barrigas das suas pernas abaixo: dois papos de rola em ponto gigante.

Foi-se passando o tempo e eu também. Ficavam até tarde, a conversar na sala, enquanto eu me haveria de deitar logo após a primeira novela da noite. Mas era na fofa alcatifa do corredor que eu me sentava, clandestino, a ouvi-las entrançar cochichos e risinhos infantis. Foi ali, naquele corredor alcatifado, sob o olhar de um bando de patos levantando voo à frente da espingarda de um caçador mal pintado, que eu aprendi “tudo” quanto havia no mundo para aprender sobre mulheres. Foi ali, sob a mira daquela espingarda de faz de conta, que eu descobri que afinal a minha mãe era uma mulher como todas as outras. Foi ali, sob a piscadela de olho, cúmplice, do caçador de patos, que eu me comecei a fazer homem.

- Ai amiga, cada vez que penso no peito daquele homem cai-me tudo aos pés! Enorme, musculado… e sem um único pêlo! Valha-me Deus!

E eu a julgar que os fins-de-semana que passava com o meu pai eram para a minha mãe uma penosa solidão!

- Ai que horror! Eu cá adoro homens de peito peludo, Manuela! Para pelada estou cá eu! Gosto de ficar a enrolá-los com a pontinha da unha.

Assim, na manhã seguinte, peguei na gilete da minha mãe se preparar para a praia (e para uma ou outra eventualidade que até aí desconhecia) e, antes de sair para a escola, passei-a no peito até a penugem invisível desaparecer por completo sobre a pele rubra do esforço. Na cara passaria depois. Pois, quanto isso, não tinha havido qualquer referência. Nos dias que se seguiram, passei vezes sem conta os olhos expectantes pelo peito careca, na esperança que a penugem engrossasse e escurecesse. Mas nada! Até que um dia tive uma ideia brilhante. Pedi ao senhor Júlio, o velho barbeiro do bairro que me cortava o cabelo desde o dia em que me lembrava ser gente, que me deixasse levar os cabelos cortados para casa.

- É para um trabalho da escola! - disse-lhe, exactamente porque não era.

Passei um Sábado inteiro fechado no quarto a colar cabelos no peito, com uma cola que garantiam colar cientistas ao tecto e, com o ar mais natural do mundo, apareci na varanda, onde as duas se juntavam ao fim da tarde para tomar chá, fumar e falar de homens, para aquela que haveria de ser a gargalhada do ano. Nunca me senti tão ridículo na vida!

- Que é isso Paulinho? - perguntou-me a minha mãe com os olhos abertos até ao meio da testa.

- Ai, o teu filho é tão engraçado, Manuela!

E o meu peito, negro de caracóis, qual cabeça de boneca, a responder por mim, de mamilos baixos, como olhos fixos na ponta envergonhada dos ténis.

Os olhos da minha mãe voltaram ao lugar para se encherem de lágrimas, que lhe caíam, gargalhantes, aos pares pela cara abaixo.

- Quer ser um homem, que queres tu!?

E eu a correr direito ao quarto, com aquelas gargalhadas nas minhas costas humilhadas, donde só saí na segunda-feira de manhã, porque a paciência da minha mãe também tinha limites e a escola era sagrada. Educação física às oito e meia e o peito ainda cheio de pêlos e angústia que não havia conseguido tirar de maneira nenhuma.

- Quer ser um homem…

- Quero sim, quero sim, quero sim… - era a resposta raivosa às voltas dentro da minha boca muda, no balneário do Liceu, onde não tive coragem de tirar a roupa para a primeira aula da manhã!

- Que tens Paulo?

- Dói-me o peito! - foi a resposta sincera à pergunta do professor.

Fevereiro, Março, Abril… e os primeiros pêlos a aparecerem no queixo primaveril e nos sovacos, como flores de estação. Maio, Junho, Julho… e junto ao sexo também, como ervas daninhas em torno do tronco de uma jovem árvore. Só no peito nada, que era só onde eu os queria ter!

A vida de Virgínia já estava mais do que direita e a poeira mais do que assente, mas para a minha mãe era muito bom que ela lá continuasse em casa. Também ela se sentia sozinha para falar de homens e trocar ideias feitas sobre o assunto.

- No fim de contas são todos iguais!

- Nem todos! - respondia-lhe Virgínia com gozo na voz.

- Não entendem nada de mulheres!

- E nós entendemos alguma coisa de homens?

- Estás a comparar uma colher de pau com um robot de cozinha?

As gargalhadas ecoantes nos meus ouvidos clandestinos.

- Soubessem eles metade sobre nós daquilo que há para saber e éramos umas felizardas.

- Isso é verdade, amiga!

Pudesse eu gritar para o meio da varanda, para o meio do universo: - Eu sei! Eu sei! Pudesse eu dizer: - Só me falta é cabelos no peito!

Assim foi sendo, até ao dia em que um jovem bancário entrou na vida de Virgínia, estava eu quase a completar dezasseis anos, e ainda de peito liso: como a minha mãe gostava; como a Virgínia não, porque:

- Para pelada estou cá eu!

Haveriam de aparecer uns anos mais tarde, quando já não pensava nela, nem nos seus joelhos quadrados e grossos, nem no incorpóreo íman do seu peito que me atraía o olhar para o infinito negro do seu decote à época de se ir embora; quando a minha mãe (ainda sozinha) para mim, numa praia da costa:

- Vem ter connosco uma pessoa de quem gostas muito! - depois de desligar o telemóvel.

Mas aquelas palavras não acenderam dentro de mim o nome Virgínia. Acho mesmo que não pensei em ninguém. Acho mesmo que só pensei na frase depois de:

- Manuela!

- Virgínia!

E um abraço feminino na imensidão daquela paisagem de filme barato.

Estava de novo separada e de novo com a vida do avesso. Estava novo diante de mim e de novo como da primeira vez. Perfeita!

- Estás um homem Paulinho! - disse-me num tom de espanto, ao reparar em mim e no meu peito vaidosamente enegrecido.

Eu não sabia para onde olhar. Havia qualquer coisa entre nós por começar; por acabar; por definir. Pelo menos assim o sentia!

- Porque não ficas lá em casa uns tempos? - a minha mãe a perguntar-lhe, depois de dois minutos de conversa.

Virgínia olhou para mim com dois pontos de interrogação nos olhos.

- Fica! - insistiu a minha mãe, ante a nossa distracção.

- Não é chato? - sem tirar os olhos dos meus.

- Achas que sim?!

- E será que o Paulo não se importa? - tirando o diminutivo, já sem sentido, da frente do meu nome: a primeira peça de roupa a cair ao chão.

- Paulinho? - a minha mãe à espera de aprovação.

- Claro! - foi só quanto disse, coçando ao de leve o meu peito de homem.

E, sem desviar o olhar, enquanto a minha mãe me beijava a face e lhe apertava na mão envernizada, acrescentou num dilatar de lábios:

- Só até que a poeira assente…

Friday, March 03, 2006

Uma tela em Branco

O telemóvel, aninhado em cima da almofada, olhava para mim com o mostrador apagado. Eram oito da noite e não tinha qualquer vontade de pensar no meu jantar. Devia estar a começar o telejornal, mas a notícia que eu queria ouvir, seria pouco provável que o pivot a desse.

Notícia de última hora! Artur Gaidão volta para casa ao fim de dois anos de separação. O Professor de Artes Gráficas confessa amor incondicional pela mulher, Edite Gaidão,…Blábláblá…Agora, digam lá, senhores telespectadores, que o amor não é uma coisa linda!

Um desconforto no braço exigiu-me que pousasse o livro, que há mais de uma hora se abria inutilmente entre os meus dedos ansiosos. Não me lembrava de uma palavra que fosse. Talvez não tivesse chegado a ler uma. Recostei-me para trás no sofá, coloquei os pés envernizados sob um almofadão marroquino e fixei os olhos na tela em branco que havia por cima da lareira de enfeitar a sala.

- Uma tela em branco? Que falta de gosto Artur!

- Não é uma tela em branco! É a tela dos nossos segredos. Uma pintura que mais ninguém poderá entender, mas onde nós sempre nos havemos de encontrar. Será o diário da nossa relação; o nosso álbum de memórias; a tela de projecção do filme das nossas vidas.

Achei bonito e acreditei, mas não mostrei entusiasmo. Até porque já tinha dito que não gostava! E, além do mais, uma tela em branco na parede branca da sala não convence mulher nenhuma! A mim não convence! Mas a verdade é que lá foi ficando e despertando o interesse e a curiosidade de todos quantos nos visitavam?

- Porquê uma tela em branco? - era a eterna pergunta.

- Porque não uma tela em branco!?- era a eternal resposta.

- Ainda se tivesse a assinatura do Picasso! - comentou um dia um amigo nosso.

- Se tivesse, já não era uma tela em branco! - foi a resposta pronta do Artur.

E, verdade também, é que não havia quem não reparasse ou fizesse reparo na tela. Talvez fosse esse o único e real motivo pelo qual o Artur fazia tanta questão de a ter ali, à vista de todos!

Foi muitas vezes tema de discussão entre os convivas e de jogos projectivos até às lágrimas de álcool. Aos poucos, fui-me afeiçoando a ela, talvez na mesma medida em que o Artur se foi esquecendo do seu significado. No fim de contas, uma relação implica equilíbrio de sentires! Às vezes, quando nos chateávamos, sentava-me a contemplá-la, procurando nela coisas boas que juntos lá havíamos pintado. Quase sempre resultava.

No dia em que o Artur saiu de casa - vai já para dois anos - pedi-lhe encarecidamente que ma deixasse ficar.

- Mas se tu nunca gostaste dela!

- Por favor Artur! - pedi-lhe sem qualquer justificação.

- Mas há lá quem entenda a vossa cabeça! - respondeu-me ele naquele tom que irrita qualquer mulher. A mim irrita! Principalmente pela pluralidade do pronome, como se seu fosse mais do que uma. Que raiva me ficava quando ele me dizia “vocês”. Mas dessa vez não contestei. Queria apenas que ele ma deixasse.

- Mas Edite, é apenas uma tela em branco!

É impressionante a capacidade que os homens têm de nos provocar. Como é que o Artur não haveria de dizer “vocês” se eu própria digo “nós”?! E, ao pensar isto, um esboço de riso formou-se, silencioso, diante dos meus lábios descolados.

- Por favor, Artur!

- Mas porque é que não compras outra e pões no lugar desta? Uma nova. Limpa.

- Artur, por favor! - era só quanto me atrevia a dizer.

- Ok, ok! - antes de desaparecer da minha vida, dentro de num encolher de ombros…

Daqueles que irritam qualquer mulher. A mim irritam!

…e fechar da porta nas minhas costas, em forma de assinatura, pondo termo àquele quadro cheio numa tela em branco.

Soube há dias, por uma amiga, que ele se tinha separado da actual companheira, e fiquei contente.

- Sabes quem foi que eu encontrei hoje? - a Marta toda tremelicos, com as mãozinhas fechadas junto ao queixo.

- Quem? - perguntei eu, fingindo não ter qualquer desconfiança.

Não tinha dado certo. - Claro que não poderia ter dado certo: era eu a mulher da sua vida! - pensava para mim mesma, esquecendo-me que a nossa relação também tinha terminado e que, do mesmo ponto de vista, também eu não era a mulher da vida dele. Mas ainda assim fiquei contente. Contente pela derrota da outra. - Também ela não ficou com ele! - esquecendo-me que também já não era meu. - Mas eu vim antes e, por isso… e por isso… - uma qualquer desculpa para a frustração que era não tê-lo! Mas ela com certeza não teria uma tela em branco! - o último reduto. Ou será que teria?

- Mas o que foi que ele te disse:

- Várias coisas! Nomeadamente, perguntou-me por ti.

- E o que foi que tu disseste?

- Disse que estavas óptima, claro! O que querias que lhe dissesse?

- Nada!

- Pois! Disse-lhe até que estavas muito bem! - a Marta a acrescentar num piscar de olho.

- E que mais, conta-me?! - uma excitação adolescente a tomar conta de mim e dos meus modos controlados.

- Perguntou-me se ainda tinhas o mesmo número de telemóvel.

- E?

- Disse-lhe que não.

- E?

- E dei-lhe o novo.

- És tão cabra!

- Achas?

E uma gargalhada histérica a soltar o pano sobre o palco da esplanada, pondo termo ao primeiro acto.

O dia seguinte foi enorme e o seguinte ao seguinte maior ainda. Seguiu-se um terceiro sem que… um quarto e um quinto sem que… E, ao fim de uma semana, continuo à espera de um toque em forma de pincelada transparente na nossa tela em branco. Mas o telemóvel, aninhado em cima da almofada, olha para mim com o mostrador apagado. São já nove da noite, e eu sem qualquer vontade de pensar no meu jantar. Já deve ter terminado o telejornal. Não faz mal! A notícia que eu queria ouvir era pouco provável que o pivot a tivesse dado. De súbito, os meus pensamentos a serem assaltados por um requiem polifónico, e uma excitação selvagem quase a atirar-me ao tapete, no alcance do telemóvel histérico.

- Estou?! - respondo eufórica sem qualquer esforço para disfarçar a voz.

- Olá Edite!

- Ah! Olá Marta.