Sunday, March 05, 2006

Só até que a poeira assente…

Lembro-me perfeitamente do dia em que ela lá apareceu em casa, de malas e sacos na mão. Trazia um vestido azul, do qual não me recordo muito bem, mas que lhe ficava acima dos joelhos, quadrados e grossos, que nunca consegui esquecer. Era uma amiga de liceu da minha mãe e chamava-se Virgínia. Eu devia de ter os meus treze, catorze anos, e na cara nem um ameaço de barba. Tinha descoberto há pouco tempo os últimos fluidos do meu corpo, aos quais os joelhos de Virgínia vieram trazer um novo sentido.

Vinha para passar uns dias, até organizar a vida, que estava virada do avesso, mas foi ficando

- Só mais uns dias!

agarrada às folhas do calendário.

O homem com quem vivia tinha-a posto fora de casa, e nem os próprios pais a quiseram receber.

- Não se juntasse com ele! Eu avisei-a! - dissera o pai para mãe que, ao segredá-lo a uma vizinha, o soltou no ar da Ribeira do Porto.

Tinha vindo para Lisboa atrás de um sonho (de um desejo, será mais verdade), mas a felicidade não durou muito tempo pois, segundo ouvi da sua boca e da da minha mãe:

- Os homens fartam-se depressa dos brinquedos!

Depois de o meu pai sair de casa, ia para três anos, o escritório ficara livre. Livre dele, mas cheio de outras inutilidades. A porta vivia fechada e era lá que a minha mãe guardava toda a tralha que a fazia lembrar-se dele, mas que ainda não tinha conseguido deitar fora. Foi outra coisa que aprendi acerca das mulheres! Agora as coisas iriam ocupar caixotes debaixo das camas (da minha inclusive), pois seria lá que Virgínia se haveria de instalar nos próximos tempos. Como dizia:

- Só até que a poeira assente…e a cabeça também!

No entanto, nessa noite, haveria de dormir na sala. Mal instalada segundo a minha mãe,

- Nunca tão bem!

segundo ela mesma. Nessa noite, aqueles joelhos quadrados e grossos fizeram de mim um homem à séria e foram o meu objecto de vício durante mais uns dias, altura em que comecei a escorregar os olhos pelas arredondadas barrigas das suas pernas abaixo: dois papos de rola em ponto gigante.

Foi-se passando o tempo e eu também. Ficavam até tarde, a conversar na sala, enquanto eu me haveria de deitar logo após a primeira novela da noite. Mas era na fofa alcatifa do corredor que eu me sentava, clandestino, a ouvi-las entrançar cochichos e risinhos infantis. Foi ali, naquele corredor alcatifado, sob o olhar de um bando de patos levantando voo à frente da espingarda de um caçador mal pintado, que eu aprendi “tudo” quanto havia no mundo para aprender sobre mulheres. Foi ali, sob a mira daquela espingarda de faz de conta, que eu descobri que afinal a minha mãe era uma mulher como todas as outras. Foi ali, sob a piscadela de olho, cúmplice, do caçador de patos, que eu me comecei a fazer homem.

- Ai amiga, cada vez que penso no peito daquele homem cai-me tudo aos pés! Enorme, musculado… e sem um único pêlo! Valha-me Deus!

E eu a julgar que os fins-de-semana que passava com o meu pai eram para a minha mãe uma penosa solidão!

- Ai que horror! Eu cá adoro homens de peito peludo, Manuela! Para pelada estou cá eu! Gosto de ficar a enrolá-los com a pontinha da unha.

Assim, na manhã seguinte, peguei na gilete da minha mãe se preparar para a praia (e para uma ou outra eventualidade que até aí desconhecia) e, antes de sair para a escola, passei-a no peito até a penugem invisível desaparecer por completo sobre a pele rubra do esforço. Na cara passaria depois. Pois, quanto isso, não tinha havido qualquer referência. Nos dias que se seguiram, passei vezes sem conta os olhos expectantes pelo peito careca, na esperança que a penugem engrossasse e escurecesse. Mas nada! Até que um dia tive uma ideia brilhante. Pedi ao senhor Júlio, o velho barbeiro do bairro que me cortava o cabelo desde o dia em que me lembrava ser gente, que me deixasse levar os cabelos cortados para casa.

- É para um trabalho da escola! - disse-lhe, exactamente porque não era.

Passei um Sábado inteiro fechado no quarto a colar cabelos no peito, com uma cola que garantiam colar cientistas ao tecto e, com o ar mais natural do mundo, apareci na varanda, onde as duas se juntavam ao fim da tarde para tomar chá, fumar e falar de homens, para aquela que haveria de ser a gargalhada do ano. Nunca me senti tão ridículo na vida!

- Que é isso Paulinho? - perguntou-me a minha mãe com os olhos abertos até ao meio da testa.

- Ai, o teu filho é tão engraçado, Manuela!

E o meu peito, negro de caracóis, qual cabeça de boneca, a responder por mim, de mamilos baixos, como olhos fixos na ponta envergonhada dos ténis.

Os olhos da minha mãe voltaram ao lugar para se encherem de lágrimas, que lhe caíam, gargalhantes, aos pares pela cara abaixo.

- Quer ser um homem, que queres tu!?

E eu a correr direito ao quarto, com aquelas gargalhadas nas minhas costas humilhadas, donde só saí na segunda-feira de manhã, porque a paciência da minha mãe também tinha limites e a escola era sagrada. Educação física às oito e meia e o peito ainda cheio de pêlos e angústia que não havia conseguido tirar de maneira nenhuma.

- Quer ser um homem…

- Quero sim, quero sim, quero sim… - era a resposta raivosa às voltas dentro da minha boca muda, no balneário do Liceu, onde não tive coragem de tirar a roupa para a primeira aula da manhã!

- Que tens Paulo?

- Dói-me o peito! - foi a resposta sincera à pergunta do professor.

Fevereiro, Março, Abril… e os primeiros pêlos a aparecerem no queixo primaveril e nos sovacos, como flores de estação. Maio, Junho, Julho… e junto ao sexo também, como ervas daninhas em torno do tronco de uma jovem árvore. Só no peito nada, que era só onde eu os queria ter!

A vida de Virgínia já estava mais do que direita e a poeira mais do que assente, mas para a minha mãe era muito bom que ela lá continuasse em casa. Também ela se sentia sozinha para falar de homens e trocar ideias feitas sobre o assunto.

- No fim de contas são todos iguais!

- Nem todos! - respondia-lhe Virgínia com gozo na voz.

- Não entendem nada de mulheres!

- E nós entendemos alguma coisa de homens?

- Estás a comparar uma colher de pau com um robot de cozinha?

As gargalhadas ecoantes nos meus ouvidos clandestinos.

- Soubessem eles metade sobre nós daquilo que há para saber e éramos umas felizardas.

- Isso é verdade, amiga!

Pudesse eu gritar para o meio da varanda, para o meio do universo: - Eu sei! Eu sei! Pudesse eu dizer: - Só me falta é cabelos no peito!

Assim foi sendo, até ao dia em que um jovem bancário entrou na vida de Virgínia, estava eu quase a completar dezasseis anos, e ainda de peito liso: como a minha mãe gostava; como a Virgínia não, porque:

- Para pelada estou cá eu!

Haveriam de aparecer uns anos mais tarde, quando já não pensava nela, nem nos seus joelhos quadrados e grossos, nem no incorpóreo íman do seu peito que me atraía o olhar para o infinito negro do seu decote à época de se ir embora; quando a minha mãe (ainda sozinha) para mim, numa praia da costa:

- Vem ter connosco uma pessoa de quem gostas muito! - depois de desligar o telemóvel.

Mas aquelas palavras não acenderam dentro de mim o nome Virgínia. Acho mesmo que não pensei em ninguém. Acho mesmo que só pensei na frase depois de:

- Manuela!

- Virgínia!

E um abraço feminino na imensidão daquela paisagem de filme barato.

Estava de novo separada e de novo com a vida do avesso. Estava novo diante de mim e de novo como da primeira vez. Perfeita!

- Estás um homem Paulinho! - disse-me num tom de espanto, ao reparar em mim e no meu peito vaidosamente enegrecido.

Eu não sabia para onde olhar. Havia qualquer coisa entre nós por começar; por acabar; por definir. Pelo menos assim o sentia!

- Porque não ficas lá em casa uns tempos? - a minha mãe a perguntar-lhe, depois de dois minutos de conversa.

Virgínia olhou para mim com dois pontos de interrogação nos olhos.

- Fica! - insistiu a minha mãe, ante a nossa distracção.

- Não é chato? - sem tirar os olhos dos meus.

- Achas que sim?!

- E será que o Paulo não se importa? - tirando o diminutivo, já sem sentido, da frente do meu nome: a primeira peça de roupa a cair ao chão.

- Paulinho? - a minha mãe à espera de aprovação.

- Claro! - foi só quanto disse, coçando ao de leve o meu peito de homem.

E, sem desviar o olhar, enquanto a minha mãe me beijava a face e lhe apertava na mão envernizada, acrescentou num dilatar de lábios:

- Só até que a poeira assente…

1 comment:

Anonymous said...

se as mulheres andarem com as quem compreende, depois vão queixar-se do que?