Monday, September 25, 2006

...de repente

Ainda que quisesse contar como foi que tudo começou, não creio que fosse capaz de o fazer sem falsear factos.

Foi de repente. Será mais honesto dizê-lo. De repente, como quase sempre acontece. E de repente, uma mão de aliança no dedo a descasar-me os botões da camisa, numa fome de animal por bagas. E de repente, o contraste dourado de uma promessa esquecida a perder-se-me entre o negrume do peito.

Tinha um nome que não convém que se diga, duas filhas pequenas e um homem de negócios com quem casou, ainda muito nova, quando o sonho de ser arquitecta era ainda um ramo verde.

Ainda que quisesse contar como foi que tudo aconteceu

numa pensão barata da Pascoal de Melo. Não que não pudessemos pagar mais, mas porque ambos, de repente, quisemos assim.

- Também sei ser puta! O que é que ele julga?!

Dissera-mo uma vez, entre um copo de cerveja e um desabafo desesperado numa das raras conversas que tivemos no final do expediente.

- Também sei ser puta!

E não sabia. Sabia ser pouco mais que uma mulher carente que apenas conhecera um homem na vida.

- O que é que ele julga?!

E eu a não saber o que é que ele julga. A saber apenas que

…pouco mais que uma mulher carente.

E de repente - porque tudo acontece de repente -, nós, guiados pelo corrimão sombrio, gasto pelo suor das mãos, até ao primeiro andar de uma pensão barta da Pascoal de Melo. Não que não pudessemos pagar mais

onde uma senhora - se é que as donas das espeluncas podem ser senhoras -, uma mulher de cinquenta, entremeava romances da Maria com janeirar de molas.

- Tem quartos para alugar? – como se quisessemos mais do que um.

- Tem quartos... – na curva do corrimão sombrio

gasto pelo suor das mãos

- Tem... – no lugubre patamar da escada, onde uma senhora, ou uma mulher de cinquenta

- Por quanto tempo?

Uma vida inteira, um final de tarde, um “até que a coragem volte” para voltar para casa, para mais um bocadinho, para mais uma apneia de afecto no gélido mar do desengano.

E de repente, porque tudo acontece de repente, uma mão de aliança no dedo, a procurar honestidade no interior da minha roupa, enquato me provocava, com olhar de mulher carente, e não de puta, como ela achava que também sabia ser. Ainda que soubesse ser pouco mais que… à procura de conforto, não sexo, um abraço

não vingança

- O que é que ele julga?!

somente um beijo, sincero, desejoso da mulher que ainda achava ser.

Tão nova e já tão sem futuro! Cada dia menos um. Cada-dia, cada-dia, como pouca-terra, pouca-terra, num devorar de carril por um comboio sem destino, às voltas na serra até ao limite do carvão.

Tão nova e…

e a seguir a mim o quê?

A seguir a

- Tive um convite para ir trabalhar para Toronto.

…o quê?

Uma depressão?

Umas férias no Algarve, numa tentativa desesperançada de reconciliação? A última; como a primeira, sem destino, às voltas na serra em pouca-terra, pouca-terra, até ao limite do carvão.

Um psiquiatra?

- … muito bom!

aconselhado por uma amiga em processo de divórcio.

- … a mim foi o que me valeu!

Ou

- …uns copos e isso passa!

por outra, já divorciada.

Numa mezinha caseira de gin tónico e prozac (em simultâneo ou alternados).

E eu a pensar nisso agora (claro que não em Toronto, em Lisboa), dois meses depois da última vez em que

- Boa tarde.

sem perguntar

- Tem quartos?

sem perguntar

- Tem quartos para alugar?

Simplesmente

- Boa tarde. - como um silêncio absoluto.

- Boa tarde. - porque era sempre de tarde. Porque ela, uma mãe de família: duas filhas pequenas e um homem de negócios com quem casou, ainda muito nova, quando o sonho de ser arquitecta, ou feliz, era ainda um ramo verde.

E eu a pensar nisso agora (claro que não em Toronto…), dois meses depois da última vez em que

- Boa tarde. – na curva do corrimão sombrio, gasto pelo suor das mãos

sem conseguir contar como foi que tudo começou, sem falsear factos; com a nítida sensação que foi de repente.

O jardim de outros tempos

Ele vinha devagar, ao ritmo de quem há muito menosprezou a pressa e o seu sem porquê de ser.

A janela do escritório a dar para o pequeno jardim da praça - um quadro de limites elásticos, assim me aproximasse mais ou mais me afastasse dela -, a janela, moldura de um verde descascado, contentora daquele quotidiano impressionista, apenas um “por onde chegar”, de longe, ao jardim compreendido quase na totalidade, assim me aproximasse mais ou mais me afastasse dela. Era uma natureza morta, à qual ele, devagar, vinha trazer um pouco de vida; um pouco da que ainda lhe restava e de boa vontade depositava ali.

Sentava-se sempre no mesmo banco. O banco já o reconhecia ao longe e sorria - naquele sorriso feliz que o bancos de jardim fazem ao verem alguém conhecido aproximar-se - quando o via aparecer, ao ritmo de quem há muito menosprezou a pressa e o seu sem porquê de ser.

Ali ficava a olhar para o jardim. Não aquele, o jardim de outros tempos, o jardim das suas recordações com canteiros de vestidos de folhos e chapéus de palha com fitas coloridas. Ficava ali, no antigamente, no tempo dos sonhos tidos, um minuto, uma vida, até que uma mão, vagarosa, ao ritmo de quem há muito menosprezou a pressa e…, a tirar do bolso uma carcaça, sempre a mesma - porque as coisas iguais são sempre as mesmas - para a desfazer, devagar, ao ritmo de quem há muito…, para o empedrado do jardim da sua memória, onde os pombos de hoje, vestidos como os pombos de outrora, arrulhavam aos seus pés num rabujar de guarda nocturno.

Uma gaiola de pássaros, atrás de si, talvez por não chegar às migalhas, agitava-se num apetecer, como que exclamando:

- Senhor Polícia! Senhor Polícia!

porque

- Não se pode dar comida aos pombos!

Mas nenhum polícia. Nunca nenhum polícia. Se calhar um bufo, num outro banco, num outro tempo: num tempo em que ainda se podia dar comida aos pombos. Num tempo em que

… canteiros de vestidos de folhos e chapéus de palha com fitas coloridas.

Ali passava uma hora. O tempo de desfazer a carcaça, sempre a mesma - porque as coisas iguais…

uma hora

em movimentos de crochet, fazendo e desfazendo a meada, a carcaça (o que importa), porque as coisas iguais são sempre as mesmas.

o tempo de desfazer a carcaça, devagar, ao ritmo de quem há muito menosprezou a pressa e o seu sem porquê de ser.

Depois levantava-se, devagar…

e desaparecia do quadro, do jardim emoldurado pelos caixilhos de madeira da minha janela de escritório, porque o escritório, ao contrário daquilo que se diz, não tem janela (e isto só percebe quem é de perceber)

desaparecia do quadro,

verde descascado

uma natureza morta na qual ele, devagar

arrastando consigo um pouco de vida; um pouco da que ainda lhe restava e de boa vontade depositava ali.

Os olhos do banco levantavam-se para ele. Tristes. Naquele olhar triste que o bancos de jardim fazem quando os deixam sozinhos. Mas não lhe dizia nada. Não lhe pedia que não fosse, nem que voltasse. Não porque os bancos de jardim não falem, não. Mas porque são orgulhosos de mais para pedir. Para além de amuarem com muita facilidade. Mas passava-lhe depressa. No dia seguinte abria-lhe de novo um sorriso de tábuas verdes assim que o via vir, devagar, ao ritmo de quem há muito menosprezou a pressa e o seu sem porquê de ser.

Assim

todos os dias de um calendário que não conhecia domingos ou feriados. Assim, uma vida inteira dentro de uma vida esfarelada em mil bocados; em mil migalhas (…que importa) …as coisas iguais são sempre as mesmas.

Assim, até ao dia em que nenhum sorriso de tábuas verdes; nenhuma carcaça, nenhum pássaro agitado dentro da gaiola exclamando

- Senhor Polícia! Senhor Polícia!

porque

- Não se pode dar comida aos pombos.

Assim, até ao dia em que a natureza morta daquele quadro deixou de receber um pouco de vida; um pouco da que ainda lhe restava e de boa vontade depositava ali. Assim até ao dia em que o artista pintou por cima dele o lugar vazio da sua ausência. Assim, até ao dia em que o meu escritório uma loja de telemóveis de vigésima quinta geração e uma carcaça no meu bolso a caminho do jardim. Não aquele, o jardim de outros tempos, devagar, ao ritmo de quem há muito menosprezou a pressa e o seu sem porquê de ser.

Friday, September 15, 2006

Uma questão de vocação!

O senhor Mário a explicar-me matemática,

equações talvez

não sei dizer. Acho que nunca aprendi nada em matemática. Mas equações, talvez. É disso que trata a matemática, não é? Não sei… nunca aprendi nada em matemática. Mas o senhor Mário a explicar-me matemática, de cigarro na boca,

nunca tirava o cigarro da boca

para quê tirar o cigarro da boca se

tirar o cigarro, voltar a pôr o cigarro

na boca

o senhor Mário a descobrir-me a vocação sem querer, com gravidade na voz, como um Newton

com a cinza a cai-lhe do cigarro, para cima da mesa da marquise, sem gravidade, onde eu

talvez equações. Não sei dizer.

sem sacudi-la para o chão

a dizer:

- Eh pá, que linha tão direitinha!

Quando eu

a fazer simplesmente um risco, furioso, frustrado, para separar os exercícios,

equações talvez. Não sei dizer. Acho que nunca aprendi nada…

simplesmente um risco, furioso, frustrado

não para separar os exercícios, as equações talvez … mas porque não futebol no Domingo à tarde, como os outros que sabiam tanto de matemática como eu.

- Eh pá, que linha tão direitinha! - admiradíssimo - Nunca consegui fazer uma linha tão direita na vida!

E o senhor Mário com uma vida longuíssima, com tempo de sobra para futebol e matemática, enquanto eu, pouco tempo, muito pouco tempo. Porque o tempo que conta é aquele que passou e não o que ainda está para vir. Porque se eu morresse de fúria, de frustração, eu

menos tempo que o senhor Mário.

Cada incógnita um passe atrasado, cada algarismo um golo por marcar, cada sinal de igual uma diferença incalculável no tempo que se apagava diante da minha borracha exausta porque

… nunca aprendi nada em matemática.

ainda que

o Senhor Mário, com uma vida longuíssima, com tempo de sobra para futebol e matemática. Equações, talvez. Não sei dizer. Mas isto sou eu a fazer contas ao tempo e contas não é comigo. Acho…

um risco

muito pouco tempo

E o senhor Mário com uma vida longuíssima. Admiradíssimo, como eu em relação aos exercícios que ele conseguia estender ao longo da folha, numa sequência interminável de confusão, um caos a expandir-se no universo da folha, como a massa dos rissóis da minha tia Adelaide.

Acho que a minha tia Adelaide fazia rissóis. Não sei dizer. Acho que nunca…

Colocar números e letras à sorte na folha também eu sou capaz de fazer, na mesma lógica de raciocínio que a minha avó em relação às cantoras de ópera ou do meu avô em relação aos quadros do Picasso.

Aquilo também eu sou capaz de fazer.

- Eh pá, que linha tão direitinha! - admiradíssimo

de cigarro na boca

para quê tirar o cigarro

- Faz lá outra. - expectante. Como se estivesse de repente diante de um génio.

- Faz lá outra.

numa inversão de papéis

e eu a fazer outra, igualmente direita

igualmente

- Eh pá! - envolto no fumo do cigarro, de olhos pequeninos, talvez porque o fumo do tabaco

e os exercícios a ficarem por ali, porque algo mais interessante

- Eh pá!

do que

equações, talvez. Não sei dizer. Acho que nunca aprendi nada em matemática.

porque algo mais interessante

linhas direitas; um risco, furioso, frustrado, para separar os exercícios

equações

e eu a entusiasmar-me e a fazer mais uma e outra enquanto

- Eh pá!

uma e outra, até que

a limonada da dona Helena

- Limonada para os meninos! - doce, apesar do limão. Doce porque a voz da dona Helena

- Limonada para os meninos!

porque a voz da dona Helena a tratar-me por você. Sempre por você, ainda que eu apenas treze anos

sempre

- Tome. - de copo na mão, de limonada

doce

sempre por você, apesar do limão

ainda para mais agora que eu era um génio do traço

- Tome!

como se dissesse

- Senhor

E eu a responder com um traço

não com um obrigado

apenas um traço em jeito de autografo para a posteridade.

Com o senhor Mário

- Ó Helena, olha lá para isto. Este gajo é fantástico!

embora a dona Helena sempre

você

apesar de

- Este gajo… - ou do limão.

- Nunca consegui fazer uma linha tão direita na vida! - até ao fundo do copo

até amanhã

até ao saltar do muro para o meu quintal… muro que parecia agora não ter mais de um palmo de altura, porque eu

- …fantástico!

- … tão direitas…

a esquecer-me do futebol, da matemática; a sentar-me na mesa da sala a replicar os exercícios, um atrás do outro, até a minha avó

- Anda lanchar.

não você

- Anda lanchar.

agora que eu era um génio do traço

não você

somente

- Anda lanchar.

e eu

- Já vou. Estou a acabar uns exercícios. - e nada era mentira. Uma folha, cinco, sete, cheias de linhas

- … tão direitas…

já não frustrados, porque eu

- …fantástico!

porque a minha vocação… descoberta.

Passaria a vida a fazer riscos direitos e não precisaria de matemática para nada, nem do futebol. Pois há tanta ciência num risco direito, como no cálculo de integrais, ou o senhor Mário nunca teria dito

- “Este gajo é fantástico!”