Wednesday, October 31, 2007

O dente da rua dos meus avós ou o prédio da minha boca

Hoje arranquei um dente. Pela primeira vez em quarenta e quatro anos arranquei um dente. E tive a sensação de que era o princípio do fim. Um pedaço de mim a menos

morto

no balde do dentista

como se

- Um dente podre, amigo, o que é que lhe quer fazer? Um funeral de estado?

importância alguma.

E no seu lugar um pedaço de algodão. Dor nenhuma, porque

- As coisas que não existem não doem!

a dona Ermelinda

minha mãe

a dizê-lo ao telefone de olhos inchados, para a minha avó Ernestina

para a dona Laura: uma amiga

para a minha tia Ema e sua madrinha de casamento

com a voz mais convincente do mundo

apesar dos olhos inchados

que

- As coisas que não existem não doem!

no dia em que o meu pai “se pôs à sombra”.

nas palavras da minha mãe

dona Ermelinda

ao telefone

olhos inchados…

O que faz com que, dor nenhuma

Um pedaço de algodão apenas. Para estancar o sangue; para evitar a língua cair de joelhos, em prantos, a prestar homenagens de viúva à campa do falecido dente.

Dizer com isto que

dor nenhuma

apenas na alma

(o que não é bem dor

angústia, talvez)

porque a morte mais perto.

- Isso agora põe-se aí um pivot e pronto. Está como novo!

Como novo

diferente de

igual

diferente de

novo

apenas

como se…

E porque uma espécie de luto

(idiota, talvez)

mas ainda assim uma espécie de

tirei o resto da tarde. Embora apenas

um pedaço de mim a menos

morto

no balde do dentista

como se

- Um dente podre, amigo, o que é que lhe quer fazer? Um funeral de estado?

importância alguma.

Conquanto

o principio do fim

como se eu todo um dente

- …podre, amigo…

como se

importância nenhuma

como se não uma parte de mim, mas uma coisa sem monta.

- Um dente podre, amigo, o que é que lhe quer…

E sem saber como

porque contra a minha vontade

eu na Alexandre Herculano, onde a Alda me tinha dito que

- Olha, o prédio onde os teus avós moravam foi deitado abaixo.

e eu jurado não tornar a pôr lá os pés. Pois sem o prédio dos meus avós, aquela rua, coisa nenhuma. O princípio do fim. Um pedaço de mim a menos

morto

no balde do dentista

como se

- … podre, amigo, o que é que lhe quer fazer?

importância alguma.

- Um funeral de estado?

E sem saber como

porque contra a minha vontade

eu lá, a meio da rua, onde nada havia já de mim

porque a rua toda uma boca falsa

cheira de pivots

- … e pronto. Está como novo!

Como novo

diferente de

igual…

apenas

como se…

e de facto lá estava o prédio que não estava lá. Tal como a Alda

- …foi deitado abaixo.

me tinha dito.

Apenas o espaço que ocupara um dia

a minha infância toda

como a minha boca toda

eu todo, aquele dente de quatro andares com vista para a Avenida.

Uns tapumes à volta

um pedaço de algodão

para estancar a raiva; para evitar de eu

como a minha língua

cair de joelhos, em prantos, a prestar homenagens de viúvo à campa do falecido prédio.

Portanto

uns tapumes à volta, e um AVISO

nos termos do nº1 do artigo 78 do Decreto-Lei

patatí patatá

tornando público que a Câmara Municipal deu alvará à construtora Pardais ao Ninho para que ali se construísse um pivot

- …como novo!

numa linguagem de legislodontologista

- Isso agora põe-se ai um pivot e pronto. Está como novo!

como se um prédio novo

um dente novo

pudessem trazer-me a infância de volta.

E ali me deixei de olhar vazio

de ombros caídos até aos tornozelos

a olhar o vazio que era aquela rua

como a minha boca

desdentada

porque um dente

como um prédio da nossa infância

a rua inteira

a boca inteira

do princípio ao fim

(o princípio do fim)

num enfileirado de cimento e esmalte.

E nisto a língua a desfazer-se do algodão

(como eu me queria desfazer dos tapumes e do AVISO

nos termos do nº patatí do artigo patatá do Decreto Municipal tornando Lei o alvará dos pardais para que ali se construísse um ninho público à Câmara pivot da construtora)

e a cair de joelhos, em prantos, a prestar homenagens de viúva à campa do falecido dente que

como o prédio dos meus avós

já lá não há.

E eu

como a minha a língua triste

a tactear com os olhos o buraco

(como as mãos da dona Ermelinda

minha mãe

o buraco deixado pelo meu pai no colchão do quarto.

Dor nenhuma, porque

- As coisas que não existem não doem!

quanto muito um vazio imenso

que talvez não seja bem dor

moinha

quiçá

um aperto cá dentro, como um sufoco, uma angústia no estômago…)

com os olhos

dizia

como a língua

a tactear o buraco do prédio que, como o meu dente, foi arrancado da boca da rua da minha infância.

Tuesday, October 23, 2007

Nº 103, 2º Esq.

Nus…

sobre a cama alugada, no silêncio que sobra das bocas amassadas pela vontade de que o tempo pare para sempre

ali

pendurado nos estores enviusados daquela janela empenada com vista para as traseiras da pensão, onde ervas e gatos se confundem com restos de luz ao amornar do dia.

Nus…

sobre a cama alugada, no silêncio que sobra do depois, quando a tarde é já quase nada e uma promessa de noite ainda.

Ali

diante da tela em branco do acaso, num esboço de olhos, cuja imaginação não chega para encher de verdade.

Estavas sozinha na esplanada dum café em Montmartre, a rabiscar a vida num Moleskine, quando eu me sentei a uma mesa a suspirar solidão. Vimo-nos pelos cantos dos olhos e trocámos olhares

enviusados

como os estores daquela janela empenada com vista para as traseiras da pensão, onde ervas e gatos…

Eu a procurar-te

ou qualquer coisa em ti

e tu…

as linhas do meu rosto, a verdade dos meus olhos, deixados em branco, na folha que ficou sobre a minha mesa ao saíres rua abaixo.

Eu atrás de ti

num francês horrível, mas que tu entendeste na perfeição, porque o silêncio é igual em todos os cantos do mundo. E disseste que

- Pas du problème!

e que as palavras faziam demasiado barulho.

Estudavas pintura e vivias num quarto de pensão a um quarteirão dali. Seguimos descendo a Chevalier de la Barre, e tu francesando-me o teu mundo e as diferentes cores que o compunham.

Convidaste-me a subir

ao segundo andar

ao o teu quarto

e perguntaste-me se gostaria de pousar para ti…

nu…

sobre a cama alugada.

E eu

no silêncio que sobra da sem coragem de negar, a assentir com a cabeça

e

apesar de não muito à-vontade

a desfazer-me da roupa e a deitar-me sobre a cama, sob a janela aberta para o fim da tarde. E porque eu

não muito à-vontade

tu a tirares o vestido, as sandálias e a ficares nua à minha frente, diante do cavalete lambido pelo arco-íris dos teus pincéis. Achei-te justa! Possuías toda a verdade nos olhos e eras nua por natureza. Tinhas movimentos largos, delicados, de bailarina russa, e cada pincelada na tela era uma lambidela no meu corpo crescente de desejo por ti. Concentrada, desconcentravas-me em cada deslizar de pincel, em cada movimento de mal me quer; bem me quer…

e

num sorriso capaz de matar o mais insensível dos homens, pediste-me

- Vérité!

pois querias pintar-me os olhos e, sem verdade, não serias capaz. Queria-los nus, mais do que a mim, e explicaste-me ser por isso tão difícil pintá-los e não apenas por serem olhos

e num sorriso

capaz de matar o mais insensível dos homens

repetiste

- Vérité!

e que não fugisse de ti, que não me escondesse atrás das pupilas, que me mantivesse

- …présent.

- …proche.

mais perto, mais perto…

e pousando a paleta, aproximaste-te de mim, colocaste-me a mão sobre o teu seio, apertando-a ligeiramente, inspirando fundo, e sorriste-me de olhos nus, cheios de cores e de água

- …comme ça.

pedindo-me que tos penetrasse com os meus

fundo

num movimento lânguido de pestanas

sem medo

assim

- Oui…

…vien…

… entier…

… doucement…

E eu a ir

inteiro

devagar…

na ponta dos teus dedos, até ao sopro morno da tua boca

- …vien…

ao contacto com o teu hálito doce

- Oui…

enquanto a cabeça te descaia para trás, numa entrega de fêmea completa à verdade do sentir.

E no silêncio quase absoluto daquele quarto alugado, à hora em que o dia é mais belo de cores, e ervas e gatos se confundem com restos de luz, apenas o som dos meus lábios no teu pescoço arqueado, a arrancar-te suspiros em pinceladas suaves de língua, desde a curva ombro ao pego da orelha, onde um expirar mais profundo se desequilibrou de mim e te caiu dentro, enchendo-te o peito; arrepiando-te inteira.

Eras tu agora uma tela em branco, nos meus dedos de marta, mostrando-me verdade

e

num rodar de queixo

a trazeres-me de volta o teu hálito doce, mais quente já, e à boca a tua boca inteira, num beijo inteiro, de língua inteira, lábios inteiros de quem aboca um fruto maduro no prazer lascivo de se deixar pingar

devagar… devagar…

Subiste por mim até se completar o beijo

toda braços e mãos, toda pernas e coxas

e cheirámo-nos como bichos, por entre cabelos e dedos, respirando-nos fundo, até à vertigem dos sentidos

até deslizares redonda, num movimento de gata, para debaixo de mim, levantando os braços lassos

a revelar sombras suaves a carvão

estendendo-te até ao limite de ti; até às pontas pintadas dos teus dedos…

devagar… devagar…

A tua pele de cera, morna, acabada de acender, na maciez do princípio do derreter, a alastrar-se aos poucos, num convite irresistível de

- Põe o teu dedo em mim.

que todas as velas acesas nos parecem pedir.

- …o teu dedo…

na cera morna que se esparge e aquece

- …em mim

devagar…

- Oui…

… doucement…

… doucement…

E de repente

os teus pés uma harmónica de dedos na minha boca, onde cada dedo

cada intervalo

uma nota arrancada ao suspirar mais sincero de ti

e

num tremor suave

quase imperceptível

as tuas pernas a criarem-me espaço no meio de ti

devagar… devagar…

descobrindo aos poucos o abrigo de palha do teu casulo

onde uma borboleta se abria em asas para me revelar o mais íntimo segredo dos teus segredos

- Oui…

…vien…

… entier…

… doucement…

numa voz arrastada e quente que me deixou a razão à beira do abismo

e tu

em espasmos de suplício, mordendo os lábios

depois o pulso

porque um morder mais forte se precisa

a sufocares num grito amordaçado, quando os meus lábios se fecharam num beijo inflamado sobre o princípio do princípio de ti

sorvendo-o

devagar… devagar…

como à pontinha melada de um mindinho.

- Oui…

…vien…

…vien…

…vien…

E eu a ir

inteiro

devagar…

até o tecido dos meus lábios se fundir por completo nas pincelas mais carregadas do teu peito, onde o rosa túmido dos teus pomos e a tumescência da minha boca terminam e começam

e começam, e começam…

devagar… devagar…

E uma linha de saliva a sublinhar-te a curva dos seios, e um arrepio a repuxá-los até ao limite da dor, até ao limite de si.

- Oui…

…vien…

…oui…

E eu todo lábios e língua

todo dedos e mãos

e tu espasmos e humores

dentes e pulsos

nos meus braços; na minha boca; nas minhas mãos tão cheias de ti.

E eu a trepar-te até aos olhos, a mostrar-me nu

na verdade que me pediste

para que o teu quadro não fique sem luz; para que não te custe pintar-me os olhos

a enterrar os dedos no intervalo dos teus dedos

e dedos com dedos

olhos com olhos

a entrar

devagar…

na suavidade da cera morna do princípio do princípio de ti

onde já vela alguma

mas uma fogueira imensa consumindo toda a lenha do meu corpo, fazendo-o suar toda a verdade de mim: até ao fim do ar; até ao fim dos olhos; até ao fim…

do silêncio que sobra das bocas amassadas pela vontade de que o tempo pare para sempre

ali

enviusado nos restos dos estores, com vista para as ervas penduradas daquela janela que se confunde com as traseiras empenadas do dia, onde o langor da luz amorna a pensão dos gatos

ali

até ao requebrar do corpo; ao encaixe perfeito, num enrolar de ouriços acabados de nascer; até ao adormeceres-me nos braços, entregue, completa, cheia de verdade

de mim

num ronronar de bicho feliz.

Ali

até eu à tua volta

todo

à tua volta

pleno

de ti

a adormecer de olhos fixos naquela janela empenada, vendo o último raio de sol entrar, pelo canto enviusado do estore, indiscreto, lamber-me os olhos na tela, e enroscar-se aos nossos pés, lânguido, manso, como um gato de luz.


Sunday, October 07, 2007

O preço de um abraço

O que eu queria do Vasco era um abraço. Um colo. Um aconchego. Um ninho. Um porto seguro. Não era sexo.

Não agora.

Mas o Vasco tem trinta e quatro anos e eu tinta e um. E como é que uma mulher de trinta e um

diz a um Vasco de trinta e quatro que

- Adoro a tua companhia, mas não quero ir para a cama contigo.

(?)

Tenho para mim

(e sei que as mulheres gostam de sexo tanto quanto os homens

ainda que agora não me apeteça

ou pelo menos com o Vasco

apesar de adorar

- … a tua companhia…)

que, ao contrário dos homens

(que dão abraços para terem sexo)

as mulheres dão sexo para terem abraços. Mas tenho para mim, também, que

(e não querendo desculpar-me com nada)

isto acontece

(não por não gostarmos

ou porque não é o homem que mexe realmente com os nossos humores mas…)

porque

temos fases. Sim, creio que é isso. Temos fases. E, passando por tanta relação abortada

como é o meu caso

precisamos de um pouco mais de certezas.

Caramba, será isto assim tão difícil de entender!?

Será assim uma coisa tão descabida o facto de adorar

- …a tua companhia, mas não quero ir para a cama contigo.

(?)

Acho que é isso que me assusta. O facto de não poder estar à vontade num abraço sem ter o peso de um pénis cabecear-me no ventre…

Não, não sou frígida. Que raiva! Quero um abraço. Quero sentir-me querida, amada, protegida, confortável. E o Vasco,de quem até gosto

sim, gosto

era a pessoa ideal

pelo menos agora

não posso andar pela rua a mendigar abraços a quem passa. E se não é difícil encontrar um homem para levar para a cama, é extremamente difícil encontrar um que nos queira abraçar e aceitar a cabeça confusa, pesada, no ombro, sem perguntas, nem intenções, sem nos cabecear com o chato do caralho sobre vestido, como um actor de segunda a bater no pano e a perguntar

- Então e eu, quando é que entro em cena?

- Foda-se! Espera, caralho! Apre!

Não posso andar pela rua a mendigá-los.

E o Vasco, de quem até gosto

a pessoa ideal

pelo menos agora.

Uma fase. Tenho a certeza que apenas uma fase.

Mas como é que se diz uma coisa destas quando eu

Trinta e um e ele

mais três

(?)

Não diz.

Merda!

Podia pedi-los a outro, mas a outro seria o mesmo. Querem todos a mesma coisa. Perninha escarranchada e um sorriso de satisfação na cara como acabasse de ser coberta pelo melhor garanhão do mundo.

E o Vasco, garantidamente, não parece que seja o melhor garanhão do mundo.

Será esse o problema?

Não creio.

É uma fase. Eu sei que é uma fase. Conheço-me bem. Afinal sempre gostei da coisa. Mas quando se tem passando por tanta relação abortada

como é o meu caso

precisamos de um pouco mais de certezas.

Caramba, será isto assim tão difícil de entender!?

Não, não quero meter-me em mais uma. Quero que seja a derradeira, quero ter a certeza que é ele

(Estou cansada!

Trinta e um anos.

Nenhuma criança já.

Nenhuma criança ainda!)

a certeza que está disposto a fazer qualquer coisa só para me ter

e não como é normal nos homens

disposto

porque dispostos sempre

a qualquer coisa só para

meter.

Merda!

Quero saber, sentir, que aguenta esperar por mim. Que apesar de eu

- …não quero ir para a cama contigo.

pelo menos agora

ele está lá, e vai estar. Que não procurará outra que se esteja a borrifar para abraços e histórias de encantar; que queira o que é de querer e pronto; que cumpra a natureza mais do que eu

(pelo menos agora

uma fase

Eu sei que

uma fase.

Conheço-me bem)

e não se vá embora

se canse

se farte de

- Adoro a tua companhia, mas não quero ir para a cama contigo.

e aceite a minha cabeça confusa, pesada, no seu ombro

sem perguntas

apenas me contenha nos seus braços

sem cobranças. Pois não tenho com que pagar o abraço de que tanto necessito. E mais facilmente se dão cinco euros a um pedinte na rua do que a um abraço a uma carenciada de afecto. Não me quero prostituir por um abraço. Não quero, não quero, não quero

Merda!

Estou farta!

Ali para os lado de...

Era um apartamento pequeno, sombrio, ali para os lados de Alverca.

Massamá, não sei.

Cruz de Pau, talvez!

Ou Cova da Piedade.

Nunca fui muito bom com nomes de terras.

Santo António dos Cavaleiros , não me diz nada, mas, é possível.

Alhandra? Acho que era isso. Alhandra, é bem capaz que seja.

Bem… um apartamento pequeno. Igual entre iguais. Como caras de manhã no comboio a caminho de Lisboa.

Ele, vendedor de escadotes e espelhos e berbequins e buchas e parafusos e alicates e torneiras e ela, rissóis para fora, croquetes, empadinhas e afins. Não sei qual a última vez que se despiram um para o outro

nem eles

mas aposto ter sido pouco antes de ela

- Acho que estou…

grávida do único filho que Deus caiu na patetice de lhes permitir.

Eram acinzentados os dois. Os três, que o rapaz

o seu

- … David Miguel…

também não tinha melhor cor.

A gritaria naquela casa era uma presença constante

um Espírito Santo surround

e a vizinhança, do pequeno bairro onde viviam, não era nem melhor nem pior.

Camisola de alças, branca, à janela, no cigarrinho digestivo depois do café com cheirinho

(a omoleta de fiambre com saladinha de alface e tomate

sopinha de nabiças aquecida de há dois dias

pão, queijo e uma pecinha de fruta)

não pelo ar fresco das noites de Verão alto

(a camisola de alças)

pois toda a gente sabe que nas noites de Verão alto

para os lados de Alverca.

Massamá, não sei.

Cruz de Pau, talvez!

Ou Cova da Piedade.

Nunca fui muito bom com nomes de terras.

Santo António dos Cavaleiros

Alhandra? …é bem capaz que seja.

Portanto

que nas noites de Verão alto

nem ventinho, nem arzinho fresco

mas uma vizinha ou outra

uma sombra ou outra no prédio da frente

(Igual entre iguais. Como caras de manhã no comboio a caminho de Lisboa.)

solteira, divorcia

viúva que seja

desde que enxuta

(que molhadas só as rapariguinhas novas!)

a alegrar a vista

pois pouco amigo de telenovelas

ao contrário dela que só não papava mais porque não conseguia ver três canais ao mesmo tempo

a obtusa

a flácida

a do buço a sombrear-lhe os lábios finos, sumidos pela falta de chupões

a dos rissóis

croquetes

empadinhas e afins

depositados à volta da cintura e nas ancas

a que jura

e as vizinhas do seu calibre crêem-na, pois sucede-lhes o mesmo

engordar apenas com água.

Maldita seja, mais as porcarias que lhe deitam!

E um escarro a saltar do oitavo andar para o cimento das traseiras

a preferir o suicídio que viver dentro daquele corpo mais um segundo que fosse, e as costas de uma mão a passar pelo bigode, onde gotículas de saliva ficaram presas àquela aranha nojenta de mil patas.

Um escarro sonoro, agora que a vizinha voltou à cozinha por instantes.

Um escarro abafado pelo som do sofrimento de Eleonora, que ouve num pranto, da boca de Heitor, que ele ama outra mulher; por sinal a sua irmã, que é casada com um cafajeste que a engana e só está interessado em dar o golpe do baú, mas que a ameaça de morte caso ela ouse sequer pensar em deixá-lo.

A mulher

que jura

engordar apenas com água

a verter lágrimas reais por uma vida que parece não ser sua

a obtusa

mas é, porque não tem outra além daquela.

E no quarto, o filho

único que Deus caiu na patetice de lhes permitir.

o seu

- … David Miguel…

a chatar na Internet

Sou de Lisboa

de um apartamento pequeno, sombrio, ali para os lados de Alverca

Massamá, não sei.

Cruz de Pau, talvez!

Ou Cova da Piedade.

Nunca fui muito bom com nomes de terras.

Santo António dos Cavaleiros

Alhandra? …é bem capaz que seja.

Estudo Arquitétura

mas trabalha nas obras, o desgraçado, que nem sabe escrever o nome do curso que anda a tirar.

E do outro lado uma

Médica

Solteira, vinte e oito anos

que não costuma vir à net e naquele dia deu-lhe para aquilo

Provavelmente manicura, pedicura e calista

Estéticista

Pernas; axilas e virilhas.

Buços também, claro.

A nora que convinha à sua rica mãezinha

obtusa

de lenço na mão a limpar os olhos papudos, como dois sapos a rebentar de tristeza, porque nem um beijo que se aproveite.

Do Porto

a médica

dos calos

Oh! Que chat…ice

ou

: (

Tudo isto

Ó Deus dessa gente

o que dizem perfeito

e depois faz destas

(a Terra com a cebecinha na Lua!)

tudo isto

ali para os lados de Alverca

Massamá, não sei.

Cruz de Pau, talvez!

Ou Cova da Piedade.

Nunca fui muito bom com nomes de terras.

Santo António dos Cavaleiros , não me diz nada, mas, é possível.

Alhandra? Acho que era isso. Alhandra, é bem capaz que seja.