Saturday, January 31, 2009

Já não sei como se começa

Já não sei como se faz, como se beija, o que se diz depois do sexo. Já não sei como se chega a casa e diz aos pais
 ao meu pai
 - Pai, este é o…
 - … o meu novo namorado.
 Não sei quantos foram. Sei. Claro que sei. Uma mulher não esquece nunca o frio que sente depois das pernas fechadas, das portas fechadas.
 E depois aos meus amigos
 às minhas amigas
 mais do que aos meus amigos
 às minhas amigas
 - … este é …
 - … o Bernardo.
 - … o António.
 - … o Miguel.
 - … o Kuka.
 e o meu pai
 - Isso é lá nome de gente?!
 Porque para o meu pai nenhum homem é ideal para mim.
 E pelo visto tem razão.
 De modo que agora
 cinco anos depois 
 três desde que terminou
 não sei como se chega a casa e se diz aos pais
 ao meu pai
 - Pai, este é o…
 - … o meu novo namorado.
 (Até porque já deixam de ser tão novos assim!)
 Brincadeira.
 Mas para além disso, muito antes disso tudo
 eu a não saber como se começa. 
 Tudo de novo: música preferida, viagem de sonho, filme da minha vida, o livro que mais me fez chorar…
 (O meu diário se o leio).
 Quero um homem já feito
 sem perguntas
 sem dúvidas
 existenciais ou físicas.
 E não sei se o Roberto…
 (um amigo, ainda)
 não sei, dizia
 se o Roberto o é
 apesar de seguro
 aparentemente seguro
 que aquilo que me dá a parecer é que os homens nunca são seguros. Bóias insufláveis que vão perdendo o ar, e no fim, ainda temos de ser nós a arrastá-los para terra. De modo que 
 não sei se o Roberto…
 apesar da sua aparência insuflada de dragão
 de crocodilo
 de orca
 das mil formas penduradas nas tendinhas da praia
 o homem que procuro.
 Procuro? 
 Acho que o amor da minha vida
 (se é que há um amor da minha vida)
  já passou por mim. 
 Não sei qual foi…
 Não sejas ridícula, Clara! Claro que sabes. Uma mulher não esquece nunca o frio que sente depois das pernas fechadas, das portas fechadas. Quando as noites ficam de repente maiores, intermináveis. O sono demora, como a felicidade que não chega por mais carneiros que se contem
 a felicidade não chega. A cama
 enorme
 coberta de Inverno, de um vento frio que se mete por debaixo dos lençóis, internando-se nos ossos, cobrindo-os de musgo…
 uma mulher não esquece nunca
 e é por isso que agora
 aos trinta e sete anos
 solteira, independente
 aparentemente forte, segura
 como o Roberto
 (um amigo, ainda)
 aparência insuflada 
 dragão
 crocodilo
 orca
 mil formas penduradas nas tendinhas da praia…
 agora
 aos trinta e sete anos
 aparência só
 solteira, independente
 forte, segura
 aparência 
 só
 a não saber já como se faz
 como se beija, o que se diz depois do sexo…
 como se chega a casa e diz aos pais
 ao meu pai
 - Este é o Roberto.
 aos meus amigos
 - Este é o Roberto.
 às minhas amigas
 mais do que aos meus amigos
 às minhas amigas
 - Este é o Roberto.
 às minhas amigas que vão dar gritinhos de felicidade por mim e quando eu
 à casa de banho
 a juntarem-se ao centro da mesa 
 num concílio de comadres
 para se questionarem se 
 - Será desta que ela desencalha?
 Cabras!
 O problema não é falarem, é ser verdade. Eu própria não tenho a certeza se o Roberto 
 (um amigo, ainda)
 o tal homem já feito
 sem perguntas
 sem dúvidas
 existenciais ou físicas
 que procuro.
 Procuro? 
 Não tenho a certeza.
 E os trinta e sete anos a baralharem-se as ideias, os sentimentos
 que a partir de certa idade deixamos de estar certas das nossas certezas. Nunca uma paixão é tão segura quanto aos doze anos, aos quinze anos, até mesmo aos dezoito o mundo não nos assusta porque tudo absoluto e seguro. 
 Mas aos trinta e sete…
 Claro que gosto do Roberto!
 É inteligente, bem disposto
 uma excelente pessoa…
 E parece que ao dizer
 excelente pessoa
 uma sensação de não gostar assim tanto.
 É atencioso
 o Roberto
 faz-me rir 
 sinto-me bem ao lado dele
 mas
 como é que se começa?
 Como é que se faz?
 Como é que se beija?
 O que é que se diz depois do sexo?
 Três anos sozinha. Não sei se já tinha dito.
 Ou melhor
 três anos sem ninguém
 que sozinha, creio, há muito mais. De modo que…
 não sei…
 como é que se chega a casa e diz aos pais
 ao meu pai
 - Pai, este é o…
 … Roberto… 
 … um amigo. (?)
 Aos meus amigos
 -este é o…
 … Roberto… 
 … um amigo. (?)
 às minhas amigas
 mais do que aos meus amigos
 às minhas amigas
 - Este é o Roberto… 
 … um amigo. (?)
 Tenho trinta e sete anos…
 Um amigo?
 e quando eu
 à casa de banho…
 Cabras! 
 E se no fim, o Roberto, mais uma bóia rota no mar inquieto da minha vida? Afinal, há um dia em que a bóia rebenta e por mais que lhe sopremos dentro, que apertemos o furo, com ambas as mãos, com ambos os braços, como ambas as pernas, como o corpo inteiro, o ar acabará por ir-se todo. 
 E talvez seja esse o medo
 não de o Roberto não ser
 que talvez seja
 não o de começar
 o de não saber como se faz
 como se beija
 o que se diz depois do sexo
 que isso talvez saiba
 (uma mulher não esquece nunca)
 não o de chegar a casa 
 - Pai, este é o Roberto, o meu novo namorado.
 junto dos amigos
 nem sequer das minhas amigas
 - Pessoal, este é o Roberto, o meu novo namorado.
 mas do dia em que tudo arrefece, o dia em que o Inverno se instala em nós, se mete por debaixo dos lençóis, internando-se nos ossos, cobrindo-os de musgo e por mais que as pernas se fechem, as portas se fechem, o calor, como o ar de uma bóia rota, acaba sempre por ir embora. 

Havia de ser comigo!

O Luís a pedir-me desculpa
 que perdera a cabeça
 que não sabia o que lhe tinha dado
 que não tornaria a acontecer
 a jurar
 - Juro…
 que não sabia o que lhe tinha dado
 que
 - … não torna a acontecer!
 e eu
 eu que sempre dissera alto
 - Um homem a mim só me batia uma vez!
 que jurava
 - Denunciava-o à polícia!
 eu que 
 quando a Catarina me contou que a Cármen 
 - … levou uma sova do marido que até manca de uma perna.
 a garantir
 - Havia de ser comigo!
 eu
 no dia em que o Luís
 - Desculpa, Ana! Desculpa!
 eu
 a mesma eu 
 a desculpar
 a não dizer nada a ninguém
 porque o Luís
 - Perdi a cabeça. Não sei o que me deu.
 porque o Luís
 - Juro que não torna a acontecer.
 porque o Luís
 - Juro!
 eu
 a mesma eu 
 a desculpar
 a dar a outra face, ou a perder a legitimidade para a negar
 a dizer para mim mesma que era um bom marido, que sabia que não se iria repetir, que perdera de facto a cabeça, que o provocara…
 sim, que o provocara
 que quando quero 
 eu sei
 sou provocadora
 a prová-lo, portanto
 a assumir parte da culpa
 do estalo
 dois dedos e meio
 polegar, indicador, meio anelar, a pertencerem-me…
 E quando a Catarina, umas semanas depois
 - A Cármen tornou a apanhar.
 eu
 silêncio
 -Ouviste o que eu disse?
 e eu que, perfeitamente
 a encolher os ombros
 a
 - Não quero saber mais dessa história.
 a não
 - Havia de ser comigo!
 e ao invés de
 - Havia de ser comigo!
 a
 - Não quero saber mais dessa história.
 porque o verbo mudara de tempo
 a encher-me de vergonha, como se algo o denunciasse em mim, nos meus gestos
 como se a minha face batida
 - Catarina! 
 a encher-se de sangue e vergonha
 - Catarina! Olha…
 a denunciar-me e à minha cobardia.
 Por isso, quando a Catarina
 - O que é que te deu?
 eu
 direitinha à maquina do café 
 cara baixa
 (nenhuma marca
 uma semana já
 nem no próprio dia
 mas)
 cara baixa
 maquina do café 
 - É bem feito! Que é para não ser parva. Quem leva o primeiro estalo merece uma sova. E das grandes!
 a expurgar a minha frustração
 até que a Catarina
 - Calma!
 e eu
 calma
 a voltar para a secretária
 papéis e teclas
 papéis e teclas
 papéis e teclas
 até às quarto e meia
 papéis e teclas…
 Até àquele dia, o Luís… pouco a dizer. Uma discussão ou outra, o normal. Quem não tem? Mas as discussões são um prenúncio
 sei-o agora
 soube-o sempre
 um alerta, um sinal, um indicador de doença. São a febre que acusa uma inflamação escondida. E um dia a voz põe-se em bicos de pés, como se o volume legitimasse as opiniões, e sai o primeiro
 - Estúpida de merda!
 o primeiro
 - Estúpida de merda é a tua mãe!
 e daí ao primeiro estalo uma distância muito curta
 porque quando se deixam as conversas fermentar, azedam.
 e agora
 - Desculpa, Ana! Desculpa!
 - Perdi a cabeça. Não sei o que me deu.
 - Não torna a acontecer.
 - Juro!
 E eu a pensar
 o casamento, a casa, o carro, as contas…
 filhos ainda não, mas
  famílias à mistura e 
 dizer o quê? 
 - O Luís deu-me um estalo? 
 O meu pai, a minha mãe, a minha irmã que
 tenho a certeza
 já apanhou do namorado
 um estúpido desocupado que lhe vive às custas
 a dizerem
 - Mas vais deixar tudo por causa disso?
 o meu pai que
 na minha mãe
 a minha mãe que
 do meu pai 
 a minha irmã
 que
 tenho a certeza
 do namorado
 um estúpido desocupado
 todos
 a
 - Mas vais deixar tudo por causa disso?
 de modo que eu 
 a desculpar
 porque o Luís
 - Desculpa, Ana! Desculpa!
 porque o Luís
 - Perdi a cabeça. Não sei o que me deu.
 porque o Luís
 - Não torna a acontecer.
 porque o Luís
 - Juro!
 E porque quem mais jura mais mente, quatro meses depois o Luís a perder a cabeça, a dar-me uma sova e a sair de casa sem 
 - Desculpa, Ana! Desculpa!
 a voltar a casa sem pedir desculpa
 a não me dirigir a palavra para coisa nenhuma
 a dormir no sofá
 não porque eu
 - Aqui…
 (no quarto)
 - …não entras!
 Um dia, dois dias, três dias… e eu a penar “vou à minha vida. Isto não é nada.” A lembrar-me da Catarina
 - A Cármen tornou a apanhar.
 a ter-lhe raiva
 (que sabe ela da vida? Nunca teve uma relação. Namorados, mil. Mas uma relação? Que sabe ela da vida? Casa, carro, contas, família… Que sabe ela para falar assim dos outros?)
 E no meio dos pensamentos 
 o meu pai
 a minha mãe
 a minha irmã
 - Mas vais deixar tudo por causa disso?
 A casa, o carro, as contas…
 filhos ainda não, mas
  famílias à mistura e 
 mais isto
 mais aquilo
 que desculpas não faltam quando as queremos dar
 como
 esperar mais um dia
 até ao próximo Sábado
 a jurar que 
 só até Sábado
 e Domingo e quarta e sexta e quinta e terça 
 segunda após segunda
 e nunca mais era Sábado,
 nunca mais o Luís
 - Desculpa, Ana! Desculpa!
 - Perdi a cabeça. Não sei o que me deu.
 nunca mais o Luís
 - Não torna a acontecer.
 - Juro!
 nunca mais 
 nem uma palavra.
 Nada!
 Mas porque haveria o Luís de me pedir perdão se eu própria não pedi?
 Se eu própria não…
 - Desculpa, Ana! Desculpa!
 Se eu própria não…
 - Perdi a cabeça. Não sei o que me deu.
 - Não torna a acontecer.
 - Juro!
 - Juro!
 - Juro!