Sunday, March 16, 2008

Leve como uma pena

A minha primeira condicional em oito anos de cárcere. Vim visitar a família. A minha madrinha Almerinda, que me criou desde os dois anos, quando os meus pais

enfim, não importa.

- Júlio! - contentíssima por me ver. Ainda que eu

Jorge

Jorge da Silva Bastos

e não o filho que lhe morreu há mais de vinte anos a cento e cinquenta à hora, na Recta do Cabo

porque de noite, e um eucalipto ensonado a não se desviar a tempo.

- Júlio! - contentíssima por me ver, ou ao filho

que importa isso

contentíssima

isso sim

que venham os abraços e os beijos, que

oito anos de cárcere

ensinam-nos a não ser esquisitos. Agora, Jorge; Júlio, pouco importa. Beijos são beijos e abraços são abraços e o resto é conversa. No fim de contas não via o filho há mais anos do que a mim e

daqui a uma dúzia

se ainda for viva, pode ser que quando eu lhe tocar à campainha, me abra os braços e

- Jorge! - contentíssima por me ver.

À tarde

porque o sono lhe era pesado nos olhos

e eu mais só que na cela de Pinheiro da Cruz

fui até ao jardim da vila, à beira do Tejo, onde um enfileirado de gaiolas exibia aves vulgares como se de uma raridade se tratassem.

“Não alimente as aves”

numa pequena placa

com a explicação da veterinária

“Pelo bem-estar destas aves, agradecemos que não as alimente. Ajude-nos a mantê-las de boa saúde”

pela Câmara Municipal de Vila Franca de Xira.

Era domingo e o jardim estava cheio de famílias vulgares, como as aves, em exposição, às quais, creio, também não se podia atirar pão, sob o risco de uma reprimenda por parte da senhora doutora veterinária.

Na primeira gaiola um pavão, infeliz, derreado pelo peso da vaidade, das penas inúteis do rabo - pois que nenhuma fêmea para justificá-las. Uma cruz em forma de leque colorido. E ainda há quem diga que as penas não pesam nada! Ele há penas e penas. Eu que o diga

um azar na vida e

enfim, não importa.

Quantas vezes terá este companheiro de desgraça aberto o leque?

Não que lho não peçam os vulgares domingueiros, que não tendo penas que se vejam se aprontam a exibir-se com as penas alheias, quando muito orgulhosos respondem

- É um pavão!

à pergunta do filho

nove, dez anos

que merecia era um tabefe no focinho por fazer uma pergunta tão estúpida.

E o bicho, ali exposto, de beleza murcha, sem onde se esconder e à humilhação. Pois, apesar de tudo

- É um pavão!

e um pavão tem papel enorme a cumprir nesta capoeira de vaidades.

E o pai vulgar, na estupidez vulgar das pessoas vulgares, a dar-se a mais um golpe de penas

- Abre o leque, pá!

e o pavão, que com certeza percebe aquilo que o homem lhe gritou

pois todos os bichos menores falam a mesma língua

a encolher as asas e a deixar-se ficar, de mãozinhas atrás das costas, como um reformado derreado e triste.

- Ó maricas! Abre o leque, pá!

e a criancinha vulgar, que merecia era um tabefe por fazer uma pergunta

tão estúpida

- Que é isto, pai?

Isto?

Isto?

E depois de um tabefe no focinho

- Isto é um pavão, meu estúpido de merda!

Mas não! Que nas crianças não se bate, por mais estúpidas que sejam

por isso

- É um pavão!

todo inchado, por poder mostrar ao filho que só não é engenheiro ou doutor porque a professora da primária embirrava com ele.

- É um pavão!

todo pavão

quando se não fosse vulgar

- Isto é um pavão, meu estúpido de merda!

que é isso que é uma criança que aos

nove, dez anos

não sabe reconhecer um pavo cristatus.

De modo que o petiz

- É um pavão!

num repetir de papagaio, que estava bem era dentro de uma gaiola de dois por três

como eu amanhã ao fim do dia

(e por mais três aninhos, que é o que me falta para estar

reabilitado)

dentro de uma gaiola

dois por três

onde uma placa

“Não alimente as aves”

com a adenda da veterinária

“Especialmente as estúpidas como este papagaio”

que

- Ó maricas! Abre o leque, pá!

sob o olhar rendido da mãe, numa gargalhada miserável de dentes, revelando a vaidade de ter um filho tão estúpido quanto o marido que arranjou.

- Ó maricas! Abre o leque, pá!

A repetir diante da gaiola dos periquitos, porque para quem é geneticamente estúpido, tudo o que tem penas é maricas. E lá porque eu

em Pinheiro da Cruz

não quer dizer que...

Eu que mas jamais perguntaria diante de um pavo cristatus

- Que é isto, pai?

até porque, pai nenhum

a minha madrinha Almerinda

desde os dois anos, quando os meus pais

enfim, não importa.

Um azar na vida.

Acontece.

Mas é só mais três aninhos, que depois

reabilitado

que a cadeia também tem as suas coisas boas. E um homem habitua-se a tudo, e faz a sua casa onde em casa se sente. De modo que, até nem é assim tão mau quando comparado com o que vejo cá fora, onde não tenho nada

a minha madrinha Almerinda

com o sono a pesar-lhe nos olhos

a dar-me vontade de passar o resto da vida lá dento, onde a idade é um posto, como na armada.

Mas daqui a três aninhos

uma pena maior

(apesar de

reabilitado)

cá fora, onde não tenho nada

pois cá fora não é para todos

que o diga o pavão atormentado

de modo que

a reabilitação talvez se prolongue

uma questão de apertar o fôlego uma família de domingueiros que eu cá sei, ou enformar um pão inteiro no gorgomilo de uma certa doutora, para quem alimentar as aves é mau e tê-las dentro de uma gaiola

(dois por três

como eu amanhã ao fim do dia)

é fazer-lhes bem à saúde.

Por quanto tempo se atraem os opostos?

- Tenho um amigo que vais adorar!

a Rita nestas coisas não perdoa. É com boa intenção, eu sei, mas não perdoa. Prece que não pára para pensar.

- Pensar para quê, mulher?

Não pára, de facto.

- A vida são dois dias e o Carnaval são três!

a vida da Rita um Carnaval, e ela um cabeçudo tonto às cabeçadas de um lado para o outro com um riso pintado no rosto que não é o seu. Que importa isso? Não é a Rita que importa aqui. A Rita está bem, independentemente da análise. Que importa a análise? Que importa o quê? Que importa o que importa?

Nada!

Por isso, quando a Rita

- Tenho um amigo que vais adorar!

não disse nada; não contestei, porque

que importa?

Somos muito diferentes uma da outra, se calhar é por isso que nos damos bem. Eu mais passiva, ela mais dominadora

(dito assim até parece que…)

que importa?

Deve ser a lei natural do Universo: a lei da compensação; do equilíbrio; do onde está mais para o onde está menos; sempre assim até à exaustão; apatia; atrofia; entropia…

- Pára, pára, pára tudo…

e Rita, e Rita, irrita... chega!

Do princípio:

- Tenho um amigo que vais adorar!

É este o ponto… o ponto de partida, o ponto que me fez puxar da agenda sem compromissos para me pôr nisto

psicanálise de papel e lápis

no divã das dunas

(que não há em Carcavelos

e daí a poesia a não funcionar)

cadeira de plástico

o que se pôde arranjar

esplanada de Outono de frente para o mar…

(mas nem tudo o que rima é ouro

ou poesia)

que importa?

sozinha

que importa?

café, cigarro e água das pedras…

papel e lápis

Bom...

- Tenho um amigo que vais adorar!

e a ideia é sairmos hoje. Jantarmos num mexicano para os lados de Algés

- …que vais adorar!

e de lá para Lisboa. Um pulinho. Bairro alto.

- … vais adorar!

Eu tenho trinta e oito anos

(não sei qual é o limite de idade para se entrar no Bairro Alto)

mas sinto que já o passei.

- Que palermice, Isabel!

Para a Rita tudo é

- … palermice…

- Solteirão; boa pinta; advogado…

E aqui caiu-me tudo!

Tudo menos um advogado

tipos chatos

sempre com razão

toda a razão do mundo

como os psicólogos

ou filósofos

(não os distingo)

teoria, teoria, teoria…

conversa e mais conversa…

Não tenho pachorra para conversas; para explicações. Tenho

trinta e oito anos

(não sei se já disse)

e já expliquei tudo o que tinha a explicar. Mil vezes.

Pachorra nenhuma para

patati patata

e ao fim da noite

- Muito prazer!

(e prazer nenhum)

num trocar de camisolas inócuas, em forma de números de telemóvel, para um dia destes

- … tomamos café.

e para tomar café eu tomo sozinha

como agora

no divã de plástico da poesia, de frente para o Outono, onde um mar de água das pedras foi tudo quanto se pôde arranjar, nesta esplanada de dunas de frente para as cadeiras de ouro que não rimam com Carcavelos, nem funcionam como não funciona o café, os cigarros, ou o psicanalista de papel e lápis. Mas que não importa?!

Eu a não querer explicar nada. Eu a não querer conversa fiada; eu a não querer um conhecedor de vinhos e capitais europeias; um campeão de trivial.

- … um amigo que vais adorar!

Não me façam rir!

- … vais adorar!

a Rita. A Rita que anda a comer o instrutor de Pilates. A Rita que não saberia dizer onde fica o Norte mesmo que o Norte lhe mordesse no rabo; a Rita e o Ricky

(é assim que ele se chama)

a não falarem de nada. A rirem de tudo. Saímos e eles bebem, riem e dançam e, quando vão para casa

nenhum racionalismo cartesiano; nenhum Monet que os impressione; Wagner algum que lhes componha ramalhetes de Válquirias.

Para que quero eu um advogado? Para que quero eu alguém a quem tenho de explicar o inexplicável; o que expliquei mil vezes. Não há cursos para entender as pessoas

qual Psicologia qual carapuça

nenhum

por isso

que importa?

se o importante é

beber, rir, dançar e…

e no dia seguinte

ou na segunda-feira seguinte

- Aquele homem dá cabo de mim.

a Rita a não precisar de lhe referir o nome

(Ricky)

apenas

- Aquele homem…

No entanto, para mim

- …advogado…

- …vais adorar!

E que faço eu com um advogado? Por melhor que possa começar, com um advogado acaba sempre mal.

Somos diferentes, eu sei, mas que diabo, haverá assim tanta diferença entre nós que a faça pensar que não gosto da coisa? Creio mesmo que Rita não me vê com sexo. Que até tem pena de mim; que o comenta com

- Aquele homem…

durante o cigarro da pausa.

- Coitada da Isabel…

…uma ova!

Coitada da Isabel uma ova, ouviste!?

Também tenho nervos, também tenho humores, também tenho…

também tenho.

Por isso, quando digo à Rita que não quero ninguém, não é

ninguém

mas, ninguém como os que tenho tido. O que não é o mesmo que não querer, mas agora…

um advogado!?

Quero alguém diferente de mim. Alguém mais infantil; mais acriançado; que me revolte; que me faça rir e achá-lo tolo. Quanto tempo durará? O mesmo que duraram os sérios, intelectuais; chatos… Quero alguém que me canse, não quero alguém que me mace. A verdade é que os opostos se atraem, seja lá por quanto tempo for.