Monday, January 28, 2008

Nada como negar três vezes

Dizem que o levaram

Uma carrinha branca

uma ambulância, talvez

dois sujeitos de bata

fortes

careca um

o outro

normal

que é dizer

sem características especiais, boas ou más. O tipo ideal para matar gente em série.

Como quer, ou o que quer que tenha sido, a verdade é que nunca mais o vi por estas bandas. A princípio pensei que tivesse ido pregar para outra freguesia. Afinal freguesias é coisa que não falta em Lisboa

São Miguel; São Cristóvão; Santa Justa…

pois a Palavra tem de ser levada a todos, como a luz do Sol, que até aos cegos chega, ainda que a não possam ver. Sentem-lhe o calor, diferente do da sofagem do carro de praça; do secador do cabelo. Sentem-no e isso é o importante; que a isso se chama fé.

Dizia que nunca mais o vi por estas bandas, e não vi. Daí que talvez o tenham mesmo levado

uma carrinha branca

uma ambulância, talvez

dois sujeitos de bata

fortes

careca um

o outro

ideal para matar gente em série.

Nunca o segui. Acho que por decoro, ou vergonha, que no caso vai dar ao mesmo. Trajava um lençol branco - como todo o lençol deve ser - onde um rasgão criando espaço para a cabeça, por debaixo do qual

não faço ideia

nu, talvez

como no dia do seu nascimento

(não me refiro à nudez; óbvia questão, mas ao lençol)

como no dia do seu nascimento

um rasgão

criando espaço para a cabeça

e lá estava ele, todo de fora. Porque um homem é pouco mais que a sua cabeça, ainda que precise do resto do corpo para o provar. E à volta da cintura, um cordão

umbilical

pois sobre o umbigo

a firmar a vestimenta com a dignidade de um lord inglês do início do século XX a apertar o robe para o breakfast.

E nos pés, uns chinelos de enfiar no dedo

de plástico

mais baratos que os de cabedal

pois não era de ostentações, como outros que houve me tempos. E o que um homem calça nos pés é coisa sem importância, pois um homem é pouco mais que a sua cabeça.

Nunca o segui. Confesso. Com os olhos apenas; o que não é bem seguir. Cheguei a ter vontade. Mas o decoro

a vergonha

vai dar ao mesmo

diziam que era maluco

o que dizem sempre

mas afirmava-se filho de Deus

- Grande coisa! - diziam outros, que também assim se julgavam, já que lho sempre haviam dito.

que se chamava Calisto

lençol e chinelos

de plástico

nos pés

sempre se evita a protectora dos animais à perna

ainda que não os ambientalistas.

Há sempre quem tenha algo a opor, se não for grego será troiano, ecologista ou da ASAE.

Baptizava os fieis no rio, junto à Torre de Belém, que mais a condizer não podia ser. Os turistas achavam-lhe graça e a maioria penava tratar-se de teatro de rua. Uma cidade de artistas; poesia em movimento; criatividade a ao mais alto nível.

- Lisboa? Superbe! Fascinating! Ein Traum! De puta Madre!

- É maluco!

- Oh, non! Pas de tout! An artist! Kann doch nicht sein! Y quién no lo es?

Os fiéis seguiam-no. Cada dia mais. Não fazia milagres. Sabia que o comum mortal não os suporta. Acostuma-se mal. Estava ali para espalhar a Palavra

que tem de ser levada a todos, como a luz da sofagem, diferente da do carro, que o importante é o cabelo e ter cegos na praça. Sentem-lhe a chama do secador ainda que não possam chegar ao Sol, que isso de ter calor é fé.

Não esperava que o acreditassem. Nunca acreditam e cada vez menos. O homem não foi feito para ver e aproveitar aquilo que lhe é posto diante do nariz. É um gato desconfiado. Por isso vive no passado e no futuro. Que o presente é uma coisa indefinida. E se há coisa que o comum mortal quer é as coisas bem definidas. Pois ninguém o há-de tomar por parvo. Olha lá, a quem!

Não garantia ser a mãe virgem. Tinha mais oito irmãos. Três em França, uma na Suiça, dois na Alemanha. Uma em Olival Basto e outro na Moita. Não, virgem não dizia. Os tempos são outros. Até que já nem é coisa que se use; coisa que impeça véus, grinaldas ou raminhos de laranjeira. Isso já lá vai. Até porque, a afirmá-lo, já sabia que rótulo lhe colariam. E juiz era o pai e ele nem sequer um fiscal de linha. Não, não ia nisso. Também ele não era parvo. Ainda que dissessem

- É maluco!

apesar de outros

os estrangeiros

mais viajados; que conhecem mais coisas

- Kann doch nicht sein! Y quién no lo es?

a garantirem

- Oh, non! Pas de tout! An artist!

Estava ali para espalhar a Palavra

não fazia mal a ninguém. Falava do mundo e dos seus problemas

e dos problemas do mundo também.

Mas agora

ao que parece…

levaram-no

uma carrinha branca

uma ambulância, talvez

dois sujeitos de bata

fortes

careca um

o outro

normal

que é dizer

sem características especiais… ideal para matar gente em série.

Os dias que vivemos são complicados. Não sei o que lhe terão feito. Hoje em dia não se podem fazer fogueiras em qualquer lado e já não se crucifica ninguém. Pelo menos de braços abertos. Já atados atrás das costas, isso, acho é válido.

Há sempre quem tenha algo a opor, se não for grego será troiano, ecologista ou da Associação para a Saúde Alimentar e Económica

que pelo que parece também presa a saúde e higiene mental. Felizmente que temos alguém olhar por nós. Os dias que vivemos são complicados… e a verdade é que eles andam aí

malucos

artistas

vai dar ao mesmo

Por isso, quando aquele senhor do colete azul me perguntou se eu conhecia um tal Calisto eu

fechei-me em copas

(que não sou parvo)

e

Não! Calisto? Não, não…

Não tenho tempo

Esta é uma carta… não. Esta é a carta… Não sei como começar. Acho que esse foi sempre o meu maior problema. Bem… esta é a última carta de um condenado. Não será a forma mais bonita de pôr as coisas, mas nesta altura tenho dificuldades em encontrar melhores cores para me exprimir. Não sei quanto tempo mais ainda por aqui, entubado até à alma, mas pela cara dos médicos

as enfermeiras nem tanto

que essas são treinadas para nos manterem esperançosos

talvez uma semana, ou duas. E ao dizer

ou duas

há em mim uma esperança nascente, como se uma semana a mais a eternidade; como se uma semana a mais, porque mais sete dias, ainda tão longe daqui. Afinal, em sete dias criou-se o mundo.

Tenho medo! À noite, cubro a cabeça com as mantas - dificultado pela tubagem - para me sentir mais protegido. É um truque que aprendi em criança. Também os bichos se enrolam, parece que assim nada nos poderá atingir. É ilusão, eu sei, mas

(não é ilusão a vida toda?)

é só isso que me resta.

Queria escrever um livro sobre a minha vida, mas numa semana

ou duas…

Não sou um Camilo Castelo Branco, nem a minha vida é um amor de perdição. Professor de matemática, casado, divorciado aos quarenta e três anos, sem filhos, para o bem e para o mal, e agora aqui, com um abutre a comer-me no fígado Prometido.

Muitos excessos? Excessos são excessos, nem muitos nem poucos. Mas direi que, alguns. Só para facilitar o discurso.

Queria escrever um livro sobre a minha vida, mas numa semana

ou duas…

Não tenho tempo… e ao escrevê-lo, vem-me à ideia Evariste Galois, um matemático francês que morreu em duelo aos vinte e um anos para salvar a honra de uma puta

(que já não estou para eufemismos)

e que na véspera do duelo passou a noite em claro a escrever ideias e a referir constantemente “Não tenho tempo, não tenho tempo...”

Também ele estava condenado; também ele não tinha tempo, também ele não era um Camilo Castelo Branco, ainda que a sua vida fosse um amor de perdição. Talvez por isso tenha ficado para a história, agora eu, José Eduardo Peres Migueis, cinquenta e dois anos, divorciado e sem filhos

para o bem e para o mal

professor durante vinte e oito anos e nem uma linha para a história da humanidade. Um número, apenas, no Arquivo de Identificação

249010…

nunca me lembro dos dois últimos algarismos

(um professor de matemática nunca diz números)

nunca me lembro dos dois últimos

algarismos

mas aposto que 13.

Não sou supersticioso, mas

aposto que 13.

Queria escrever um livro sobre a minha vida porque vou morrer e tenho medo. Pois quem não deixa filhos nem obra, morre mesmo. E esta carta, ou desabafo (já que a ninguém se dirige) não chegará para me manter vivo muito tempo, acabando por acabar, algures, na lixeira municipal, misturada com os restos das minhas coisas que não servirão a ninguém.

Os amigos, aqueles que me visitam todos os dias por obrigação

(obrigação para com eles mesmos)

ainda chorarão ao lê-la. Lembrar-se-ão de mim neste Natal, numa ou outra reunião de grupo ou daqui a um ano e uma semana

ou duas.

Depois, como o fumo de um cigarro fumado há muito, serei uma vaga memória no pensamento ocupado de cada um. Porque apesar da morte longe quando dor nenhuma, também eles, como Galois, não têm tempo.

Que fiz eu da minha vida? Deixei-a passar. Não podia fazer mais nada. Não tinha tempo. Amanhã. Para a semana. Para o mês que vêm. Nas férias. Daqui a um ano. Quando me reformar vou viajar, ler os livros que tenho em atraso; fazer isto e aquilo; que depois, sim… depois, porque ainda longe, como uma semana, ou duas, somos capazes de qualquer coisa. Mas agora não, que não temos tempo.

Mas daqui até à reforma uma vida longa e eu, uma semana, duas quem sabe.

E terminada a hora da visita, eles aliviados e eu também. Até os amigos são cínicos. Mas não é por mal. Até eu, a uma semana

ou duas

de…

não consigo não ser cínico, ao ouvi-los, para lá porta basculante, a qual não transporei mais por meu próprio pé, a falarem de mim, no passado

- Era um tipo impecável, este gajo.

e às diferentes reacções à minha aparência. A Laurinha a rir e a falar da vida dela, dos planos para as férias, a pedir desculpa pelo Óscar que mais uma vez não pôde vir. Sempre a correr de um lado para o outro, a lutar pela promoção

como se dissesse

- Sabes como é!

e eu

como se respondesse

- Claro que sei!

a não responder nada

cínico.

Depois o Rui que conheceu um gajo, cujo patrão da cunhada tinha um tio que estava na minha situação e que de um dia para o outro

- … puf…

começou a melhorar e hoje está bom. Que o mais importante é pensamento positivo. A Rosa a pedir-me para ter fé e a desejar-me as melhoras à saída; o Costa Paulo a garantir-me que a ciência dá pulos gigantescos todos os dias. Como se algum pulo da ciência pudesse chegar a tempo, uma semana, ou duas, de enxotar o abutre do Cáucaso do IPO. Ou a Margarida a tentar disfarçar o desconforto, a compor as flores na jarra com cara de enterro, como se eu já, daqui a uma semana, duas no máximo. Sem perceber, coitada, que trazer flores a um homem à beira do precipício é como apresentar uma mulher divina a um eunuco. Flores que talvez me sobrevivam, apesar de já mortas. Assim como eu, cortado já do caule da vida, mas ainda vivo, como a beleza flores ou a luz das estrelas extintas.

Ainda que, para lá porta basculante

- Era um tipo impecável, este gajo.

E eu com vontade de os chamar à realidade, com vontade de lhes dizer, vivam enquanto podem, corram enquanto as vossas pernas tiverem forças, para longe, para muito longe… a não dizer nada

(cínico)

o que faria se no lugar deles

a não dizer

que largava tudo e ia viver.

Mas se estivesse no lugar deles também estaria ocupado e deserto para que a enfermeira viesse anunciar

- Acabou a visita.

porque

- Custa-me imenso vê-lo assim!

Está-se a acabar o que dizer. Ou a vontade de dizê-lo. Já que a utilidade, essa, nunca existiu. Vou pousar o bloco e a caneta e vocês esta carta, que não vos empato mais a vida atarefada, porque o autocarro não pode esperar, o relógio não pode esperar, o trabalho não pode esperar, embora vocês

razão única da vossa vida

possam, porque afinal, ainda falta tanto tempo para a reforma, e depois sim, é que vai ser viver.

Assim é q’elas se apanham!

- S’é verdade? Pois ’tá claro q’é verdade! Mas eu sou lá de mentiras q’é ver! Ainda p’a mais num assunto destes: sério que só Deus!

- Ora! ’tou-lhe a dizer. Que me caía já um raio em cima se n’é verdade o que lhe digo. A Alicinha; si’ senhora! De sete mesinhos!

- Ah, pois é! E depois a minha é q’era uma assim e uma assado. Assim é q’elas se vêem. ’tá bem, ’tá! Tão certinha e coiso, e vai-se a ver no fim… sete mesinhos no bucho! Embrulha q’é Natal!

- E se não lhe tivessem rebentado as águas, o mais certo era ’inda ninguém saber de nada.

- Ó senhora, sei cá eu? O rapazito q’a andava a namorar - ainda há bocado o Zé Luís do café me disse - afiança que n’é dele. Olhe, meu é que n’é de certeza! Que s’eu os pudesse fazer e parir, nuca me tinha casado! Ai, cala-te boca!

- É milagre é! Você ainda brinca! Já lá vai o tempo em que s’emprenhava do céu, senhora! Deixe lá chegar o Matias logo à noite e vai ver o pé-de-vento que se levanta aqui na rua. ‘inda é capaz de lhe dar alguma solipampa, coitado! Sai um homem de manhã, pai, chega à noite avô! Palavra de honra q’isto até custa a acreditar.

- Atão mas isto admite-se! Sei lá que pais são aqueles, que têm uma filha prenha em casa - sete meses - e não dão por nada!?

- Mas isto pode lá ser?

- Isto ’tá muito mal contadinho! Eu é que não sou de intrigas, senão… dizia-lhe uma que me contaram de manhã no mercado q’até lhe caía o queixo!

- Quem foi não lhe posso dizer.

- Mas olhe q’isto não sai daqui, hã!? Diziam lá, q’a rapariga não disse nada em casa até agora, porque desconfia q’o filho é dum mulato com quem andou metida.

- Pela minha saúde!

- Mas pode acreditar! P’lo q’é mais sagrado nesta vida, que o ouvi. ’tou-lh’a vender pelo preço que me venderam a mim.

- Sei cá eu se é verdade ou não! Mas quando as vejo com muita carinha d’ anjo, o mais certo é trazerem o Diabo no pêlo!

- E depois a minha é q’era uma assim e uma assado. Só porque casou de barriga inchada. Olhe, pelo menos sabia quem era o pai! E já lá vão sete anos e é como se tivesse sido ontem.

- ‘tá bem, ’tá! Conta-me histórias, Carochinha! Mas é bem feito, q’é p’a não terem a língua maior q’à boca! Já a minha mãe dizia q’é é no melhor pano que cai a nódoa. É que no pano ruim não se nota, ou pelo menos não se dá importância. Agora no linho. Ai, ai, Jesus! Mas deixe lá chegar o Matias logo à noite, ou o cachopo nascer com a cabecita cheia de molas e vai ver o pé-de-vento que se levanta aqui na rua.

- Pois ’tá claro! Se ele diz q’o filho n’é dele, e consta q’era com o tal mulato q’ela se andava a encontrar às escondidas… Alguma coisa há-de o pobre rapaz saber do que fez. Ou não fez, que é mesmo assim. Olhe, valha-lhe S. Cornélio, q’é o padroeiro dos cabrões! Ai, valha-me Deus, q’até se me foge a língua para a banca do peixe. Mas até fico às manchas só de pensar no q’aquela lambisgóia da Doroteia andou para aí a espelhar quando a minha Carina Isabel engravidou. Língua de víbora. Agora q’é a filhinha dela, nem aí nem ui. Parece q’hibernou, a cobra.

- O rapazito, pelos vistos, é que se safou de boa! Saia-lhe a taluda daqui a uns tempos e depois é q’era gemer.

- Se ela sabia da filha não sei! Mas é bem capaz. Se calhar já não foi foi a tempo de a levar a Badajoz. Q’os espanhóis, por quinhentos euros - ouvi dizer - até a alma lhe raspavam. Que esses têm raça de ciganos. Por isso é que se ’tão a encher às nossas custas, como diz o meu Horácio.

- Bem, tenho de ir andando, que já é meio-dia e ’inda não fiz nada.

- Olhe, dona Amália, sabe o que lhe digo? E Deus queira que não me venha o castigo bater à porta! A verdade - sempre ouvi dizer - é que o peixe morre pela boca. Essa é que é essa! Umas santinhas, todas, mas com pezinhos de porco.

- De barro ou de porco, vai dar ao mesmo. É um chiqueiro de lama! Bem, até mais ver, então.

- Como diz?

- Ah, passo, passo. Fique descansadinha que não me esqueço. Depois da novela dou lá um saltinho.

- Até loguinho então, se Deus quiser.

… feliz para sempre?

- … e viveram felizes para sempre.

o livro a fechar-se sobre o colo da minha mãe e uma mão terna a passar-me pelo cabelo, antes do sorriso, do beijo na testa, do

- Dorme bem, meu amor!

e então a mão, o sorriso, os lábios da minha mãe e o

- Dorme bem, meu amor!

a sucederem-se, cada um à vez, na ordem do costume, a não defraudarem as minhas expectativas. Com a mamã era “todos os dias igual”; todos os dias tão bom, ainda que o papá

- É todos os dias a mesma coisa contigo! Chiça, penico!

e eu

que não entendia a expressão, nem o desagrado do meu pai

a mirrar-me no meu canto, a montar um cavalinho da Playmobil e a fugir para o meio da quinta, onde o barulho dos animais me impediam de

- É todos os dias a mesma coisa contigo! Chiça…

…penico!

e a voltar apenas quando a porta da rua

Truz

com toda a força

um coice de cavalo na porta do estábulo

Truz

e as escadas do prédio

um, dois

numa obsessão por números

sete, oito

a contarem os passos do meu pai até à porta da rua. Como se do primeiro andar até ao rés-do-chão pudessem crescer degraus do dia para a noite

como se

do dia para a noite

vinte e três em vez de dezoito

ou trinta e um

quarenta e cinco

em vez de

dezoito.

Portanto

apenas quando a porta da rua

Truz

e as escadas

numa obsessão por números

dezassete; dezoito

eu a desmontar-me do cavalo e a aparecer na sala, como se por acaso

- Andava pela quinta mamã, não dei por nada. Saiu, foi? Hum! Pois, não reparei. E a aninhar-me no seu colo, que precisava mais de colo do que eu.

Não sei se à data o não compreendia já, pois entendo que as crianças não são tão ingénuas como as querem fazer parecer. Mas, a não compreendê-lo, a senti-lo, pelo menos

de modo que

a aninhar-me no seu colo

a perguntar-lhe

depois de

- … e viveram felizes para sempre.

da mão pelo cabelo, do sorriso, do beijo na testa e do

- Dorme bem, meu amor!

a perguntar-lhe

- As pessoas quando casam são felizes para sempre?

- Nas histórias sim.

a garantir-me com voz frouxa

- E sem ser nas histórias?

- Às vezes são.

- És feliz para sempre, mamã?

e a minha mãe, que entendia as perguntas das crianças, respondeu-me que

- Sim.

e sorriu, com a expressão de

- Sou tão infeliz, filho! Sou tão miserável, meu querido. Deixa-me dormir contigo, meu amor. Só hoje. Eu juro que não me habituo. Só hoje, meu lindo. Não aguento mais ficar sozinha.

apesar de

- Sim

com o sorrido de

- Não!

E porque a não conseguir dizer-me a verdade

(uma dificuldade que os adultos têm. Alguma função que se atrofia com a maioridade)

a não conseguir

- Sou tão infeliz, filho! Sou tão miserável, meu querido.

tal como para o meu pai

que algures num carrinho da Playmobil às voltas pela cidade

a não conseguir

- Deixa-me dormir contigo, meu amor. Só hoje. Eu juro que não me habituo. Só hoje, meu lindo. Não aguento mais ficar sozinha.

a deixá-lo ir

dezassete, dezoito

dezanove, vinte, vinte e um…

Como se do primeiro andar até ao rés-do-chão pudessem crescer degraus do dia para a noite

como entre o meu pai e a minha mãe

cada dia um degrau mais longe

dois mil quinhentos e trinta e nove, dois mil quinhentos e quarenta…

Não sei se à data o não compreendia já, pois entendo que as crianças não são tão ingénuas como as querem fazer parecer. Mas, a não compreendê-lo, a senti-lo, pelo menos

de modo que

a aninhar-me no seu colo

a receber

a mão terna pelo cabelo, antes do sorriso, do beijo na testa e do

- Dorme bem, meu amor!

na ordem do costume

todos os dias

igual

tão bom

a dizer-lhe

- Dorme comigo hoje, mamã.

porque ela

com o sorrido de

- Não!

a dizer-me que

- Sim!

jamais me pediria

tal como ao meu pai

para ficar

…para sempre…