Friday, August 29, 2008

O Antigo Monumental

Desde que deitaram abaixo o Monumental que nunca mais foste o mesmo. Estávamos casados havia dois anos e o amor prometia planícies de lírios em flor. Eu sei que tu não gostas de falar sobre este assunto, mas eu não consigo guardar tudo para mim e não tenho amigas, como tu sabes. O que tu ganhavas chegava
- …para os dois…
insistias
- … e assim o pequeno…
Paulo Filipe
(não me lembro de alguma vez lhe ter ouvido o nome na tua boca)
- … o pequeno…
passava mais tempo comigo, que
- O mal da Revolução foi esse!
dizias e eu acreditava
- Desintegrar as famílias.
E como em casa não se fazem amigas, e num prédio de doze apartamentos não se conhece ninguém
bom dia, boa tarde
que à noite já é para se ter a porta trancada, que
- O mal da Revolução foi esse!
não tenho amiga alguma.
A dona Odete? Não! Conhecida apenas.
bom dia, boa tarde
que à noite
vai dormir ao lar
- O mal da Revolução foi esse!
Por isso, Zé, tem lá paciência, mas preciso de falar com alguém. Não é ser chata, Zé, é ser tua mulher, é estar à toa! É não saber o que se passa e tu não falares comigo. Quase não olhas para mim e nunca te deitas à mesma hora que eu. Ah que Deus que tu trabalhas e sustentas a casa. Caramba, Zé! Então e o meu trabalho não custa nada? Quanto pensas que leva uma empregada hoje em dia?
Parece que é só o cheque que distingue o trabalho da obrigação. Mas se eu não tenho cheque é porque o que tu ganhavas chegava
- …para os dois…
Mas já éramos três, Zé! Já éramos três.
- … o pequeno…
Sim, o pequeno, Zé
Paulo Filipe.
E é só por isso que não ponho um cheque ao lado do teu. Como os bilhetes, alianças de papel, sobre o balcão do Monumental, quando tu, mais tempo a olhar para mim que para a tela, a suar-me a mão nas matinés de domingo, e ao meu ouvido
- És tão bonita, Rosa!
Ai, meu Deus! Nem imaginas as saudades, Zé! Uma mulher nunca se esquece destas coisas.
Sempre ali, aos domingos. E depois do filme, avenida abaixo, mão dada, desde que chegavas até me deixares à porta dos meus pais
Rua do Salitre, 31
de mão dorida
tão feliz
porque tu no meu ouvido
- És tão bonita, Rosa!
Tão feliz
até à hora de dormir, contigo ali, apertadinho nos dedos. Ai, Zé! Uma mulher nunca se esquece destas coisas.
Uma cerimónia simples. Estavas tão nervoso… tão bonito, Zé. A igreja dos Anjos…
e o amor prometia planícies de lírios em flor
De lírios em flor, Zé!
Delírios em flor…
Dois anos de felicidade. Três de namoro. Até que
vai a baixo o Monumental
e tu
alguma coisa em ti
a ir abaixo também.
Insistias não ser nada: o trabalho, a reprografia, o cansaço, as responsabilidades
altas horas
e eu
sozinha
com o Paulo Filipe
(Sim, o pequeno, Zé!)
até tu
altas horas
pé ante pé para debaixo do lençol
e eu
sem pregar olho
a fingir que dormia, a sentir-te torturado, com vontade de me agarrar a ti, entrançar os meus dedos nos teus, e ficar ali
como antigamente
apenas ficar
ali
como antigamente
na almofada morna do teu ombro… mas
a não mexer um músculo
a fingir
a sentir-te torturado
a torturar-me
porque tu nunca gostaste de falar sobre este assunto.
Eu entendo, meu querido! Também amava o Monumental
o nosso refúgio
(três anos de namoro)
Por ti tínhamos casado lá. Mais sagrado que a igreja do Anjos. Mas a família, as tradições…
Bem dizes não ser nada disso. Disfarças. Mas eu conheço-te, Zé. São muitos anos. Tenho ouvido psicólogos na televisão a falarem dessas coisas
traumas.
Há mais gente que ficou assim. Olha a Laura Alves, coitadinha! Dizem que tudo se resolve. Mas fala comigo, Zé. Por favor fala comigo. Senão começo a criar macaquinhos no sótão
como tu dizes.
O que é que te custa descansar-me, Zé?
O metro, a hora de ponta, toda a gente ao monte, homens e mulheres
(é normal que cabelos louros na lapela, um perfume estranho)
eu sei.
Mas o que é que te custa dizer-me
metro
hora de ponta
gente ao monte
homens e mulheres
amante nenhuma…
O que é que te custa, Zé
por causa do Monumental
que me amas
que
- És tão bonita, Rosa!
o que é que te custa, Zé? O que é que te custa?