Saturday, July 15, 2006

...por favor, faz um esforço!

O salão cheio de convidados e sorrisos cínicos, ou sinceros, não sei bem. Nunca soube distinguir.

O jantar não estava mau e a Guida estava linda, maravilhosa, um arraso.

- Estás linda!

- Maravilhosa!

- Um arraso!

Duas pedras de gelo a derreterem, como a minha paciência, no copo de whisky que o António

- Toma Miguel. É assim, não é?

Era assim, sim.

Nunca tive estomago para rendez-vous e croquetes, mas a Guida

- Miguel, por favor, faz um esforço!

E eu a fazê-lo, por que a Guida

-... por favor...

Estava farto de intelectualismos e críticos de arte!

- É o Bernardo Vilanova, crítico de arte.

Que raio de merda é um crítico de arte? – eu a pensar.

Que raio de merda é um crítico de arte? – no meu rosto enjoado pelo apertar gelatinoso da sua mão “sensível”.

- É duma sensíbilidade!

Uma não sei quantas a comentar para a Guida ou para si mesma, não sei bem. Nunca soube distinguir.

- Chegou ontem de Milão onde esteve a inaugurar uma galeria. – a Guida para mim.

- Cada dia um vernissage! – nos seus lábios “sensíveis”.

E eu a cagar-me para cada dia dele. E eu farto de... e críticos de arte! A arte não é possível de ser criticada. Só é possível ser amada ou não. A arte não se pode mudar, trasformar, melhorar, piorar. Mas nada disto lhe disse. Porque isso seria adiantar conversa e eu

a cagar-me para cada dia dele; para cada opinião.

- É o Bernardo Vilanova.

- Muito gosto. – sem qualquer entusiasmo na voz.

- Crítico de arte.

- Hum!

- Muito gosto. – porque a Guida

- Miguel, por favor, faz um esforço!

Por isso eu

- Muito gosto. – ainda que sem qualquer entusiasmo na voz.

O sofrimento é uma lesma cansada que se arrasta sem vontade. 23:47, e ainda agora acabou o jantar.

… não estava mau e a Guida estava linda, maravilhosa, um arraso.

- Estás linda!

- Maravilhosa!

Ponham-me uma cruz às costas, coroem-me a paciência com espinhos, mas andem depressa com o tempo.

- Então Miguel, quando é que sai outro livro? – um amigo de faculdade da Guida. Luís, ou Angelino, não sei bem. Nunca soube distinguir

E eu com vontade de

- Estás mesmo interessado em saber, ou perguntaste apenas para meter conversa?

apenas a dizer

-Um dia destes. - sem qualquer entusiasmo na voz.

- Um dia destes.

e não

- Estás mesmo interessado...

porque a Guida

- Miguel, por favor...

23:58, e uma taça de champanhe no lugar do copo de Whisky, sem pedras de gelo, sem paciência, apenas bolhinhas, sensíveis, como a mão gasosa do crítico de arte.

- É o Bernardo Vilanova...

Estou-me a cagar para isso! Eu a cagar-me para cada dia dele; para cada opinião. Mas apenas

- Hum! – cínico, ou sincero, não sei bem. Nunca soube distinguir.

Apenas

- Hum! – porque a Guida

- Miguel...

Estou-me a cagar para o Bernardo e para o Vilanova, ainda que somente

- Muito gosto. – ainda que sem qualquer entusiasmo na voz. E uma taça de champanhe no lugar do copo de whisky que o António

- É assim, não é?

no lugar da cruz, ou da croa de espinhos, não sei bem. Nunca soube distinguir.

Era assim, sim.

Uma taça de champanhe, falso ou genuino, não sei bem. Nunca soube...

Uma taça de champanhe, porque estas coisas é sempre com champanhe que se brindam. Ainda que eu preferisse uma cruz; uma croa de espinhos.

Sempre achei que a arte devia ser vendida na rua. Porque toda a arte é vadia, vagabunda. E não é arte se não o for. Na rua porque é selvagem e não num jardim artológico.

- Parabéns Guida! A exposição está fantástica!

- Parabéns Miguel! Por acréscimo. Por cortesia. Por educação, maquilhada, ou natural, não sei bem. Nunca soube distinguir.

- Puta que vos pariu!

Num avolumar de vontade. Ainda que apenas

- Obrigado. – sem qualquer entusiasmo na voz.

- Obrigado.

Porque a Guida

- Miguel, por favor, faz um esforço!

Acorda!

De repente, parece que acordei de um sonho e tinha vinte e três anos. O calor de Julho bateu-me nas ventas dormentes como uma lambada de Deus, à saída da faculdade, como que a dizer:

- Acorda!

Tinha acabado de defender o meu projecto de fim de curso e estava formado. Um senhor engenheiro! E agora? Senti tudo menos alívio. Sentia-me como se de repente uma desconhecida me abordasse na rua com uma barriga de sete meses a anunciar:

- Parabéns, vais ser pai!

Enquanto eu, de olhos abertos, a fazer força nas pálpebras para as descerrar. Porque não se pode acreditar de olhos fechados.

Parece que até já estava a ver o meu pai, pondo-me a mão vaidosa em cima do ombro

- Agora sim, vai começar uma vida nova! Eu com a tua idade…

e desfiar de um rosário ladainhado, ouvido vezes sem conta. Por minha conta, agora! Nessa noite mal dormi e tive sonhos recorrentes de angústia, como se estivesse sozinho no meio e uma medina árabe e não soubesse como de lá sair, nem como falar com os transeuntes que, como fantasmas, passavam por mim sem me ver, embora eu

- Desculpe, como é que eu saio daqui?

embora eu, não em árabe

- Tenho um exame importantíssimo e já estou atrasado!

embora eu, apenas a dormir.

Nunca nada na vida fiz sozinho. Nem a minha própria sexualidade me foi permitida descobrir por mim. O primeiro orgasmo na mão de uma prima mais velha, numas férias em Armação de Pêra; uma sensação de nascimento e morte ao mesmo tempo, e o constrangimento no rosto da minha mãe, na manhã seguinte, ao fitar-me os manchados calções do pijama.

Lembro-me do meu primeiro dia de aulas – dos meus pais agarrados às minhas mãos minúsculas, como se tivessem medo de se perder – e do sorrido batonado da minha mãe ao portão do liceu, no meu último dia de secundária.

- Queres que te deixe na faculdade? - no dia da matricula, o meu pai, numa tentativa desesperada de esticar um pouco mais a tripa umbilical.

Sempre presentes, sempre colados à biqueira dos meus sapatos, impedindo-me de cair e de andar.

Lembro-me da minha primeira borbulha de acne e das mil na manhã seguinte, numa odiosa colecção estampada na caderneta horrível da minha cara. Enquanto a minha mãe:

- É normal filho! - e eu a ver na cara dos meninos bonitos da escola que era tudo menos normal.

A primeira lâmina de barbear, oferecida pelo meu pai aos quinze anos, seguida do incontrolável discurso:

- Eu com a tua idade já tinha barba!

Com a minha idade ele já era o máximo! E a revolta dentro de mim a querer soltar-me a língua para lhe perguntar:

- Então e o que é que aconteceu para ficares assim?

E a não dizer nada, ainda que com vontade de

- Então e o que é que aconteceu…

E uma dualidade enorme debatendo-se dentro de mim. A raiva a puxar-me pela língua; o medo a pôr-lhe freio.

A minha mãe a explicar-me o ciclo menstrual, garantindo-me que:

- As mulheres apreciam um homem que compreenda o funcionamento da sua intimidade.

Ao passo que o meu pai:

- Da primeira vez custa-lhes um bocadinho, mas é mais fita que outra coisa!

O que me fez passar mais tempo a falar de trompas de Falópio e ovulação do que propriamente gozar a minha primeira vez, com uma rapariga que percebia mais de sexo que os meus dois pais juntos. Percebi-o quando um

- Não!

admirado, seguido de um admirado

- Porquê?

quando lhe perguntei

- Doeu-te?

Que vergonha!

A minha primeira bebedeira e eterna jura falsa de não repetir. O chegar a casa aos trambolhões com o universo às cambalhotas dentro do estômago e a desculpa enjoada na manhã seguinte de que devia ter comido algo estragado, com a minha mãe nos meus ouvidos de cristal:

- Ai coitadinho!

E o meu pai:

- São essas porcarias que vocês agora comem para aí!

porque o menino deles não bebia!

A minha primeira ganza, segunda, terceira e o cair para o lado a rir porque:

- Isto não bate nada!

A ida a inspecção militar e o medo de ter de rapar o cabelo; de botas no lugar dos meus sapatinhos de vela; do meu quarto transformado em caserna e a voz doce da minha mãe num despertar de cornetim:

- Mancebo Rodrigues!

em vez de

- João. Acorda filho!

E de repente, já engenheiro, sem noção de coisa nenhuma, sem vontade de coisíssima nenhuma, além de correr a esconder-me de novo no útero dormente da dona Júlia. Engenheiro de sonhos de papel. Engenheiro de vontades castradas, uma após outra, como cepas ao cair do Inverno. E eu a querer adormecer e acordar com cinco anos, num tempo em que ainda não engenheiro, ainda não calções manchados de vergonha, ainda não

- Não! Porquê?

ainda não

- Com a tua idade…

Eu a querer adormecer e acordar com cinco anos, após a sesta, para o lanche de bolachas com doce de morango, com a voz doce da minha mãe nos meus ouvidos pirralhos:

- João. Acorda filho!

Plim

A moeda a cair

plim

no som que as moedas fazem, ou parece que fazem

como num desconjuro

plim

a moeda

a cair

na caixa invisível

e a cortina da cabine a subir devagar, a despir devagar a bailarina que

devagar

desapertando os atilhos da pouca roupa de trabalho.

Um gingar de corpo fingido

o gingar

o corpo não, que esse, bem sincero, graças a Deus e aos seus ricos paizinhos, abençoados sejam.

Um gingar de corpo, fingido, em movimentos de natação sincronizada, sem água nem vontade. Um rodar de cabeça, uma seara de trigo levantada por um vendaval, apenas na cabine, inviolável, unicamente acessível à custa de

plim

na caixa invisível, porque a cortina cansada a procurar repouso.

Plim

não como um desconjuro; como um reencontro feliz de moedas conhecidas.

Uma sera de trigo num rodopio de

- Trabalho é trabalho!

E uma mão a procurar o bolso

a procurar no bolso

não as moedas, que ainda agora caiu uma

plim

outra coisa

enquanto a seara de trigo a chegar-se à vitrine do talho

agora apenas um animal para abate, não uma bailarina de corpo sincero, graças a Deus e aos seus ricos paizinhos, abençoados sejam.

A faca afiada

não no bolso

na mão segura

E o animal a mostras-se todo - por dentro e por fora -, a bater-se, a apertar-se; a encolher-se, a esticar-se, sem mostrar os dentes, o mais importante.

E a faca num talhar de carne

Não no bolso

num deslizar de metal

plim, plim, plim

até que o animal exausto, a recolher, como a faca, romba de tanto esquartejar. Até que o animal a recolher ao curro e outro a sair para a arena. Maior, mais feliz, menos

- Trabalho é trabalho!

de corpo não tão sincero, graças a Deus e aos seus ricos paizinhos...

uma desconhecida a invadir-me a intimidade, e eu envergonhado porque

a faca

não no bolso

e eu envergonhado porque... diante de olhos estranhos…

a retirar-me também; a procurar qualquer coisa com um olhar clínico; a não procurar nada. Aliás, a procurar não encontar o olhar de mais nenhum outro comprador.

ainda que eles a desolharem do mesmo jeito

porque ali não havia gente

não havia ninguém, e o segredo a alma do negócio.

Assim, a retirar-me para a claridade do meio-dia, porque a hora de almoço quase no limite, enquanto nas minhas costas, um preto de balde e esfregona na mão, de cabine em cabine, a limpar restos de sangue que, como moedas

plim

pingados das facas num suspiro de morte

para o chão

plim

plim

plim.