Saturday, July 15, 2006

Acorda!

De repente, parece que acordei de um sonho e tinha vinte e três anos. O calor de Julho bateu-me nas ventas dormentes como uma lambada de Deus, à saída da faculdade, como que a dizer:

- Acorda!

Tinha acabado de defender o meu projecto de fim de curso e estava formado. Um senhor engenheiro! E agora? Senti tudo menos alívio. Sentia-me como se de repente uma desconhecida me abordasse na rua com uma barriga de sete meses a anunciar:

- Parabéns, vais ser pai!

Enquanto eu, de olhos abertos, a fazer força nas pálpebras para as descerrar. Porque não se pode acreditar de olhos fechados.

Parece que até já estava a ver o meu pai, pondo-me a mão vaidosa em cima do ombro

- Agora sim, vai começar uma vida nova! Eu com a tua idade…

e desfiar de um rosário ladainhado, ouvido vezes sem conta. Por minha conta, agora! Nessa noite mal dormi e tive sonhos recorrentes de angústia, como se estivesse sozinho no meio e uma medina árabe e não soubesse como de lá sair, nem como falar com os transeuntes que, como fantasmas, passavam por mim sem me ver, embora eu

- Desculpe, como é que eu saio daqui?

embora eu, não em árabe

- Tenho um exame importantíssimo e já estou atrasado!

embora eu, apenas a dormir.

Nunca nada na vida fiz sozinho. Nem a minha própria sexualidade me foi permitida descobrir por mim. O primeiro orgasmo na mão de uma prima mais velha, numas férias em Armação de Pêra; uma sensação de nascimento e morte ao mesmo tempo, e o constrangimento no rosto da minha mãe, na manhã seguinte, ao fitar-me os manchados calções do pijama.

Lembro-me do meu primeiro dia de aulas – dos meus pais agarrados às minhas mãos minúsculas, como se tivessem medo de se perder – e do sorrido batonado da minha mãe ao portão do liceu, no meu último dia de secundária.

- Queres que te deixe na faculdade? - no dia da matricula, o meu pai, numa tentativa desesperada de esticar um pouco mais a tripa umbilical.

Sempre presentes, sempre colados à biqueira dos meus sapatos, impedindo-me de cair e de andar.

Lembro-me da minha primeira borbulha de acne e das mil na manhã seguinte, numa odiosa colecção estampada na caderneta horrível da minha cara. Enquanto a minha mãe:

- É normal filho! - e eu a ver na cara dos meninos bonitos da escola que era tudo menos normal.

A primeira lâmina de barbear, oferecida pelo meu pai aos quinze anos, seguida do incontrolável discurso:

- Eu com a tua idade já tinha barba!

Com a minha idade ele já era o máximo! E a revolta dentro de mim a querer soltar-me a língua para lhe perguntar:

- Então e o que é que aconteceu para ficares assim?

E a não dizer nada, ainda que com vontade de

- Então e o que é que aconteceu…

E uma dualidade enorme debatendo-se dentro de mim. A raiva a puxar-me pela língua; o medo a pôr-lhe freio.

A minha mãe a explicar-me o ciclo menstrual, garantindo-me que:

- As mulheres apreciam um homem que compreenda o funcionamento da sua intimidade.

Ao passo que o meu pai:

- Da primeira vez custa-lhes um bocadinho, mas é mais fita que outra coisa!

O que me fez passar mais tempo a falar de trompas de Falópio e ovulação do que propriamente gozar a minha primeira vez, com uma rapariga que percebia mais de sexo que os meus dois pais juntos. Percebi-o quando um

- Não!

admirado, seguido de um admirado

- Porquê?

quando lhe perguntei

- Doeu-te?

Que vergonha!

A minha primeira bebedeira e eterna jura falsa de não repetir. O chegar a casa aos trambolhões com o universo às cambalhotas dentro do estômago e a desculpa enjoada na manhã seguinte de que devia ter comido algo estragado, com a minha mãe nos meus ouvidos de cristal:

- Ai coitadinho!

E o meu pai:

- São essas porcarias que vocês agora comem para aí!

porque o menino deles não bebia!

A minha primeira ganza, segunda, terceira e o cair para o lado a rir porque:

- Isto não bate nada!

A ida a inspecção militar e o medo de ter de rapar o cabelo; de botas no lugar dos meus sapatinhos de vela; do meu quarto transformado em caserna e a voz doce da minha mãe num despertar de cornetim:

- Mancebo Rodrigues!

em vez de

- João. Acorda filho!

E de repente, já engenheiro, sem noção de coisa nenhuma, sem vontade de coisíssima nenhuma, além de correr a esconder-me de novo no útero dormente da dona Júlia. Engenheiro de sonhos de papel. Engenheiro de vontades castradas, uma após outra, como cepas ao cair do Inverno. E eu a querer adormecer e acordar com cinco anos, num tempo em que ainda não engenheiro, ainda não calções manchados de vergonha, ainda não

- Não! Porquê?

ainda não

- Com a tua idade…

Eu a querer adormecer e acordar com cinco anos, após a sesta, para o lanche de bolachas com doce de morango, com a voz doce da minha mãe nos meus ouvidos pirralhos:

- João. Acorda filho!

1 comment:

Carlos Garcia said...

Olha eu com a tua idade ja tinha pelo menos 3 romances, 2 novelas, 1 livro de cronicas e um contozinho erotico publicados ;) Ta cada vez melhor puto, o dia ha de chegar. (By the way, tens uns comentarios muita esotericos neste blog! Ainda dizem que aqui e que ha boa droga)