Monday, August 30, 2010

Contrafacções

Gostava de frequentar aquele bar. Era sempre sozinho que lá ia. Era sempre sozinho que lá estava. A dona, uma mulher robusta dos seus cinquenta, já me tratava pelo nome.
- Boa noite, senhor António.
apesar de eu
José Luís
que para quem não quero que
José Luís
- António.
De modo que
de cada vez que eu chegava
- Boa noite, senhor António.
e um sorriso
uma mesura de cabeça…
Uma simpatia!
Talvez porque casa aberta
visto ter cara de mulher batida pelas rajadas da vida
(ou do amor, que é o que se quer dizer quando se diz da vida)
cujos pés
sob as mantas
se valiam um ao outro
enroscando-se
num concílio de dedos
para lhe acalentar o sono
que a alma
(e isto sou eu a dizer)
há muito regelara de tão só.
Fosse lá porque fosse
(não importa)
a verdade é que
uma simpatia
e eu…
eu retribuía da melhor forma possível para um tipo do meu género
com cara
(bem certo)
de homem batido pelas rajadas da vida
(…)
O bar ficava num primeiro andar de um prédio cujo rés-do-chão não existia
(porta da rua e umas escadas);
a meio do salão, encostado à parede, um piano sem cauda
como um cão amputado
aguardava umas festas
(que era isso que lhe faziam)
no pêlo zebrado de dálmata empalhado.
Pedia um conhaque
(eu, claro
o piano, apenas umas festas)
e a dona Odete
(chamava-se Odete)
a dona Odete
trazia-me um brandy
um sorriso
uma mesura de cabeça…
(uma simpatia)
uma voz rouca de que quem toda a vida fumou e bebeu por solidão
- Ora aqui está o conhaquezinho!
e um sorrido
um brandy
que a dona Odete
- …conhaquezinho.
e que eu
(uma simpatia)
fingia ser conhaque
Não importava. Sabia-me quase ao mesmo, embora pagasse pelo pedido e não pela destilação. Talvez por soar melhor ao ouvido, afinal
conhaque é conhaque!
E ali ficava a bebericá-lo, enquanto a dona Odete declamava poesia nos intervalos das músicas.
Pessoa. Sempre Pessoa. Singular ou plural, mas, sempre Pessoa.
Era sempre dos últimos a sair
eu
a minha pessoa
às vezes plural
sempre das últimas a sair
(que para quem não tem destino, qualquer lugar está bom
está óptimo).
… sempre dos últimos

Mas naquele dia fiquei para lá do suposto.

Na parede oposta da sala, por sobre uma lareira extinta
(a lembrar-me um jazigo de família)
uma réplica de Picasso
O peixe numa travessa
Se fosse português, talvez houvesse pintado uma posta de bacalhau assado a boiar num mar de azeite, imortalizando o “fiel amigo”. Mas era espanhol, raios o partam por isso também!
Não me estou a desviar o assunto.
… fiquei para lá do suposto. Não tinha ninguém à minha espera no quarto alugado onde vivia para os lados dos anjos
e
porque ninguém à minha espera
para os lados dos Anjos
do céu
do paraíso
(que para quem não tem destino, qualquer lugar está bom
está óptimo
o paraíso)
ninguém
um cão, sequer
à minha espera
ninguém
que eu
amigo nenhum
(dois ou três colegas de trabalho, só isso)
divorciado e sozinho
- Impossível de aturar!
nas palavras da minha ex-mulher.
Não me estou a desviar o assunto.
Um pequeno parênteses
não há pressa
ninguém à minha espera
para os lados dos Anjos
do céu
do paraíso
um cão, sequer
um dálmata empalhado à espera de umas festas
nada.
Não me estou a desviar o assunto.
Um pequeno parênteses.
Talvez se um conhaque
um brandy
não importa
eu directo ao assunto
que um conhaque
ou brandy
como um pequeno parênteses
facilita as palavras que se querem dizer.
De modo que
sexta-feira à noite
divorciado e sozinho
conhaque e gigante
(fica conhaque, que se lixe!)
fiquei para lá do suposto
no canto do costume
(porque chegava cedo)
ausente
pensando em coisas ao sabor do conhaque
quando um fulano de cabelo lambido se levantou de uma mesa entre eis e ous, e foi sentar-se vaidosamente ao piano. Não lhe prestei muita atenção
pensando em coisas ao sabor do conhaque
(…que se lixe!)
no canto do costume de quem chega mais cedo
até ao instante em que começou a assassinar Choupin com as próprias mãos.
O conhaque, de repente, 605-forte
a queimar-me por dentro
direito aos nervos…
Os amigos
e os demais apedeutas ali presentes
deram-lhe, com palmas, a ideia poder assassinar impunemente mais um génio ou dois. E o fulano
cabelo lambido
não foi de modas, enterrando as unhas assassinas no pescoço de Mozart, numa subespécie de Salieri rancoroso
um réquiem ao réquiem
e ali ficou, durante mais duas ovações, a arrancar uivos de dor àquele dálmata amputado, como uma criança que repete a palermice ante o riso idiota dos adultos…
Não me estou a desviar o assunto.
E o fulano
cabelo lambido
a caminho da mesa
(ante as palmas e os dentes arreganhados daquele grupo de babuínos)
com ar dos cagões sem arte a fingir modéstia
- Nada de especial!
que era mais do que a verdade, embora ninguém concordasse com isso
(nem mesmo ele)
porque
na voz dos amigos
- Lá está este gajo armado em modesto!
- Podia ter ido longe!
outro mais consciencioso
(pelo menos prefiro pensar assim)
Mas não foi
e
para mal dos meus pecados
ficou por ali, a acabar de me falsificar a noite
a arrancar-me a fórceps da minha ausência
do canto do costume
a despertar em mim instintos violentos
que
felizmente
apaziguados pela presença robusta da dona Odete que se chegou ao centro da sala ainda a chapar as palmas uma na outra
(também ela)
que quem não distingue brandy de conhaque também não distingue Mozat de José Cid
(talvez porque casa aberta)
(uma simpatia)
e a anunciar
no fadeout dos aplausos
um poema de Pessoa
singular
plural
não importa…
Não me estou a desviar do assunto.
…a gerar silêncio na sala
e a sua figura
(vestido castanho de ombros largos, pernas grossas)
a colocar a voz
rouca
de que quem toda a vida fumou e bebeu por solidão
a inspirar fundo
enchendo o peito
onde o coração
senhor de um espaço imenso
a olhar para o canto
onde eu de costume
a encarnar o drama da declamação
a fechar os olhos, encerrando-me dentro
e...
Nessa noite não fui o último a sair. Nessa noite fiquei para além claridade da manhã. Nessa noite
de manhã
quando uma voz nas minhas costas
- Até logo, António.
eu
de mão na porta
na maçaneta de gelo
a sentir na boca a verdade contrafeita que alimenta a vergonha dos tristes e
por pouco não disse
- Zé Luís. Trate-me por Zé Luís.

Wednesday, August 25, 2010

Vives perigoso

Vives perigoso, no meio de todas as tuas cautelas, e
por mais que alguém
- Abre os olhos!
hás-de sempre encolher os ombros e seguir em frente, porque se ele há coisa que tu sabes é por onde pisas. E os erros dos outros…
os erros dos outros são os erros dos outros.
Não és o único. Mas não sê-lo não te livra da mediocridade. E o haver mais cegos na terra não te alivia a cegueira.
Não te preocupes com nada! Não penses em coisa alguma. Para quê? No fim de contas já pagas os teus impostos e o que ganhas mal te dá para tabaco e cafés. Pena o preço dos livros estar pela hora da morte, e um bilhete de teatro, nem se fala! Porque senão…
senão seria Eça e Shakespeare de manhã à noite.
Assim, olha… vai uma revistinha de algodão doce ou um jornaleco desportivo.
Vives perigoso, no meio de todas as tuas certezas, e por mais que alguém
- Abre os olhos!
hás-de sempre encolher os ombros e seguir em frente, porque em frente é que é o caminho. Mas ignoras que o caminho em frente é para quem sabe para onde vai, e tu… tu andas às voltas, como o ponteiro dos segundos, preso pelo rabo, embrutecendo sem sair do lugar. E como o ponteiro dos segundos, és o que mais se cansa, porque o que importa são as horas e de ti pouco se quer saber. Tens de dar muita volta para que o barão dos ponteiros se digne a dar um passo, que esse sim é importante, apesar de pequeno e gordo. És um burro à nora, que enquanto não tirar mil alcatruzes de água não tem direito a matar a sede.
Crês que se acabou o tempo da escravatura? Nem o tronco nem a chibata se extinguiram. Mudaram-se-lhes apenas os nomes, que é assim que se enganam os tolos e não com bolos e papas como há ainda muito quem pense. E de quem é a culpa?
Diria que é desses bastardos que disparam o preço dos livros, dos bilhetes de teatro; que deixam a vida pela hora da morte. Porque senão
eu sei
senão seria Eça e Shakespeare de manhã à noite.
Mas boceja, que é o que melhor te sai da boca. Não digas nada. Não faças coisa alguma. Para quê? Não pagas já os teus impostos e não andas à rasca para tabaco e cafés?
Encolhe os ombros e segue em frente, porque em frente é que é o caminho…
o caminho do sofá, da superfície comercial, do café, do trabalho, do cemitério municipal.
Que sabes tu do mundo que te rodeia, tu que votas e te exaltas? Tu que revolucionarias a economia de um país inteiro, do mundo todo, se tos pusessem nas mãos, apesar de estares enterrado em dívidas até à última vértebra do pescoço?
A culpa é do sistema. Também concordo. Do jantar fora por sistema, do comprar roupinha de marca por sistema, do último telemóvel por sistema, de umas jantes novas para o popó por sistema, da malinha nova para condizer com a sainha nova por sistema, do ipod, do pda, do htc, do lcd, tudo xpto.
Pena o preço dos livros estar pela hora da morte e não haver bibliotecas neste país! Felizmente as revistitas de algodão doce e os jornalecos desportivos são oferta do Estado, que nem para tudo é mau o sistema.
Que sabes tu do mundo que te rodeia, tu que votas e te exaltas? Que acabarias com a guerra no mundo, mas distribuis lambada lá por casa como panfletos à boca do metro?
E de ti mesmo, que sabes tu? Saberás, por certo, mais da vida alheia, ou da de uma qualquer personagem de novela, que de ti mesmo ou de quem a teu lado enche o silêncio do quarto com roncos profundos. Mas como poderias tu saber, se tens a cabeça mareada de tanto andar à volta e o chão já te dá pela cintura… Não tardará a cobrir-te por completo.
Saberás, porventura, o porquê da tua inércia, da tua inépcia? E como se conjuga a segunda pessoa do singular do futuro do conjuntivo do verbo saber?
Quando souberes, avança… até lá
Abre os olhos!