Friday, May 30, 2008

Solidão em biquinhos de pés

E as tábuas das escadas

a que chamam degraus

a rangerem-me sob os pés, denunciando-me os passos aos outros hóspedes da pensão. Um resmungar que só lhes ouvia a altas horas da noite

talvez porque a dormirem já

a acordarem por minha causa

dos meus passos atordoados, pesados do vinho e do sono, no resmungar da velhice, dado que tudo o que é velho geme e resmunga.

Eu compreendo. Claro que compreendo. O dia todo para acima e para abaixo, no clep-clep fofo do tapete que lhe lhes abafa o queixume e não deixa que as agridam tanto. As escadas são de origem, e a pensão, de mil nove e tinta e nove. Passou-lhes a guerra para cima e para baixo

clep-clep

tapete nem meio tapete

que quando se é novo não se geme de queixa.

Mil nove e tinta e nove

a guerra

para cima e para baixo

de modo que agora

qualquer coisinha

os nervos à flor da cera

especialmente à noite

quando o silêncio amplifica o tamanho e o peso dos homens, e o tapete não chega para lhes amordaçar o queixume.

Mas eu não posso vir mais cedo. Compreendam vocês também que eu não posso

mais cedo

pois se me deito sem sono, ou sóbrio, penso na vida que não tenho. E porque o pensá-lo é sinal de estar vivo, entro em conflito comigo, porquanto não entendo o paradoxo de estar vivo e não ter vida. Entendem? Nem eu! Eu prometo descalçar-me à entrada

é isso

descalçar-me à entrada

aliviar o passo…

Ai é a mesma coisa? Então se é a mesma coisa não me chateiem e muito boa noite, que pago as minhas contas e tenho mais que fazer que gastar latim com um xilofone de tábuas desafinadas. Ora não querem lá ver! Não é o meu dinheiro como o dos outros? Tudo igual, minhas queridas! Só mudam os horários.

Não posso vir mais cedo! Caramba, já disse que não posso vir mais cedo, que inferno! Se me deito sem sono… sóbrio… penso na vida… sinal de estar vivo… conflito comigo

ou conflituo comigo

que às vezes não há diferença entre substantivos e verbos, quer existam quer não. Isto para verem que não sou nenhum inculto que para aqui ando. Só não posso é deitar-me sem sono

sóbrio

porque penso na vida que não tenho. E depois

conflito

como em mil nove e trinta e nove

sabem como foi

que também é sinal de estar vivo

paradoxo

estar vivo e não ter vida.

Entendem?

Eu sei que são velhas e têm direito ao sossego e ao silêncio da noite, mas olhem, estudassem, se queriam ser escadas de púlpito, que essas sim são só para enfeitar, pois sermões é coisa para dar aos peixes, e, para lhes chegar, não são vocês precisas para nada. Se fossem escadas de quinta a esta hora estavam deitadinhas no celeiro a dormir o sono dos justos, nas palhinhas como o menino, que também é filho de carpinteiro. Mas, e então?! Também eu se fosse mais fino não dormia no segundo andar desta espelunca. Dormia no Ritz, no Palace.

Ah que Deus, daqui a nada são sete da amanhã e já começa o para baixo e para cima dos que têm ou não têm que fazer. Que tenho eu com isso? Os guardas-nocturnos também dormem de dia, tal como as raparigas de má fama. E se eu fosse um desses? Hum? Como é que era, se eu fosse um nocturno de má fama, ou um guarda-raparigas? Hum? Ah, não dizem nada!

Eu que até tenho consideração, que até suavizo o peso, respirando pouco

e olhem que quatro lances de pulmões vazios não é brincadeira

disposto até a descalçar-me à entrada

aliviar o passo…

Agora se é a mesma coisa… boa noite!

E ao chegar ao quarto, a porta

uiiiick

a ranger, denunciando os meus gestos aos outros hóspedes da pensão. Também ela estava a dormir. Também ela a resmungar. Também a ela lhe passou a guerra de um lado para o outro. E eu que não casei para não ter quem me controlasse os passos, os gestos, as horas e no fim dá nisto. Irra! Mais um copo ou dois e não lhes ligava peva, agora assim, no intermédio da razão… Anda-se um homem a poupar para quê? Para ter chatices, é o que é!

Mais um copo ou dois e nem escadas nem porta, nem o raio que as partisse: uma auto-estrada sem portagens do balcão à tarimba. Agora assim tudo manda vir com um homem

que ninguém percebe isto de estar vivo e não ter vida

o paradoxo

e ao pensá-lo, olho para a cama, quieta, no seu sono madeira e molas

(a ela não lhe passou a guerra por cima).

Pelo menos a de mil nove e trinta e nove!

Passaram outras

que numa cama só há paz depois da guerra.

Sento-me à beirinha, procurando não a acordar, levanto um pé

nhec

numa demora de preguiça a trepar à árvore

pata a pata

outro pé

nheeeec

a acordá-la por fim, num rabujar de madeira e molas…

Deito-me vestido. Estou quentinho, quero que se lixe. Fecho os olhos

os ouvido não consigo

nhec-nhec…

a respirar devagarinho para não despertar nela a fúria de esposa amuada pelo despertar do sono, pelo tarde das horas, pelo cheiro a álcool, a fingir-me adormecido já, mas o ranger, como um resmungar enervante de esposa nos meus ouvidos

nhec-nhec… nhec-nhec … nhec-nhec …

como que

- E não finjas que estás a dormir. Não faças que não me ouves.

nhec-nhec… nhec-nhec … nhec-nhec …

Era mais um copo ou dois… agora assim, no intermédio da razão…

nhec-nhec… nhec-nhec … nhec-nhec …

- São isto horas de me vir acordar? Lá porque pagas as contas achas que tenho de estar sempre pronta para levar contigo em cima?

nhec-nhec… nhec-nhec … nhec-nhec …

E eu que não casei para não ter quem me controlasse os passos, os gestos, as horas e no fim… Mais um copo ou dois e podia nhecnhecar à vontade que eu

peva

agora assim, no intermédio da razão… Anda-se um homem a poupar para quê? Para ter chatices, é o que é!

Arre porra que é demais!

A nossa música

Há pouco, quando vinha no carro, passou a nossa música. Há muito tempo que não a ouvia e

apaixonei-me de novo por ti.

Temos destas coisas, não temos? Apaixonarmo-nos de novo ao som de uma música antiga, não é? Uma bebedeira que passa, como todas as coisas que passam.

Quando entrei em casa, cansado do táxi, vi-te do bengaleiro

na confusão dos tachos

nenhum segredos para ti.

e pareceste-me bonita, como há muito não te via, e até as tuas pequenas imperfeições

o olho vazado pelo acidente da fábrica; a verruga no pescoço, que desde que apareceu evito olhá-la...

Desculpa amor, nunca to ter dito! Desculpa ainda agora pensá-lo no silêncio do não te dizer ainda. Sabes que tenho pavor de insectos, não bem insectos, mas não sei que nome tem a classe das carraças. Aracnídeos? Acho que num concurso de televisão

- Aracnídeos.

Deve ser. Afinal também tenho nojo de aranhas.

Não é por mal! Os traumas nunca são por mal, não é? E ninguém sofre mais com eles que os traumatizados. Uma febre em criança. Sempre tivemos cães, e o Alentejo, quente como tu sabes… Vai daí que… Por pouco que não me apaguei, disse o Doutor Juvenal Seixas à minha mãe

o meu pai na Suiça

e estas coisas, tu sabes, marcam uma pessoa para a vida toda.

Mas agora, importância alguma. Contigo aí, vista do bengaleiro

na confusão dos tachos

nenhum segredos para ti…

Estavas calada e calada ficaste logo a seguir ao

- Olá.

mecânico, como o beijo que há muito já não damos. Não o demos um dia, por causa de uma discussão, e enquanto durou o amuo não o demos, e deve ter-se atrofiado a função. E depois, para retomar o hábito

complicado.

É sempre complicado retomar o hábito.

Devemos ter achado que estava tudo bem assim e o achá-lo criou um hábito novo, o hábito de não ser preciso dá-lo mais. Afinal vinte e dois anos de casamento e mais três de namoro dispensam formalidades e cerimónias. Não é assim?

Mas agora, que tu aí

no silêncio dos dias passados, contados pelo calendário do teu avental

1982

(aonde isso já vai!)

mas que ainda serve, tal como nós, numa recordação obstinada de dias felizes.

Pareceste-me bonita, como há muito não te via

e até as tuas pequenas imperfeições

agora

importância alguma

o olho vazado pelo acidente da fábrica, que te obrigava a olhar-me de lado, para me veres de frente e que sempre me irritou, como se tu

num olhar de esguelha, para me provocar

sem que algum dia me tenhas dito

- Não entendes que é por causa da vista, Samuel?

ou a verruga no pescoço que

por pouco que não me apaguei; o Doutor Juvenal Seixas; minha mãe, quente como tu sabes; o Alentejo, o meu pai na Suiça… vai daí que traumas. Não por mal, mas ninguém sofre mais com eles que uma criança. E estas coisas, tu sabes, marcam uma pessoa para a vida toda. Vai daí que talvez febre alguma, cão algum. Pensando bem, nem televisão, nem concursos; quaisquer aracnídeos traumatizados; e uma aranha não bem numa aranha: uma carraça apenas; uma outra forma de pôr as coisas, embora o nojo todo lá.

Mas agora

(aonde isso já vai!)

importância alguma

apenas tu

vista do bengaleiro

bonita, como há muito não te via

na confusão dos tachos

nenhum segredos para ti

fazendo mil coisas ao mesmo tempo para que a vida não pare, como eu, às vezes, pela cidade, às voltas, para que taxímetro não pare, como se o coração parasse com ele.

Mil coisas ao mesmo tempo.

Sempre admirei essa capacidade em ti; a aptidão que te permitia fazer amor e bocejar ao mesmo tempo.

Agora

alguma coisa estava diferente em mim naquele dia

(a nossa música… Temos destas coisas, não temos?)

mas em ti tudo igual

confusão dos tachos

nenhum segredos para ti…

Nessa noite procurei-te, sem jeito. Não sabia bem como me chegar a ti…

Deve ter-se atrofiado a função. E depois

complicado

sempre complicado retomar o hábito.

Tapei-te os ombros, puxando o lençol

(não encontrei melhor desculpa).

Percebeste o gesto, disseste não ter frio

a voz a pedir um abraço

não importa de quem

um abraço

a luz apagada, um pouco de claridade pelas frinchas dos estores

o candeeiro da rua e espreitar indiscreto

um olho apenas

como vês, importância alguma

e eu uma perna sobre a tua

onde os pêlos

como ervas

crescidos pelo desmazelo do amor

pequenas imperfeições

importância alguma

juro que importância alguma

porque eu

ou melhor

a nossa música

Entendes?

É que…

há muito tempo… e…

apaixonei-me de novo

por ti.

Temos destas coisas, não temos?

Não te preocupes, vai tudo correr bem. Pensei dizer e não disse. Afinal vinte e dois anos de casamento e mais três de namoro dispensam formalidades e cerimónias. Não é assim? De modo que eu

outra perna agora

tu a dares o jeito, a aceitares-me o peso

estranho

no silêncio das palavra que vinte e dois anos de casamento e mais três de namoro

dispensam

à espera de um abraço que depois viria

(viria, sim)

de olhar fixo nas sombras do quarto, acordadas pelo o candeeiro da rua

indiscreto

um olho apenas

(para quê dois quando não há muito já que ver?)

vazia

como a orbita esquerda de ti

(talvez mais coisas vazias desse lado)

por causa do acidente da fábrica

Por que mais haveria de ser?

estando ali e não estando

tu

como olho cego

morto talvez

que os olhos já nascem dentro do caixão que os há-de sepultar

à espera de um abraço

não importa de quem

um abraço.

Presente envenenado

Sabíamos que não o devíamos. Mas sabê-lo não chegava para não o fazermos. Há muito que nos olhávamos com olhos de cobiça. Um homem e uma mulher que nunca se tocaram só se olham em silêncio por um motivo: o desejo de tocarem-se.

Eu sabia-o. E ela, por ser mulher, sabia-o, sentia-o e pressentia-o. A Mila não merecia que lho fizéssemos, e nós não merecíamos ficar por fazê-lo. É difícil julgar. Quem está por dentro julga por defeito e quem por fora, julga por excesso. Somos bichos, que podemos contra isso?

Eu sei que a Suzy era irmã dela, mas dessa parte não me cabia a mim a responsabilidade. A minha responsabilidade era para com a Mila, já nem digo para com a família, ou para com Deus, a quem prometi amá-la e respeita-la por toda a vida. Casámos pela igreja porque a Mila

- Oh, Válter, é o sonho da minha vida!

e porque o sonho

da vida dela

eu a prometer

- ... amar-te e respeitar-te…

Por isso, já nem digo para com Deus

ou para com a família que

nunca me gramou. Especialmente o doutor Silvério, aos olhos de quem eu tinha olhos de manequim, frios e baços. Embora lhe dissesse

(à filha)

- Tu é que sabes!

A Suzy ainda era uma miúda quando eu e a Mila encetámos o namoro, e nessa altura, os seus olhares, provocadores já, encarava-os como provocação de adolescente; afirmação da auto-estima, ou coisa que o valha. Mas quando fez dezoito anos

no exacto dia dos seus

dezoito anos

pareço ter reparado pela primeira vez nela. Como se agora já fosse permitido olhá-la

a filha mais nova do doutor Silvério

com os meus olhos de manequim, frios e baços

contemplá-la, e às formas que tinha, mais perfeitas que a irmã. Agora que

- És finalmente uma mulher.

no abraço orgulhoso que dona Silvana lhe dera por amor e orgulho de mãe.

Estremeci, quando, durante as palmas, deixou a sala às escuras com um sopro só e, de novo, ao acender das luzes, quando os seus olhos em mim, com um morder vela pedindo um desejo

para dois.

Um sopro só

e eu

como a sala

às escuras

dentro de mim, perdido na caverna vazia da culpa do meu desejo.

Morder de vela

dentes e lábios

um pouco de língua

- …finalmente uma mulher

completa

olhos em mim

que um homem e uma mulher que nunca se tocaram só se olham em silêncio por um motivo.

Mas não logo. Não. Um anos depois. Na véspera dos dezanove

mais mulher ainda

impossível de ignorar.

- O meu presente de aniversário. - sussurrou-me - O presente de todos os meus aniversários juntos.

Oh, Deus, como podes ser tão bom e tão cruel!? Como podes ser tão carrasco com a fraqueza de um homem, que sabes, porque sabes, que não será capaz de resistir a uma maçã, quanto mais a duas?

- O meu presente de aniversário.

Sabíamos que não o devíamos. Mas sabê-lo não chegava para

- Isto é uma loucura! - na minha voz trémula de desejo; a não conseguir evitar-lhe

o hálito açucarado

morder de vela

dentes e lábios

um pouco de língua

- …finalmente uma mulher.

a dizer-me num sopro só

- Eu sei que tu me queres.

e eu

como a sala

às escuras

dentro de mim, perdido no poço do inferno, que aquele calor não era

não podia ser

humano

a dizer

- Quero-te.

a repetir

- Quero-te, quero-te, quero-te…

num desespero de primeira vez, e a deixar-me ir, aos poucos, até à ruína de mim; a dar razão ao doutor Silvério, que nunca me gramou, nem aos meus olhos

de manequim, frios e baços

fechados agora

porque eu morto

de prazer e loucura

a querer dizer que não, mas a repetir

- Quero-te, quero-te, quero-te…

E porque eu já dominado, como um boi diante da muleta, a Suzy, num passo de matador, cruel, a perguntar-me diante dos cornos, em cuecas apenas

- Continuamos?

sabendo-me sem forças para resistir à morte

perdido do juízo, delirante de febre

implorando

- Sim, sim, sim…

de modo que ela, desfazendo-se da última peça

um trapinho de nada

fixando-me o olhar nos olhos de manequim, frios e baços, a devolver-me com a voz do pai, numa estocada final

- Tu é que sabes!