Friday, May 30, 2008

Presente envenenado

Sabíamos que não o devíamos. Mas sabê-lo não chegava para não o fazermos. Há muito que nos olhávamos com olhos de cobiça. Um homem e uma mulher que nunca se tocaram só se olham em silêncio por um motivo: o desejo de tocarem-se.

Eu sabia-o. E ela, por ser mulher, sabia-o, sentia-o e pressentia-o. A Mila não merecia que lho fizéssemos, e nós não merecíamos ficar por fazê-lo. É difícil julgar. Quem está por dentro julga por defeito e quem por fora, julga por excesso. Somos bichos, que podemos contra isso?

Eu sei que a Suzy era irmã dela, mas dessa parte não me cabia a mim a responsabilidade. A minha responsabilidade era para com a Mila, já nem digo para com a família, ou para com Deus, a quem prometi amá-la e respeita-la por toda a vida. Casámos pela igreja porque a Mila

- Oh, Válter, é o sonho da minha vida!

e porque o sonho

da vida dela

eu a prometer

- ... amar-te e respeitar-te…

Por isso, já nem digo para com Deus

ou para com a família que

nunca me gramou. Especialmente o doutor Silvério, aos olhos de quem eu tinha olhos de manequim, frios e baços. Embora lhe dissesse

(à filha)

- Tu é que sabes!

A Suzy ainda era uma miúda quando eu e a Mila encetámos o namoro, e nessa altura, os seus olhares, provocadores já, encarava-os como provocação de adolescente; afirmação da auto-estima, ou coisa que o valha. Mas quando fez dezoito anos

no exacto dia dos seus

dezoito anos

pareço ter reparado pela primeira vez nela. Como se agora já fosse permitido olhá-la

a filha mais nova do doutor Silvério

com os meus olhos de manequim, frios e baços

contemplá-la, e às formas que tinha, mais perfeitas que a irmã. Agora que

- És finalmente uma mulher.

no abraço orgulhoso que dona Silvana lhe dera por amor e orgulho de mãe.

Estremeci, quando, durante as palmas, deixou a sala às escuras com um sopro só e, de novo, ao acender das luzes, quando os seus olhos em mim, com um morder vela pedindo um desejo

para dois.

Um sopro só

e eu

como a sala

às escuras

dentro de mim, perdido na caverna vazia da culpa do meu desejo.

Morder de vela

dentes e lábios

um pouco de língua

- …finalmente uma mulher

completa

olhos em mim

que um homem e uma mulher que nunca se tocaram só se olham em silêncio por um motivo.

Mas não logo. Não. Um anos depois. Na véspera dos dezanove

mais mulher ainda

impossível de ignorar.

- O meu presente de aniversário. - sussurrou-me - O presente de todos os meus aniversários juntos.

Oh, Deus, como podes ser tão bom e tão cruel!? Como podes ser tão carrasco com a fraqueza de um homem, que sabes, porque sabes, que não será capaz de resistir a uma maçã, quanto mais a duas?

- O meu presente de aniversário.

Sabíamos que não o devíamos. Mas sabê-lo não chegava para

- Isto é uma loucura! - na minha voz trémula de desejo; a não conseguir evitar-lhe

o hálito açucarado

morder de vela

dentes e lábios

um pouco de língua

- …finalmente uma mulher.

a dizer-me num sopro só

- Eu sei que tu me queres.

e eu

como a sala

às escuras

dentro de mim, perdido no poço do inferno, que aquele calor não era

não podia ser

humano

a dizer

- Quero-te.

a repetir

- Quero-te, quero-te, quero-te…

num desespero de primeira vez, e a deixar-me ir, aos poucos, até à ruína de mim; a dar razão ao doutor Silvério, que nunca me gramou, nem aos meus olhos

de manequim, frios e baços

fechados agora

porque eu morto

de prazer e loucura

a querer dizer que não, mas a repetir

- Quero-te, quero-te, quero-te…

E porque eu já dominado, como um boi diante da muleta, a Suzy, num passo de matador, cruel, a perguntar-me diante dos cornos, em cuecas apenas

- Continuamos?

sabendo-me sem forças para resistir à morte

perdido do juízo, delirante de febre

implorando

- Sim, sim, sim…

de modo que ela, desfazendo-se da última peça

um trapinho de nada

fixando-me o olhar nos olhos de manequim, frios e baços, a devolver-me com a voz do pai, numa estocada final

- Tu é que sabes!

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