Monday, April 23, 2007

um anjo

Não havia bicho naquela santa casa de que se apiedassem as mãos da dona Irene. Pombos, galinhas, patos - os mais tramados de depenar - coelhos, perus, enfim, o que houvesse de comer. Marchava tudo a eito ainda que lhe ouvisse dizer, não poucas as vezes

- Eu tenho muita pena, mas o que é que eu hei-de fazer!? Não os comemos vivos!

E realmente isso era uma verdade.

De tudo

- …tenho muita pena…

mas o que haveria de fazer!? Não os comíamos vivos!

- …muita pena…

mas de nada mais do que dos gatos.

Felizmente, ou num dizer mais católico, graças a Deus - que serão com certeza duas formas de dizer o mesmo, por isso -

felizmente

naquela casa nunca faltaram animais, principalmente gatos. Não me lembro de um único dia sem um miado. Mas sempre que nascia mais um, que nunca era mais um, lá ia a piedosa da dona Irene

- Tonito, filho, tenho ali um trabalhinho para ti.

E o Tonito já sabia do que se tratava.

Tonito era um miúdo, também, um pouco mais velho que eu e, por isso, para mim, adulto já. Vivia numa casa quase em frente à nossa e era a ele a quem a minha avó dava cinco escudos, naquela altura, para a aliviar da tortura de se ver livre daquelas pequenas criaturas, das quais

- …muita pena…

Ficava sempre um para tirar o leite à gata

- Tadinha!

para que não encaroçasse e ganhasse febre.

- Tadinha!

Pelo menos um. E nem sequer ela a escolhê-lo. Normalmente um macho, que as fêmeas (como na Índia; na China) ninguém as quer, e apesar de não haver dote ao barulho, um macho, na pior das hipóteses, havia apenas que se lhe dar de comer e umas vassouradas quando marcasse o território junto à porta de casa . Já que nenhuma vizinha se haveria de queixar

- Ó vizinha Irene, olhe que o seu gato andou lá por casa a fazer das suas!

Já que nenhuma vizinha…

- E agora, como é que é?

Punha-os num saco, num berreiro cego, que ainda eram criaturas de um dia ou dois, e lá ia ele, com os cinco dinheiros no bolso.

Sentia que ele era o máximo, pois fazia, para a idade que tinha, uma tarefa que a minha própria avó não era capaz de fazer. Ela que era uma mulher de mãos impiedosas no que tocava a pombos, galinhas, patos - os mais tramados de depenar - coelhos, perus, enfim, o que houvesse de comer.

E eu a achá-lo corajoso porque matava gatos e eu um cobarde porque, o olhar de esguelha, sempre que a dona Irene a caminho do poço com uma galinha numa mão e uma tigela e uma faca na outra.

- Eu tenho muita pena… Não os comemos vivos!

e daí a nada, a regressar do patíbulo, onde à sombra de uma macieira tinha apartado a galinha para um lado e a vida para o outro.

Eu um cobarde, com vontade de me lançar ao pescoço do Tonito, ou aos pés, esbofeteá-lo ou implorar-lhe que não matasse os gatinhos, que ninguém precisava de saber de nada

- … um segredo só da gente!

Levar a gata para longe, com os filhotes todos. Um final feliz para uma história tão simples. Que partiria o meu porquinho e lhe dava dez escudo para o resgate

- …quinze

- …tudo o que tiver

mas a não dizer nada. A ficar-me pela vontade estéril de um gesto apenas; a ir com ele, a vê-lo abrir um buraco onde os haveria de…

a pedir-lhe

não que os não matasse. Não que se apiedasse daquelas pobres criaturas, mas a

- Deixa-me experimentar.

e a deixar cair um gatinho dentro do buraco, a querer matá-lo com cuidado; a não querer magoá-lo; a não querer sentir-me culpado. O gatinho num miado aflito, como se a mãe o tivesse deixado cair de cima de um precipício, numa aflição cega

que ainda eram criaturas de um dia ou dois

enquanto o Tonito a tirar-me o saco das mão assassinas, com os cinco dinheiros no bolso, num

- Não é assim que se matam os gatos, pá!

numa repreensão de mestre verdugo.

- Não é assim…

como se eu um perfeito imbecil. Um perfeito imbecil.

e a chapar um de encontro ao fundo da cova num silêncio cego.

que ainda eram criaturas de um dia ou dois

numa execução perfeita. Enquanto eu de olhos nas mãos para não ver. Como quando a minha avó a caminho do poço com uma galinha numa mão e uma tigela e uma faca na outra. De olhos nas mãos, para não estar presente, para não ser culpado, a caminho de casa, com aquela imagem a correr nos meus calcanhares e a acordar de noite com num miado aflito, como se a mãe o tivesse deixado cair à porta do quarto, dos sonhos, não para se vingar, que os gatinhos mortos não são vingativos.

Eu um fraco, um cobarde, debaixo das mantas, de mãos nos ouvidos para não estar presente, para não ser culpado, sem uma única moeda, um único

- Obrigada, joinha! És um anjo.

embora os anjos, tanto quanto sei, não matam gatos por cinco dinheiros.

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