Tuesday, March 20, 2007

Não se passa nada!

Os beijos do Edgar já não me sabiam ao mesmo. Não sei a que sabe o mesmo, mas já não sabiam. Sabiam a frango guisado, a cerveja, a café, a tabaco, a tudo quanto se lhe entranhava no bigode amarelado pelo tempo que se esfumou juntamente com os seus cigarros e a minha memória do “mesmo”. E mesmo o nome, ao qual achava tanta graça, começou-me a soar profundamente ridículo. Edgar!?

Edgar

Edgar

Ednghar

Deixou de me dar atenção. Queixume típico de mulher, podem dizê-lo. Mas eu sou uma mulher típica, e, por isso

“Deixou de me dar atenção.”

Queria atenção, sim. Queria que me perguntasse uma, duas, mil vezes

- O que tens, amor?

ainda que eu

Uma, duas, mil vezes

- Não tenho nada!

no lugar de

- Quéqse passa?

num sopro de enfado, num desejo ansioso de

- Não se passa nada!

para não ter de reperguntar.

E eu a fazer-lhe a vontade

- Não se passa nada!

que uma mulher casada já devia saber que à primeira

- Quéqse passa?

é logo para dizer aquilo que a aflige, para não castigar o fígado.

- Faz hoje quinze anos que nos conhecemos e tu nem a amabilidade de um beijo tiveste para comigo!

À primeira é logo

- Faz hoje quinze anos…

em vez de

- Sabes que dia é hoje?

ou

- O que é que se passa, Edgar?

À primeira é logo

- Não valho nada para ti, é o que é!

e não

- Não se passa nada!

Apenas quinze anos que nos conhecemos. Não que casámos, conhecemos apenas, e por isso não tão importante, talvez. A não ser para mim… bláblá, bláblá, bláblá…

Assim

- Não se passa nada!

a afundar-me no sofá, cada vez mais rendido ao meu peso de mulher frustrada.

Deixou de me dar atenção. Queixume típico de mulher, podem dizê-lo. Mas eu… mas eu também me tinha deixado de dar atenção. Como não haveria ele de fazer o mesmo?

- Não se passa nada!

Nada!

Nada!

Às vezes um pé, quando lá calhava, a tropeçar no lençol de neve e a cair em cima dos meus, num

- Estão gelados!

como se

- Perdão!

o mesmo que

- Chega-te para aqui, não sejas tola! De quem é que eu havia de gostar, ãh?!

e eu a chegar-me

- …para aqui…

a não ser

- …tola!

mas duas coxas de frango mastigadas debaixo de um bigode amarelado, que escondia a boca

de enfado

do Edgar

porque quando o amor, quer dizer, a atenção, acaba, desaparecem os lábios, a língua, sobra apenas a boca

de enfado

onde os beijos já não sabem ao mesmo, mesmo que não saibamos já a que costumavam saber.

Além disso

- Não se passa nada!

Nada!

Nada!

Não se passa rigorosamente nada!

- Não se passa nada, como assim? - um colega de trabalho.

- Não se passa nada!

- Que não queiras falar é uma coisa, agora que se passa, passa!

- Coisas minhas! - a amolecer. Um biscoito de manteiga no vapor do chá.

- Se quiseres falar, sabes que tens aqui um amigo.

E eu que não sabia que tinha ali um amigo a acabar por falar. Não logo, não no dia seguinte

um biscoito de manteiga

típico de mulher, podem dizê-lo. Mas eu sou uma mulher típica, e, por isso

não logo, não no dia seguinte, mas na semana seguinte

no vapor do chá

aceitando um convite para um café.

- Uma desculpa curta.

que se ouviu

- Uma bica curta.

E os meus problemas a dissolverem-se na volta da colher. E o meu colega, Alexandre, pronto,

a absorvê-los

a recordar-me a diferença entre o café doce e café amargo. Não entre o gosto ao mesmo que tinham os beijos, não. Café apenas

na volta da colher

a absorvê-los

os meus problemas

a absorver-me

a mim

na volta da colher

até que aos poucos fui saindo de casa. Primeiro um pensamento, depois um batom, um perfume novo. A seguir uma saia comprida com as cores da moda, que a Madalena achava que me favorecia o rabo

(que vergonha, meu Deus!)

depois um corte de cabelo que o Ednghar nem se dava ao trabalho de comentar, ainda que talvez tivesse reparado, se reparasse em mim.

Talvez na noite em que

- Perdão!

se um pé… calhava… tropeçar no lençol de neve e a cair em cima dos meus -… gelados!

e a luz da mesinha de cabeceira ainda acesa quando

- Chega-te para aqui, não sejas tola! De quem é que eu havia de gostar, ãh?!

Mas nada. Rigorosamente nada!

Recuso-me a acreditar que os homens não reparem nestas coisas, da mesma forma que não reparam no pacote da manteiga atrás do tupperware do fiambre a meio do frigorífico. Recuso-me a acreditar que os homens não reparem nestas coisas, pois o meu colega

Alexandre, pronto

- Pintaste o cabelo!? - a acrescentar - Ficam-te bem as madeixas!

na volta da colher.

Recuso-me a acreditar que os homens todos

- Quéqse passa?

para saberem realmente aquilo “qse” passa.

Como dizia,

aos poucos

para casa dele

Alexandre, pronto.

Primeiro um pensamento, depois

batom

perfume

saia,

aos poucos.

Até ao dia em que o sofá

não o Ednghar

o sofá, juro que o sofá

- Quéqse passa?

a indagar a minha sombra que

nem ai, nem ui.

Aos poucos,

para casa dele,

Alexandre, pronto.

Até ao dia em que também ele a deixar de me dar atenção, também ele a perguntar

- Quéqse passa?

num sopro de enfado

e eu

de novo

- Não se passa nada!

1 comment:

Anonymous said...

Adorei!
Conseguimos ouvir o silêncio, sentir a solidão....

Quéqse passa?