Monday, October 27, 2008

Dona Camille

Porque foi que morreu, dona Camille? E agora, dona Camille? Quem me dirá

- Entrre, mênino. Entrre.

dona Camille?

Quem me dará bolinhos de anis num cartuchinho de papel branco; me mandará aos recados, dona Camille? Eu sei que isso foi há trinta anos, dona Camille, quando a dona Camille uns cinquenta e eu

treze

catorze

quinze

e a dona Camille

- Entrre, mênino. Entrre.

em camisa de dormir

transparente

afinal eu uma criança

treze

catorze

quinze

e mal nenhum

idade para ser minha mãe

e em França tudo muito mais moderno.

Vai daí que

- Entrre, mênino. Entrre.

em camisa de dormir

transparente.

Viúva antes dos cinquenta

o senhor João Lemos

português a salto para Paris

um café

(uma boîte)

a mesma coisa em França

tudo muito mais moderno

uma noite, duas noites

um mês ou dois

e

aquela vidinha de lado

cansada já

dançar todas as noites

dançar apenas

(como se apenas não cansasse igual)

a aceitar o pedido

a dizer

- Sim.

perdão

- Oui.

num cartório de Paris.

Nunca teve filhos

(apesar de idade para ser minha mãe)

casamento tardio

passava dos quarenta

quando o senhor João Lemos

- A mademoiselle aceitaria casar-se comigo?

de modo que

quando disse sim

já tarde demais para ter filhos

(apesar de idade para ser minha mãe)

mas não sendo

- Entrre, mênino. Entrre.

em camisa de dormir

transparente

a pedir-me que ajudasse com isto, com aquilo

e nisto e naquilo o decote

malandro

a mostrar-me

- Olha para isto, ó puto! Ah! Diz lá que ainda não está enxuta, a velha!

e eu

para o decote

- Dona Camille, se faz favor!

que lá porque um decote a vida toda colado aos seios, direito nenhum de

- … Diz lá que ainda não está enxuta, a velha!

De modo que os olhos a falarem por mim, a dizerem

por mim

- Dona Camille, se faz favor!

a ficarem naquilo

num bate-boca

não eu

os olhos

a defenderem a dona Camille

a não admitirem faltas de educação ao decote

ordinário

pensava que malandro, mas

ordinário

e nisto uma voz

- Párra onde está o mênino a olhár?

a embrulhar-me o estômago, a entrançar-me as pernas, a comer-me letras às palavras que

- Par… eu… ah… nenhu...par…não…

e a voz

não a dona Camille

a voz

de conluio com o decote

ordinário

a perguntar-me

- Quér ver as minhas mêninas?

a engasgar-me o coração, aflito, num esperneio de coelho mal morto

a aproximarem-se de mim

a voz

o decote

umas mãos também

cúmplices todos

a aumentarem o decote, como uma boca que ri

a revelarem-me dois…

(enxutos)

a agarrarem-me na mão

a levarem-ma até eles, apertando-a

transfundindo-me o sangue do coração para as calças

engasgado

num esperneio de coelho mal morto

a puxarem-me para o sofá, onde a voz

não a dona Camille

a voz

- Gósta?

e eu

não sei se bem eu

qualquer coisa em mim

a fazer-me sim com a cabeça

que sim, que sim, que gostava

apesar de idade para ser minha…

mas não sendo

que sim, que sim

e as minhas calças a abrirem-se, uma mão a certa de encontrar o que procurava

treze anos

resistência alguma

a massajar, como a uma lamparina mágica onde um génio adormecido não tardaria a ser desperto

- Gósta?

a voz, as mãos, o decote, que já decote nenhum

uns seios

inteiros

(enxutos)

à espera de beijos

de qualquer coisa

um carinho

uma meiguice

algo que os acalmasse

(ou ao coração por detrás deles)

que uma mulher sozinha sofre muito

e que mal tem o carinho

o amor (?)

que se não fosse amor não se poria sobre o meu colo, a dona Camille

não a dona Camille

precipitei-me

é o nervosismo

o corpo apenas

não a dona Camille

insisto

o corpo apenas

mais forte que ela

sobre o meu colo

a abraçar-me o pescoço

a encher-me de beijos

a boca que

- Gósta?

a arrancar-me

que sins com a cabeça desvairada

a garantir-me, a boca

não a dona Camille

a boca

- Ai é tão bóm, mênino!

enquanto eu

a desmaiar

a arquejar de aflição…

Pobre dona Camille (!)

a viuvez, as saudades do carinho, que

sozinha

num país estranho

não havia quem lho desse

a arrancar de dentro de mim um vómito da alma que a fez brilhar

(os olhos)

que a fez brilhar

dizer-me

- Ai é tão bóm, mênino!

Uma vez, duas vezes

treze

catorze

quinze anos

até que eu uma namoradinha e

- Já não tenho idades para fazer recados.

a dar o recado à minha mãe, quando ela

- Olha, a dona Camille pediu se podias passar lá por casa hoje. Precisa que lhe faças um recado

- Já não tenho idades para fazer recados.

De modo que nunca mais fui

perdão dona Camille

um ingrato, eu sei

mas o quê(?)

dezasseis anos, quase

uma namoradinha e

sabe como é…

E talvez fosse isso, que devagarinho a foi levando, à dona Camille

que uma mulher viúva

saudades do carinho, que

sozinha

num país estranho

não havia quem lho desse.

Quando se é novo não se pensa nisso. Mas agora, quando a notícia chegou

talvez porque desiludido com o casamento

a namoradinha daquele tempo

a doer-me

a querer dizer

dona Camille

não morra, dona Camille

eu vou, dona Camille

ainda hoje, dona Camille

sem falta, dona Camille

juro que sem falta.

Não me custa nada

sinceramente

um recadinho, com todo o gosto

é só mudar de roupa, dona Camille

mas não morra, dona Camille

não morra!

Senão quem é que me abrirá a porta, dona Camille?

Quem é que me dirá

- Entrre, mênino. Entrre.

dona Camille?

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