Saturday, September 25, 2010

Salmões no Tejo

Pesava dos olhos. Não pensava em nada.
Pensava no sono que me enchia a cabeça, como o azul intenso da manhã clara
céu e mar…
Não!
Não pensava em nada.
O Tejo enorme à minha frente
ou o Atlântico, já
naquele limbo misterioso que é a Cruz Quebrada
entroncamento entre dois rios e o oceano
onde a estação se confunde com a espera, e eu
com o banco enfadado
com o relógio dormente
com o horizonte deserto de comboios e gente
onde o tempo não passa e a vida se gasta toda
e onde apenas um albatroz na beira do telhado
que não há abutres neste Oeste
(há quem diga que albatrozes tão pouco)
(há quem diga tanta coisa)
na beira do telhado
com um olho posto no céu
no mar
no azul intenso da manhã clara
e o outro
que os albatrozes
como os abutres e os desconfiados
têm um olho para cada lado
o outro
nos restos de um velho a nascer na paisagem.
Vinha devagar
a arrastar os pés
zec, zec
no chinelar cansado
como se cada passo
um degrau e meio
avançando a passinhos de cego, arrastando a vida, forçando-a a mais um passo, mais um passo…
e a vida
agarrada aos pés
implorando-lhe que não
por misericórdia
que já chegava
que já não havia mais nada para andar
que estava cansada
que quanto mais andasse mais acabaria com ela…
Mas o velho
o pobre do velho
(que todo o velho é pobre)
confundindo
(como toda a gente a dada altura)
a vida com a morte
arrastava-se
(como uma presa mordida)
arrastando-a
cansada
implorante
- Pára! Por favor, pára! Senta-te, homem de Deus! Descansa! Não vês que acabas connosco?!
Mas o velho
o pobre do velho
(que todo o velho é pobre)
confundindo
(como toda a gente…)
a vida com a morte
mais um passo, mais um passo…
no zec, zec dos chinelos gastos
fugindo da vida como se da morte
vergado e lento
que a morte é uma cruz que se carrega às costas pela vida toda.
Cada passo mais um passo a menos. E a cada passinho lento mais longe da vida; mais próximo da morte
confundindo tudo
apesar da vida
- Pára! (…) Não vês que acabas connosco?!
o velho
surdo
(que todo o velho é surdo)
a arrastar as pernas para os braços da morte
como um salmão exausto, rio acima
pela orla do Tejo
e por mais que a vida
- Não há salmões no Tejo, homem de Deus!
o velho
o pobre do velho
zec, zec
passeio afora
rio acima
zec, zec
num barbatanear cansado
a deitar as guelras pela boca.
Na beira do telhado
o albatroz
que não há abutres neste Oeste
com um olho posto no céu
no mar
no azul intenso da manhã clara
e o outro
que os albatrozes
como os abutres e os desconfiados
têm um olho para cada lado
o outro
desconfiado
nos restos daquele salmão velho
porque em tantos anos de vida nunca um salmão no Tejo
desconfiado
a olhar os restos do velho que demorava a passar
como uma dor, uma angústia
no zec, zec, dos chinelos gastos
como os dias
gastos
de tanto
zec, zec
sem para onde ou remédio.
Demorou a passar
como uma tristeza, um desgosto de amor
mas já lá vai
salmão perdido a caminho de Albarracim
num zec, zec, de barbatanas gastas.
Demorou a passar
como uma pena de quinze anos, como o último dia antes das férias
como a vida toda que é um instante
espaço morto entre duas estações
Cruz Quebrada – Cais do Sodré
mas que passa, todavia
como um par de chinelos rio acima
num zec, zec arrastado a caminho de Albarracim.
O Tejo enorme à minha frente
para lá das grade que o separam da estação onde o comboio nunca mais chega do Atlântico para fazer paragem naquele limbo misterioso e levar-me de volta a Lisboa, que o tempo passa sem um homem se dar conta, e qualquer dia é um dia qualquer
que já não importa
pois cada passo
um degrau e meio
a arrastar a paisagem
num zec, zec miudinho
que já não leva a muito longe
e desperta o instinto do albatroz
(que há quem diga não haver por estas latitudes do mundo)
com um olho posto no céu
no mar
no azul intenso da manhã clara
e o outro
desconfiado
no gesto lento
no passo gasto
à espera do instante exacto de picar o voo
que ele afinal, há mais salmões no Tejo do que aquilo que se pode imaginar.

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