Friday, April 25, 2008

As máquinas não sentem

Não durou seis meses. Azar ou bem feito. Não sei. Era uma máquina e eu não tinha unhas para aquilo. Estava tolo, embebedado pela beleza e pelo roncar do motor. E eu que até nem era apreciador de grandes maquinas. Mas um homem muda. Foi o que eu aprendi. Somos como a ciência, e verdade de hoje é o erro de amanhã.

Tinha uma Diane. Tive-a durante oito anos. Vermelha, bonita. Quando o meu velho ma comprou, em segunda mão, já, o que na altura me causou um pouco de ciúme, pois tinha sonhado com um carro novo em folha, não me apaixonei de imediato, mas aos poucos fui-me afeiçoando, até acreditar jamais poder vir a separar-me dela. Limpei-a de ponta a ponta, atentando a cada pormenor. Acho até que para lhe tirar qualquer vestígio de quem a tinha tido antes de mim. Era-me difícil suportar a ideia de já ter sido de outro. Quando se tem dezoito anos essas pequenas coisas têm uma grande importância. Tinha para mim que sim. Ia com ela para todo o lado, prestava-lhe cuidados especiais. Mas com o tempo mudam as pessoas, e as certezas absolutas que têm em relação a tudo, e comecei a desmazelar-me. Não tinha muito tempo: a faculdade, o estudo, os trabalhos, os amigos, e coisas mais que inventava para desculpar a falta de vontade de lhe dedicar o tempo de um banho; uma muda de óleo; uma atenção à pintura, aos pneus, e ela, claro, a dar-me problemas e a graça inicial murchou e perdeu-se.

Por vezes olhava-a com uma admiração antiga e, durante uns dias parecia que tudo tinha começado do zero. Mas era sol de pouca dura e as intenções nunca passavam a actos concretos e os concertos ficavam sempre para a semana seguinte. A verdade é que já não me dava prazer andar com ela. Parecia até sentir certo incómodo em exibi-la; uma espécie de vergonha inexplicável. Afinal toda a malta dizia “A Diane do Tomé é um espectáculo”. E nesse dia dava-me uma enorme vontade de a recuperar e sair pela cidade mostrando-a a toda a gente, mas… passava depressa. E sentia-me desconfortável, pois era muito estranho que toda a gente ma gabasse e invejasse e eu, que a tinha, não conseguisse sentir nem uma sombra disso. Mas ainda assim não deixava que ninguém a conduzisse.

A partir de certa altura comecei a namorar uma nova máquina que chegara ao mercado e, parecia que não falava de mais nada. Procurava fotografias dela na net, lia-lhe sobre as características e parecia que cada dia estava mais apaixonado por ela. Quando via alguma passar por mim, ficava hipnotizado, a babar-me diante das montras dos stands como um pobre diante de uma vitrina de bolos. Chegava mesmo a falar dela dentro da Diane com quem quer que estivesse.

- “As máquinas não sentem, ora!” - diria se alguém me repreendesse por falar assim de outra na presença dela.

E na semana em que terminei o curso, os meus pais chegaram-se a mim com uma pequena caixinha embrulhada. Não podia acreditar. Era a chave dos meus sonhos. Mil vezes a um apartamento. Fiquei maluco e pensei não aguentar tanta alegria. Estava estacionada na garagem. Novinha em folha, com aquele cheiro que deixa qualquer um a cair de quatro. Saí e fui dar uma volta. Rodei, rodei, rodei... Estava feliz como uma criança de quatro anos diante da sua primeira bicicleta. Nessa noite a Diane dormiu na rua e o seu lugar na garagem foi ocupado pela novidade. No meu coração os lugares há muito haviam sido trocados. Assim foi ficando, à chuva e ao sol até que achámos por bem vendê-la ou mandá-la para a sucata, pois não parecia haver alguém disposto a dar por ela algo que valesse a pena. Mas lá apareceu comprador. E quando o meu pai me disse já estar tudo tratado, senti uma espécie de pena; um peso na consciência: talvez mais pelo alívio que pela perda.

Até à hora do jantar andei um pouco estranho, mas depois, porque era sexta-feira e a noite estava aí, rapidamente a esqueci e, depois disso, não sei, sinceramente, se tornei a pensar nela durante os meses seguintes. Seis, mais ou menos, foi o que durou a nova aquisição. O entusiasmo era grande e a vaidade em exibir-me com ela era ainda maior. Dava-me um poder que até aí parecia não ter e, juntamente com o já ser doutor, tornou-se em mim num cocktail explosivo. Resultado: ficou sem concerto, e eu, bem, eu levei uma sova de almofadas, mas não sofri nada que deixasse marcas para a vida. Pelo menos visíveis.

Agora ando a pé, à espera de arranjar alguma coisa em segunda, terceira, ou quinta mão, daquelas que é mesmo só para não andar à sola. Daquelas que se sabe à partida que nunca se vai gostar, mas que pode até durar para a vida toda.

No outro dia, passei pela Diane. Estava estacionada em Belém, junto ao rio. Estava bonita, estimada. Reconhecia-a ao longe, e a matrícula confirmou-mo.

Olhei-a com um sentimento estranho. Como se tivesse sido noutra vida. Claro que ela nem estava aí para a minha presença. Afinal é uma máquina e as máquinas, como toda a gente sabe, não têm sentimentos. Espreitei para dentro dela, não resisti, e vi objectos que não eram meus. Um casaco de ganga ruça, uma caixa de Cds dos ABBA, um livro de contabilidade, um coração de peluche no retrovisor.

Tudo tão piroso. Ciúmes? Que disparate. Piroseira, isso está bem! Agora ciúmes!

- Algum problema? - a pergunta nas minhas costas. Era o novo dono.

- Não. Desculpe. É que eu tive uma destas e estava a matar saudades.

- É um espectáculo! Não sou capaz de a trocar por nada.

- Eu também dizia o mesmo.

O rapaz franziu a testa e encolheu os ombros, como que a dizer, “pois, mas isso é você”.

- Por quanto é que ma vendia?

- Por nada.

- Tudo tem um preço.

- Pois, mas o preço que ela poderia ter não creio que mo pagasse.

- E isso seria?

- Qualquer coisa como cinquenta mil contos.

- Mas isso é o preço de um Ferrari!

- É capaz.

- Quaisquer quinhentos contos compram uma Diane.

- Eu também acredito que sim. É uma questão do amigo procurar. Eu próprio dei cem por ela. - e abrindo-a entrou e sentou-se. Fechou a porta com cuidado, puxou o cinto devagar, baixou a pala com as duas mãos e, manobrando-a como a uma caravela na água, arrancou suavemente como quem conduz um berço de uma criança adormecida.

Ela nem me dirigiu o olhar. É uma máquina, que olhar poderia dirigir? Deixei-me ficar ali, com o horizonte do Tejo ampliando-me o vazio, cheio de ciúmes daquele piroso que, pelos vistos, a tratava melhor do que eu algum dia. Tinha vontade de correr atrás dela, de lhe cair aos pneus, implorar perdão, que me abrisse a porta e fugisse comigo para o fim do mundo. Nunca mais a abandonaria. Nunca mais! Jamais olharia para a montra de um stand, ou compraria uma revista de automóveis. Nunca mais! Mas no desespero não disse nada e deixei-me ficar, vendo afastar-se a compasso, como uma noiva feliz guiada pelo braço.

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