Friday, April 25, 2008

Solitariamente gira

Sábado à noite

um grupo de amigos

e eu

à espera da hora de ir para casa. Hoje em dia, ao fim de um bocado, sinto sempre já serem horas de ir para casa, embora acabe invariavelmente por ficar mais um pouco. Acontece-me quando já me dói o corpo de estar no sofá; quando o despertador toca de manhã, ou quando o sono aperta à hora de ir para a cama. Não sei porquê, mas não duvido que hajam centenas de livros a explicarem o fenómeno.

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Onde é que isto já vai!?

Sábado à noite

amigos

eu

à espera…

uma conversa que não me lembro, e tu

a abrires a cortina da rua

a surgires

a passares diante de nós…

Não duraste muito

o resto da rua apenas

(que por ali as esquinas engolem as pessoas como baleias gigantes)

desaparecendo-me da vista e da vida nunca mais, pensei. Não podia ser! As coincidências não são tão coincidentes assim. Jamais te tornaria a ver, embora pudesse vir a casar-me contigo, visto ter demorado o tempo todo a olhar-te e nenhum a prestar-te atenção, o que faria com que jamais te reconhecesse, o que faria com que fosses apenas aqueles vinte segundos da minha vida, e qualquer outro encontro, pura novidade. Ou a obstinação de perguntar por ti a cada nova pessoa que a vida me fosse apresentando no teu formato.

- Sim, Sábado à noite

dia tal, às tanta horas

um grupo de malta à porta do bar.

Descrevendo-lhe os meus amigos.

Impossível!

Tu não olhaste para ninguém

levavas pressa no olhar

ou determinação

(tenho tendência para confundir as duas)

mas ainda assim a perguntar

- Não te lembras?

e tu

ou não tu

talvez para a pessoa que nos apresentasse

- Este teu amigo não é lá muito bom da cabeça, pois não?

Por isso

para que não fosses para sempre

como essa noite, de que fazes parte eternamente

segui-te.

Era Inverno, mas a noite estava quente

ou era eu

(tenho tendência para confundir…)

e compreendi que a pressa que levavas era apenas a vontade de me levar dali. De modo que

depois da esquina que pareceu engolir-te

um sorriso nos olhos e um braço à espera de um braço, a dizer

- Estava a ver que era preciso chamar-te!

Furámos pelo meio dos corpos - apenas corpos - que apinhavam as ruas estreitas do bairro e descemos para a calçada do Duque, onde uma porta aceitou numa harmonia silenciosa a chave da tua mão. Há coisas que foram feitas umas para as outras, não achas?!

Subimos, e em menos de nada estávamos na Sé de Braga, onde toda a vida sonhaste casar

e eu

que nunca vira igrejas em sonhos, alianças ou grinaldas, a dizer

- Sim, aceito.

quase sem força nas pernas.

Os teus pais, os meus pais, a tua avó, tão querida; o meu tio Rolando a arrancar-te gargalhadas com as histórias de África, a dona Fernanda

uma segunda mãe para ti

com os olhinhos de molho.

Um dia fantástico, sem uma nuvem no céu.

Não haveria de ser isso a impedir-nos a felicidade. Nem um nem outro éramos supersticiosos. A lua-de-mel no México e o chão da sala cheio de fotografias a passarem de mão em mão, ante o bocejo disfarçado dos amigos. Depois o Rodrigo e a Bia

e um dia o faísca, abandonado à borda da estrada para os lados do Bombarral.

E no dia em que o veterinário

- Isto daqui para a frente é só a sofrer.

a deitar-te à cama

mas não havia outro remédio

ouviste o médico

uma cardiopatia não sei das quantas

e lá o levámos, coitadinho

mas antes assim.

E o Rodrigo

(a Bia nove mesinhos, a não fazer perguntas)

o Rodrigo

- O Faíca?

e tu

foi para o hospital, filho.

- Puquê?

uma cardiopatia não sei das quantas, apeteceu-me dizer-lhe logo. Para quê esconder a verdade à criança. Mais cedo ou mais tarde haveria de saber que

uma cardiopatia não sei das quantas

mas tu a achares por bem que

- Com calma, Alexandre.

Uns anos mais tarde o apartamento em Quarteira. Quer dizer, para os lados de

que Quarteira: um lugar horrível

daí dizer

Quarteira apenas para situar melhor

embora na verdade

para os lados de.

O mês de Agosto todo por nossa conta. O resto do ano, um fim-de-semana ou outro.

O Rodrigo em Coimbra, finalista de Direito

a Bia caloira de enfermagem em Lisboa.

Depois a Paula e o Sérgio a levarem-nos de vez, mas a trazerem-nos o Salvador, o Duarte e a Carolina

e a mesa da consoada sem espaço para os cotovelos, e a lareira, o pinheirinho, os enfeites nas janelas

sempre foste dada a essas coisas

daí que eu

- São coisas da Maria!

O meu primeiro dia de reforma e o nosso cruzeiro no Mediterrâneo, agora que os filhos e os netos criados e encaminhados na vida

Malta, Creta, Chipre, Rodes, Alexandria…

O que tu gostaste de Alexandria!

Alexandria

- O Alexandre ia.

- Alexandre. Alexandre!

- Hum?

- Não ias para casa?

e eu a acordar de repente, a procurar-te com a cabeça, os olhos presos ao farol daquela esquina que girou e te apagou da minha vista

uns segundos apenas

em dando a volta já te acenderá de novo… mas dez voltas, cem voltas

sem volta

que por ali as esquinas engolem as pessoas como baleias gigantes

a afundar-me as mãos nos bolsos, a cabeça nos ombros, um suspiro no peito, a ideia na conformação da verdade que foram aqueles vinte segundos

em que passaste por mim

naquele ar que levavas

solitariamente gira

para todo o sempre

ou para nunca mais

pois ninguém sabe quanto tempo é uma vida inteira.

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