Sunday, November 25, 2007

Um perfume chamado saudade

Passeava o Domingo com uma amiga, num dos três mil centros comerciais da cidade, quando aquele cheiro antigo se me meteu pelas narinas adentro até ao mais recôndito beco da memória. Uma mistura de tabaco, suor e alfazema, que eu nem sabia ainda viver dentro de mim. E de repente eu em África! De repente eu doze anos! De repente o meu vestido de cambraia caqui com florzinhas brancas a subir-me suavemente até meio da coxa com a ajuda da mão morna do chefe da estação do Lobito!

- Que foi, mulher? Parece que adormeceste! - a Clara a trazer-me de volta a Portugal, a Lisboa, a um dos três mil centros comerciais da cidade, a abrir-me os olhos retornados, abertos, com a sua voz de grafonola antiga

- Que foi, mulher? Parece que adormeceste!

- Hum?

- Que foi? - repetiu ela

grafonola antiga

e eu sem coragem de lhe contar da mão morna, dos meus doze anos, do meu vestido de cambraia caqui

florzinhas brancas

a dizer

- Nada!

- Estás bem?

e eu sem coragem de evitar aquela mão quente a dizer

- Sim.

enquanto o calor da tarde a subir-me pela coxa acima, num arrepio incompreensível, até à curva suada do pescoço, onde uns lábios ferventes pousavam, lentos e húmidos, como o fim dos dias na costa de África, para me sussurrarem de seguida

- És a menina mais linda do mundo!

para me sussurrarem de seguida

- Queres um gelado?

de modo que eu

que sim

que queria

a abanar a cabeça

envergonhada

(sedutora talvez)

num sim de olhos postos na barra do vestido.

Por isso, quando a Clara

- Queres um gelado?

eu a responder-lhe com a cabeça, como ao senhor Rafael, com o mesmo jeito de menina hipnotizada pelo calor.

- Então não saias daqui! - a Clara a dizer

ou eu a achar que a Clara a dizer

com a sua voz de grafonola antiga

a caminho do balcão da geladaria

do frigorifico amarelado que havia na cozinha da estação. De modo que eu, ali, no banquinho de madeira corrido, afogueada, a morrer por um gelado.

Não havia dia em que, ao sair da escola, não passasse por lá. Ele sentava-me no colo, passava-me a mão grossa pela penugem alourada das pernas e dizia, entre beijinhos por barbear no pescoço e nas faces

- És a menina mais linda do mundo!

e eu gostava. Acho que eu gostava. Sim eu gostava. Um homem mais velho, que gostava de mim, me punha no colo, dava beijinhos

por barbear

(bons)

no pescoço

nas faces

e ainda

- Queres um gelado?

Muito diferente do papá que

- És uma pamonha, tu! Nunca hás-de arranjar um homem que te ature.

muito diferente, pois

- És a menina mais linda do mundo!

ao passo que o papá

- Qual gelado, qual carapuça! Come frutinha que isso é que faz bem!

o senhor Rafael

- Queres um gelado?

Água, açúcar, limão e um pauzinho, que ele mesmo fazia e punha no gelo

- De quê Gisela?

a Clara

do balcão

com a sua voz de grafonola antiga

- De limão. - queria dizer-lhe - Água, açúcar, limão e um pauzinho.

porque

- Toma. É de limão. Para fazeres aquelas caretas que eu gosto tanto.

- De limão, Clara. De limão… por causa das caretas.

- Quê? - a Clara a frisar a testa. A Clara a não entender se eu

- … de limão.

a Clara

- Tás maluca!?

se eu

- … por causa das caretas, Clara!

Por isso

- Escolhe tu.

porque sem coragem

(não sei se por “sem coragem”, se por “sem vontade de explicar”, ou mesmo se por “sem vontade de partilhar uma coisa só minha; um colo só meu; um gelado por barbear nas faces com caretas de limão)

ou pelo que for.

A verdade é que

a não lhe querer dizer que eu

- … a menina mais linda do mundo!

como a não querer evitar aquela mão quente a contornar-me o elástico das calcinhas, um pouco abaixo do umbigo, onde um

- …capim lindo!

fazia as delícias dos dedos grossos do senhor Rafael, que acabavam sempre por escorregar

- … os trapalhões

não por mal

mas porque

- … trapalhões

aumentando a temperatura e a humidade à costa de África, apear de a barriga a arrepiar-se

do gelado

talvez

que me pingava pelos cantos trementes da boca

- … trapalhões

para o queixo de limão

onde um beijo por barbear caçava o pingo, numa careta

divertida

brincalhona

de me arrancar risinhos envergonhados

(sedutores talvez).

Muito diferente do papá que

-…uma pamonha, tu!

colo algum

beijinho algum

- …frutinha que isso é que faz bem!

Limões e mais limões

sem água, açúcar, um pauzinho que fosse

no gelo de casa

(apesar de em África)

na sala, onde o papá

- Nunca mais cresces tu, rapariga! Hás de ser sempre uma gaiata!

mal sabendo que eu um

- …capim lindo!

que fazia as delícias dos dedos grossos do senhor Rafael, que acabavam sempre por escorregar

- … os trapalhões

Por isso

porque a Clara, como o Papá, a não entender que

- … por causa das caretas

se eu

- … de limão.

eu

- Escolhe tu.

que assim é mais fácil e pronto.

E a deixar-me ficar, ali, no banquinho de madeira corrido, afogueada, a morrer por um gelado, sentindo aquela presença como uma certeza concreta, aquele cheiro antigo

tabaco, suor e alfazema

que passou por mim

juro que passou por mim

agarrado à sombra de um fantasma; que se me meteu pelas narinas adentro até ao mais recôndito beco da memória e parou, diante da montra de uma ourivesaria, de olhos fixos no mostrador de um relógio, que eu nem sabia ainda viver dentro de mim, para saber quanto tempo lhe restava ainda até ao último comboio para o Lobito.

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