Monday, November 26, 2007

A Serra de Monte(z)inho

A primeira vez que me toquei tinha

(que vergonha, meu Deus!)

já mais de quarenta anos.

Fui criada num tempo em que tudo era pecado, quer se fizesse, quer se pensasse.

Casei-me novinha. Dezanove anos. Normal para a época. Hoje tenho setenta e dois

viúva há quarenta e cinco.

Quase já nem me lembro do meu marido. E ao dizer

meu marido

uma distância enorme entre mim e o Abílio, que assim era que se chamava. Reconheço-o pelas fotografias. E é sempre essa imagem que me vem à cabeça se penso nele. Tenho para mim, quando olho para a fotografia do nosso casamento

na parede da salinha pequena, onde quase nunca vou

que nunca casei com aquele menino.

Parece-me mais um filho que podia ter tido, e nem isso…

oito anos de casamento e nunca peguei. Acho que era dos nervos.

Por isso, quando olho para a fotografia

uma sensação estranha

como se um filho

um neto…

Bem, mas não foi para isso que me sentei aqui. Sempre quis escrever as minhas memórias, e nunca soube bem por onde começar, porque a minha vida mal dava para encher este cadernito que comprei faz umas semanas

na papelaria da menina Cátia

(acho que é assim que se escreve)

que no meu tempo só havia Marias

de qualquer coisa

com eu, da Visitação

Araújo de Sousa

…e já me perdi. Onde é que eu…

Ah, já sei

o cadernito

de propósito para começar a escrevê-la. Não é para ninguém ler. Acho que é para me encontrar, para ver quanto tempo vivi efectivamente e o que posso levar de bom no dia em que não houverem mais dias para mim.

Por isso quero começar pelas partes boas. Pelo princípio

o princípio de mim.

Assim

(que vergonha, meu Deus!)

afinal, fui criada num tempo em que tudo era pecado, quer se fizesse, quer se pensasse.

Mas pronto. Quero dizê-lo

(pois tudo o que pomos fora de nós é dito, quer se fale, quer se escreva… ou mesmo quer se aponte)

portanto

a primeira vez que me toquei tinha

(que vergonha…!)

já mais de quarenta anos.

O Abílio atropelado por um eléctrico no Rossio

num tempo em que se podia andar de olhos fechados em Lisboa

ia para mais de quinze anos

quando não aguentei mais a solidão das noites frias e me procurei por onde eu havia. Por companhia. É capaz que por isso mesmo.

Um dedo

tímido

apenas um

à minha procura no mapa de mim

como quando em pequena a professora Piedade

Maria da, com certeza

- Acha lá no mapa a Serra de Montesinho.

e eu com o dedo assustado

à procura no mapa

(numa altura em que eu já…)

- …devias saber de cor!

sem hesitar

achar a dita serra

e porque não

e a palmatória a auxiliar-me a memória

morno, a aquecer, mais quente, mais quente, mais quente

num ferver de dedos

apenas um

tímido

à minha procura

mais de quarenta anos

(que vergonha, meu Deus!)

no mapa de mim

até achar, por fim, o montezinho.

- … Serra de…

Um arrepio a paralisar-me toda

a gelar-me ou a ferver-me o sangue

que quando se atingem os extremos tudo parece o mesmo.

Uma vontade de gritar

de chamar a professora Piedade

Maria da, com certeza

- Já encontrei, senhora professora! Já encontrei.

de dedinho no ar

da outra mão

(porque aquela a não poder sair dali, não se desse o caso de nunca mais lhe dar com o caminho)

a gritar no ar por

Piedade

Maria da, com certeza.

E, de repete, os olhos a fecharem-se, a

- … saber de cor!

a dispensar auxílio para dar com

o montezinho

comigo toda

uma coisinha de nada

tão eu

à mercê daquele fauno anelar

a não desrespeitar a memória do falecido, por que o único dedo que era casado comigo

ou com o Abílio

e o mundo inteiro reduzido a coisa nenhuma, uma luz forte no fundo dos olhos, e nem pai, nem mãe, nem irmão, nem cunhada, nem Abílio, nem dona Piedade

Maria de, com certeza

nem o padre-nosso nem a ave-maria

apenas eu, ali, toda feita mulher.

Quarenta anos!

Mais!

Meu Deus, que pecado!

(que vergonha, meu Deus!)

Tanto tempo na vida de uma pessoa. Meia vida. Com um bocado de sorte, meia vida. Mas não queria pensar em nada. Não conseguiria pensar em nada. E por isso a não pensar em nada. Estava comigo e era uma. Não mais sozinha

a arriscar mais um dedo

(que vergonha, meu Deus!)

mais um dedo

(tão bom)

só mais um; uma cumplicidade. E o primeiro dedo, até aí envergonhado

a perder a timidez à chegada do outro, a pôr-se muito senhor de sim, como se aquilo fosse para ele a prática diária; como se já fosse esperto e experiente na arte de achar montes no mapa de mim

a exibir-se para o outro

por sinal maior, ainda que mais pequeno, pois ouro algum

(que nisto de classes, até entre os dedos as há)

a encher o peito de vaidade

o sacana

que os dedos às vezes, raios os partam, até parecem pessoas.

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