Sunday, November 16, 2008

Olha o passarinho

- Está ali um pente e um espelho se quiser dar um jeitinho ao cabelo.

o fotógrafo…

corrijo

o retratista

(camisinha às flores)

a indicar-me com o dedo

(acusador)

como que a obrigar-me, ou à vergonha em mim, a dar

- … um jeitinho ao cabelo.

que

de cabelo no ar

(embora o não dissesse)

lhe estragava arte

que os fotógrafos

corrijo

os retratistas

crêem-se uns artistas

por isso

- Está ali um pente e um espelho…

(se quiser)

na ponta do dedo

(acusador)

- …um pente e um espelho…

(só se quiser, está claro)

na subtileza da comunicação, a ouvir-se

- Que de cabelo no ar estraga-me a arte.

ou

- Depois não se venha cá queixar que ficou com cara de porco-espinho!

e tudo isto no bouquet paralinguístico de

- Está ali um pente e um espelho se quiser dar um jeitinho ao cabelo.

De modo que eu

dois passinhos para o toucador

(no silêncio dos obedientes)

onde

- … um pente e um espelho…

e o meu reflexo, contrariado, à espera de mim para

- …um jeitinho ao cabelo.

O pente

bidimensional

dentes finos, dentes grossos

deitado sobre o naperon

de olhos baixos, nu, envergonhado

cheio de cabelos e caspa

a pedir-me desculpa

(prostituta entre dois fretes sem tempo de passar pelo bidé)

no embaraço próprio dos objectos sujos

conforme um espelho reflectindo o dono.

E eu a estender-lhe a mão

embaraçado por embaraçá-lo, a fingir que

nojo nenhum, importância alguma

(Coitado, não tinha culpa. Tinha era caspa, com cabelo, como muita gente!)

a pegar nele

e o pente

retraído

a mudar de cor

embaraçado

não obstante eu

- Tem de ser amigo.

a levá-lo à cabeça num gesto só

a fingir que

nojo algum, nenhuma importância

apesar das voltas do estômago

como se o pente uma garfada de mioleira pela goela abaixo, provocando-me arrancos de vómito, contracções na cárdia.

E nisto

um risco ao meio, perfeitinho, porque o cabelo a afastar-se sozinho

de mãos na boca, contendo o vómito

como o mar vermelho

metade para cada lado

com nojo de Moisés

enquanto o fotógrafo

corrijo

o retratista

(calcinha vermelha)

faraó impiedoso

procurando lentes, olhos de Rá, a umbela, pequeno pálio contra a luz forte do deserto

(salinha a que chamam estúdio)

(…uns artistas)

à espera que eu acabasse de dar

- … um jeitinho ao cabelo.

E de volta à salinha

(a que chamam estúdio)

(jeitinho dado)

o dedo acusador apontado ao centro, ao banquinho de enroscar

desenroscar

de s’ enrascar

desenrascar

o banquinho

ao centro

diante de um painel de palmeiras, gaivotas e mar

onde eu

jeitinho dado

risquinho ao meio

a tomar lugar

direito

a julgar que

direito

pois o fotógrafo…

corrijo

o retratista

(sandalinha de couro)

a dizer

- Um pouco mais para a direita.

- Já foi demais.

- Para a esquerda agora.

Numa indecisão parlamentar

- Endireite a espinha.

E eu com vontade de lhe gritar

- Quem tem espinha são os peixes.

a endireitar a “espinha”

(no silêncio dos obedientes)

não como ele queria

que os artistas nunca estão satisfeitos

a aproximar-se de mim

camisinha às flores

calcinha vermelha

sandalinha de couro

a aproximar-se de mim com dois polvos de cinco tentáculos, colando-se-me à cabeça, fazendo força

- Assim.

e sem que eu me mexesse

- Não se mexa!

E eu com vontade de lhe gritar que não me tinha mexido, “maricas de merda”

camisinha de couro

calcinha às flores

sandalinha vermelha

que não me tinha mexido

com vontade de lhe gritar

- Quem tem espinha são os peixes.

A não me mexer

(no silêncio dos obedientes)

procurando evitar os tentáculos

perfumados

cheios de anéis e pêlos

paradoxo estético

e

apesar de não me mexer

um tentáculozinho a lamber-me o queixo

- Assim!

toquezinho de nada, importância das importâncias

que os artistas nunca estão satisfeitos

que os artistas

- Cuidado, que me estraga a arte!

que os artistas

- Depois não se venha cá queixar que ficou com cara de Mário Soares.

Um toquezinho de nada e

- Está bom. Não se mexa agora. Isso. Vá, agora um sorrisinho.

e eu com uma vontade de sorrir tão grande quanto de engolir uma caixa de pregos

a forçar as bochechas

(no silêncio dos obedientes)

- … um sorrisinho.

a imaginar um polícia para mim

- … um sorrisinho.

desconfiado

porque a fotografia a não corresponder à minha cara, onde

sorrisinho nenhum

de modo que a fotografia sorridente a ter de pôr uma cara séria, carrancuda, a imitar-me, a colar-se a mim, para não me arranjar problemas com a autoridade

porque os artistas

o fotógrafo…

corrijo

o retratista

(cabelinho pelos ombros)

a insistir

- … um sorrisinho.

E eu com vontade de lhe gritar

- Quem tem espinha são os peixes.

a forçar as bochechas

(no silêncio dos obedientes)

a descolar os lábios

a imitar um sorriso

diferente de sorrir

imitar apenas

a não querer estragar-lhe a arte; para que depois não me fosse lá queixar que ficara com cara de sapo penteado e

(no silêncio dos obedientes)

a olhar para o passarinho

quando

- Agora olhe para o passarinho.

Passarinho, aonde?

anéis e pêlos

paradoxo estético

cinco tentáculos

ardil manhoso

que os passarinhos não têm tentáculos

que os passarinhos não têm anéis nem pêlos

nem paradoxos.

De modo que passarinho nenhum

passarão

não passarão

passarola

passareta

borboleta

pianola

borbotão

de patinha no botão

- Agora olhe para o passarinho.

E eu com vontade de lhe gritar

- Quem tem espinha são os peixes.

a olhar para os tentáculos penados

anéis e pêlos

direito no banquinho de enroscar

desenroscar

de s’ enrascar

desenrascar

o banquinho

ao centro

diante de um painel de palmeiras, gaivotas e mar

onde a brisa a ameaçar-me o cabelo, o risco, o penteado

de bochechas forçadas

sujeito a arranjar problemas com a autoridade

fixando o pintassilgo

o pintarroxo

o pintainho

até que

Flash

a deixar-me cego

gravado na chapa

com cara de porco espinho

Mário Soares

sapo penteado

que o artista

corrijo

o maricas de merda

camisinha pelos ombros

calcinha de couro

sandalinha às flores

cabelinho vermelho

bem me deu a entender

- Depois não se venha cá queixar…

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