Monday, September 03, 2007

Estação terminal

- Próxima estação: Alverca

A voz metálica da gravação a despertar-me da dormência, a sacudir-me do sonho como quando em criança a minha mãe

- Diamantino.

como um alicate para um dente podre

de sono

- Diamantino.

ou

- Próxima estação…

E eu a pôr-me de pé; a andar para a porta, sonâmbulo, atrás dos demais sonâmbulos numa fila de patos marrecos rumo à plataforma da estação

ao lavatório, porque

- Diamantino.

ou

- …Alverca.

de pé, a arrastar-me para fora dos lençóis; da carruagem de flanela, com o sono pendurado nas pálpebras, como o cinzento do fim da tarde, quando Março, e os dias a morrerem quando eu a chegar a

- …Alverca.

Antes chegar de noite! Agora àquela hora; limbo indefinido de angústia e frustração; nem dia nem noite, tal como a minha existência que nem vida nem morte. Uma coisa esquisita, à qual

(porque não sou bom a dar nome às coisas)

não sei o que chamar. E porque

- …Alverca.

Arrasto-me para fora da carruagem

da cama

numa fila de patos marrecos com

- Atenção à distância entre as portas e a plataforma!

na voz metálica da gravação que

- Diamantino.

como quando em criança a minha mãe

- Próxima estação…

e eu a abandonar a estação; o meu quarto, na dormência dos dias em que se tornou a minha vida,

cinzenta

cinzentos

como os dias em Março àquela hora

nem vida nem morte

limbo indefinido de angústia e frustração

e os pés rumo a casa, num plec plec de patinhas a ganharem membranas entre os dedos

plec plec

numa distância não maior que a

- … entre as portas e a plataforma!

Um pulinho:

Duas ruas e um largo

já ali

embora eu, cansado

a perder o fôlego

só de pensar na cave, onde há vinte anos, eu e a Júlia

na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, nas unhas dos pés crescidas e nos sovacos de quinze dias, porque os pormenores crescem em razão directa aos afectos.

A porta do prédio; o molho de chaves

O som de todos os dias a sair-me do bolso agarrado a uma rodela de estanho, onde um Santo António há muito perdeu a tinta e a paciência para me proteger. Um lance de escada. Para baixo; sempre para baixo e o cheiro do prédio a abraçar-me, como a um filho desalentado; mutilado numa guerra de todos os dias no ultramar de

- …Alverca.

E por falar em filho

o Diamantino José desde Setembro a estudar no Algarve

esperançado num futuro que o livre de

- …Alverca.

que o livre de

andar para a porta, sonâmbulo, atrás dos demais sonâmbulos numa fila de patos marrecos rumo à plataforma da estação

um curso que não entendo

- Bioquímica, pai.

da mesma forma que não entenderia

- Pedagogia do tecto falso…

- Aerodinâmica contextual…

ou

- Reprodução nuclear oceânica, pai.

E por isso também

(ou acho que por isso também)

porque

desde Setembro a estudar no Algarve

o Diamantino José

- Bioquímica, pai.

por falar em filho

- Bioquímica, pai.

(quantas vezes ainda será preciso repetir?)

por isso

também

(ou acho que por isso também)

o cheiro do prédio a apertar-me ainda mais, como os braços peganhentos de uma tia velha; como uma boca que nos enjoa mas insiste em falar connosco…

e o estômago

embrulhado

quase do avesso, porque rissóis de camarão. De certeza que de camarão

a avisarem-me por debaixo da porta:

- … de camarão…

- Diamantino.

Arroz de cenoura, uma cervejita, pão e queijo; uma peça de fruta. Maçãs. Posso jurar que maçãs.

E a chave à porta, como uma mauser apontada ao umbigo de um oponente. A televisão a chegar-me aos ouvidos na volta da chave

hesitante, contrariada

(a chave)

e um “boa-noite” maquinal e um maquinal beijo a vir-me à cabeça

o estômago embrulhado, quase do avesso

como há vinte anos

A voz metálica da gravação

anunciando

- Até ao último dia das vossas vidas.

ou talvez

(porque há muito tempo)

- Estação terminal.

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