Wednesday, February 14, 2007

Não éramos muitos

Esta tarde morreu o Emídio. Não esta tarde, há três tardes. Mas parece que enquanto uma pessoa não for coberta pelo chão não está verdadeiramente morta. Que apesar dos médicos

- Lamento muito!

lamentarem sempre muito

enquanto a cova não estiver rasa de terra, o portão do cemitério nas nossas costas a caminho de casa, sempre uma esperançazita. Os milagres acontecem, não é?

portanto

- … esta tarde… o Emídio.

porque a filha

- A minha Laurinha…

a sua Laurinha

no Luxemburgo e impossível uma viagem para anteontem, para ontem

- Impossível uma viagem para hoje.

a sua Laurinha

- Só depois de amanhã.

por isso o Emílio apenas a dormir, não morto, porque morto somente quando a cova rasa de terra e o portão do cemitério nas nossas costas a caminho de casa.

Estava bonito. Sempre foi um tipo bem apresentado. De todos

não éramos muitos

(não contando com ele):

o Armando

o Libério

eu e o Sousa

(o único que tratámos sempre pelo apelido, não me perguntem porquê)

de todos

sempre o mais arranjadinho. Penteadinho, cheirosozinho, barbeadinho; impecável. Tinha as mulheres que queria. Ou teria, se as quisesse, se não embicasse apenas para a Olga, que diante de Deus (das famílias e de nós todos)

não éramos muitos

- Prometo…

para toda a vida e, quando a filha, dois aninhos apenas, entrou num carro (disse quem a viu, não falo do que não sei) com um finório de brilhantina e, até hoje… chapéu.

de modos que criou a filha sozinho até à idade em que

a sua Laurinha

num carro

(disse quem a viu, não falo…)

com um finório de gelo (ou lá como se chama a brilhantina de hoje), para só dar notícias dois meses depois

- Preciso de dinheiro, pai, estou no Luxemburgo.

e o Emídio, que já andava nas últimas, a rejuvenescer. Nem um raspanete, uma descompostura, uma reprimenda

nada

apenas

- Mas estás bem filha?

- Preciso de dinheiro, pai…

e o Emílio, que já andava nas últimas, a mandar-lhe quanto pedira, feliz por a filha

- …pai…

viva

apenas a precisar de dinheiro

porque

- …no Luxemburgo.

a voltar à forma, ao aprumo, ao gosto pela vida. A ensinar-nos a nós

não éramos muitos

(não contando com ele):

o Armando

o Libério

eu e o Sousa

(o único que tratámos sempre pelo apelido…)

como se enfrentam problemas.

as mulheres que queria… se as quisesse, se não embicasse apenas para a Olga, que

quando a filha, dois aninhos apenas… num carro (disse quem a viu… não sei)… e, até hoje… chapéu.

Estava bonito. Num fatinho todo catita. Talvez mandado fazer para a ocasião, pois nunca lho vi. Sempre muito zeloso com o aspecto. Estava bonito. Arranjadinho, penteadinho, cheirosozinho, barbeadinho, impecável. Ainda agora haveria de ter as mulheres que quisesse, se quisesse, se não embicasse apenas para a Olga, que sabe Deus onde o Diabo a esconde.

- Impossível uma viagem para hoje.

- Só depois de amanhã.

- Só depois de amanhã.

Só depois de depois de amanhã.

e a morte a perder a paciência e a aprofundar o sono ao Emílio, que até aí

apenas a dormir

a obrigar as autoridades a baixar-lhe por fim o corpo à terra, dado que

- Só depois de amanhã.

ou

depois de depois de amanhã.

e o Emídio a aceitar, resignado, porque

- …os aviões. Coitadinha!

ou algo que o valha

porque a sua Laurinha

- A minha Laurinha… Coitadinha!

sempre coitadinha

por isso

a encolher os ombros, resignado, não para facilitar o enterro, resignado, morto por fim, porque a cova rasa e o portão nas minhas costas a caminho de casa, triste, sozinho, visto que

não éramos muitos

(não contando com ele):

o Armando

o Libério

o Sousa.

Nenhum assistiu ao funeral. Não porque

- Impossível uma viagem para hoje.

- Só depois de amanhã.

- …os aviões. Coitadinhos!

mas porque não podemos assistir ao funeral de quem assiste ao nosso. A morte não é um casamento. O mesmo já não se pode dizer do contrário, dado que

diante de Deus (das famílias e de nós todos)

não éramos muitos

- Prometo…

para toda a vida e… dois aninhos apenas… num carro (disse quem… viu…)… e, até hoje… chapéu.

Mas dizia

a caminho de casa, com o portão nas minhas costas e um cão invisível a farejar-me as botas, a contar-me os passos

oitenta e nove mil e vinte e quatro

oitenta e nove mil e vinte e três

à espera que eu um fato novo

porque um fatinho faz toda a diferença. Não que não nos leve se um fato velho, mas um olhar de lado, um faz de conta que não te posso atender já, um esperar na fila da entrada, porque o céu uma repartição pública e a senha de chegada apenas uma formalidade.

oitenta e nove mil e catorze

e eu a alargar o passo, para não ter de dar tantos, em direcção ao alfaiate, não a casa

porque um fatinho faz toda a diferença e por mim não se há-de esperar muito que um filho em Alverca e outro no Pragal.

em direcção ao alfaiate

oitenta e oito mil e noventa e dois

oitenta e oito mil e noventa e um…

1 comment:

Jurassik Pork said...

este simples texto mas q de simples não tem nada dá muito em q pensar!

5 estrelas, sem dúvida.