Tuesday, February 20, 2007

a bondade de me auxiliar

- A sua esmola, por favor! Tenha a bondade de me auxiliar com a sua esmola, por favor!

e um encolher agitado ao longo da carruagem ante a voz cega que

- A sua esmola, por favor!

um baixar de olhos, disfarçando a presença, não fosse o cego dar por eles. Não que não fossem bondosos, mas nem sempre podiam ter

- … a bondade de…auxiliar…

Eu vinha de casa do David e trazia a derrota do mundo aos ombros. A voz do cego nos meus ouvidos era uma melopeia distante que se misturava com a minha dor de cabeça em variações de intensidade. Não me encolhi. Já estava encolhida.

Não por causa da voz

- A sua esmola, por favor!

mas porque

de casa do David

não porque

- Tenha a bondade de me auxiliar…

mas porque

a derrota do mundo aos ombros.

Já estava encolhida. O meu corpo, naquele momento, dez números acima de mim, como o vestido verde da mamã que eu adorava. Por isso

Não me encolhi.

Pouco me importava que o cego me visse com a ponta do bastão. Pouco me importava que os encolhidos… o que quer que fosse. Pouco me importava qualquer coisa depois do David

- Arrefeceu, Anita!

depois do David

- Já não sinto o que sentia, Anita.

com o meu nome em rimas constantes, verso após verso, num poema de desamor perfeito; na voz declamatória do David

- É melhor ficarmos por aqui, Anita.

decidindo pelos dois

apesar de eu

- A sua esmola, por favor!

o David

- Por favor, não insistas, Anita!

e eu

ou o cego

baralho-me já

- Tenha a bondade de me auxiliar com a sua esmola, por favor!

- Não insista, senhor! - dito num encolher de corpos

- Não vê que está a incomodar toda a gente?

E claro que não via

claro que não via que

- Não vês…

claro que não via que

- … não dá mais, Anita!

No banco em frente ao meu, uma senhora dilatada, usurpava quase todo o espaço do assento de um homenzinho enfezado, quase invisível, que se se encolhesse ao toque do cornetim

- A sua esmola, por favor!

desaparecia por completo da superfície da Terra. Aquele não havia o bastão de encontrar. A senhora encolhera-se o quanto podia, mas porque não podia encolher-se mais, meteu a mão à carteira, num catar de moedas

a voz do cego cada ver mais próxima

- A sua esmola, por favor!

numa ameaça de sargento que passa revista à formatura

- Tenha a bondade de me auxiliar com a sua esmola, por favor!

cada vez mais próxima

não por bondade

mas porque não podia encolher-se mais

esconder-se do bastão

cada vez mais próximo

- …por favor!

e as moedas aflitas, num vasculhar de dedos, encolhendo-se aos cantos da carteira, baixando os olhos, disfarçando a presença

as pequenas apenas, que as grandes a nunca serem chamadas para a linha da frente

que as grandes

- É melhor ficarmos por aqui…

- …Anita.

uma moeda a responder por mim ao chamado

- …Anita.

a rima forçada num poema de desamor

perfeito

- …Anita.

- … sua esmola, por favor!

- David!

- …não insistas…

- Mas, David…

- Não vê que está a incomodar toda a gente?

- Não me trates por você, David, porra!

- Não vê…toda a gente?

e claro que não via

- … toda a gente…

como as moedas, aos cantos da carteira

- Vai tu.

- Vai à merda, David!

(as pequenas apenas…)

num vasculhar de dedos

cinco bastões grossos, de um lado para o outro

- Tenha a bondade…, por favor!

cinco bastões

pouca chance de escapar

porque a senhora não podia encolher-se mais

porque a voz

- …a sua esmola, por favor!

porque o bastão

na sua perna dilatada

toc toc

ou lá como fazem os clarins para a formatura

toc toc

- …a sua esmola…

num contrariar de dedos rumo a uma caixinha sinistra

toc toc

ou lá como fazem as moedas

(as pequenas apenas…)

(…que as grandes…)

- É melhor ficarmos por aqui…

e um “bem-haja!”, repetido, completamente às escuras, mecânico, como um

toc toc

afastando-se

toc toc

num desprender de respirações, num desencolher de corpos. Porque o toc toc

um, dois, três, macaquinho do chinês, a diluir-se na imensidão de sons, completamente às escuras.

Não me desencolhi.

Ainda que quisesse…

Não me desencolhi.

O meu corpo…, dez números acima, como o vestido verde… que eu adorava.

Pouco me importava que o cego… que os encolhidos… o que quer que fosse. Pouco me importava qualquer coisa depois de

- A sua esmola, por favor!

depois de

- Não insistas, Anita!

2 comments:

a said...

muito bom!

Jurassik Pork said...

tb acho, muito bom!

q tenhas sempre a bondade de nos auxiliar com estes textos q tão bem retratam a realidade.