Monday, October 05, 2009

Então não se vê logo?

Havia qualquer coisa nos olhos dela
ou nos meus olhos a olharem os olhos dela
(que nestas coisas nunca se sabe muito bem)
que desafiava em mim uma paternidade desconhecida.
Era triste
o olhar
dela
ou o meu olhar para ela
(que nestas coisas…)
a provocar em mim uma vontade irresistível de abraçá-la
ou de abraçar-me a ela
(…nunca se sabe muito bem).
Trabalhava
ela
num cafezito de esquina, para os lados da Av. da Igreja
não na Av. da Igreja
para os lados
onde eu costumava parar ao fim da tarde.
Nunca lhe conhecera um sorriso
Não diria antipática
apenas
nunca lhe conhecera um sorriso.
Até ao dia em que, com um guardanapo, fiz uma coisa esquisita e, quando veio à mesa com a bica do costume, lhe passei para as mãos num
- Tome.
Ficou a olhar aquilo. A tentar, como eu, encontrar algum sentido para além de
- Tome.
mas porque sentido nenhum, por mais que a imaginação
é um gato pardo
um boi almiscarado
uma bobina de indução termoeléctrica
(se imaginasse o que isso fosse)
a perguntar
- O que é isto?
num alçar de sobrancelhas
arcos finos, cinzelados à pinça
reveladoras, só por isso, de alguma esperança na viva; na sorte; em algo que seja
chamem-lhe fado os mal fadados
(que nestas coisas nunca se sabe muito bem)
- O que é isto?
(pronuncia perfeita)
e eu
com a maior das obviedades
- É uma cegonha! Então não se vê logo?
porque não me lembrei
(e se lembrasse também não o diria)
- É uma vontade irresistível de abraçá-la.
ou de
- Abraçar-me a si.
(que nestas coisas…)
Por isso
não podendo dizer outra coisa
já que nem gato pardo, nem boi almiscarado
uma vontade termoeléctrica de bobinar-me em si
de a bobinar em mim
uma vontade termoeléctrica
uma bobina de indução
a dizer
- É uma cegonha! Então não se vê logo?
E um rir a não se lhe segurar aos lábios.
Não há como uma mulher de olhos tristes apanhada desprevenida pela graça.
Riu. Levou a mão à boca, onde um dente de ouro brilhava menos que os seus olhos
ou os meus olhos a olharem os olhos dela
(que nestas coisas nunca se sabe muito bem)
infantis
os meus olhos
os dela
a provocar em mim uma vontade irresistível de levá-la dali, pegá-la ao colo, aninhá-la em mim, encostar-lhe a cabeça ao peito e dizer
- Vai tudo correr bem.
como se alguma coisa me dissesse
os seus olhos, talvez
os meus a olharem os dela
que a vida não está fácil
os seus olhos, talvez
os meus a olharem os dela
a provocar em mim uma vontade irresistível de levá-la dali
de ser eu também criança aninhada ao colo
(que nestas coisas…)
o colo que se dá é o colo que se recebe.
Riu. Agradeceu sem jeito o objecto sem jeito
(pronuncia perfeita)
cegonha alguma
coisa alguma
(bobina de indução termoeléctrica)
apenas
- …uma vontade irresistível de abraçá-la.
ou de
- Abraçar-me a si.
(…nunca se sabe…)
pois não podia dizer outra coisa
já que nem gato pardo, nem boi almiscarado
apenas
- É uma cegonha! Então não se vê logo?
Quando saí, tornou a sorrir. Um troco em forma de dentes à mostra
(afinal eram dois
os de ouro)
De modo que na tarde seguinte
e na seguinte à seguinte
um sorriso ao chegar, outro com o café, e outro ao sair. Como uma prescrição médica. E eu a pensar que
um dia destes
não hoje
um dia destes
que um homem na minha idade
apesar de não acusar os anos
(sessenta e oito no fim do mês)
reformado e viúvo
tem o seu quê de timidez
mas um dia destes
eu a pensar
não hoje
um dia destes
convido-a para sair. Porque não? Dois anéis nos dedos. Aliança alguma. Dois anéis. Aliança alguma. De modo que
Porque não?
um homem na minha idade
reformado e viúvo
Porque não?
Uma companhia é uma companhia. E depois deixava-lhe tudo, que nem filhos nem sobrinhos.
Aninhá-la em mim
aninhar-me nela
que um homem na minha idade

abraçá-la
abraçar-me a ela
juntar duas vidas num viver só
até ao dia que Deus quiser
e depois…
e depois deixar-lhe tudo
cegonhas de papel
um apartamento na avenida do Brasil
a continha do banco
o pecúlio de uma vida de pouca coisa, mas séria
deixar-lhe tudo
de modo a ela
ainda nova
ficar assegurada
que a vida não está fácil
e parece-me que não vai estar nunca.

1 comment:

Rosario Ferreira Alves said...

Olá Norberto. Sou a mana, a da Marília. Continuo a adorar ler os teus textos que tanto me fazem rir, como chorar, com pensar e até tudo ao mesmo tempo.Parabéns mais uma vez.
Coloquei o link do teu blog no meu que comecei hoje espero que não te importes. Beijinhos, até qq dia.
Rosário