Monday, March 02, 2009

Abracadabra

No dia em que o meu tio Américo se transformou num javali foi a loucura naquela casa. Eu não teria mais de quatro anos, mas recordo-me como se ontem. A princípio tive medo, claro, e não queria acreditar quando a mamã
- É o tio Américo, filho.
fazendo-lhe festas na cabeça de porco desgrenhado.
- Não tenhas medo, tonto.
como se fosse dizer
- Não tenhas medo, tonto.
o medo
puf
num passe de mágica
igual ao tio Américo
naquele almoço de domingo entre o arroz doce e o café
- Senhoras e senhores, convosco, Péricles, o albatroz dos sete mares!
e nisto
puf
um javali
arrancando um abanão geral à plateia de familiares que, a aguardar por um penado mergulhão
puf
sai-lhes um foçador de trufas de capachinho à António Calvário.
- Não vês que é o tio, palerma?! Olha lá para o cabelo.
E de facto
- … o cabelo
o penteado
risquinho ao lado entre o ruivo e o louro, a manter-se intacto. Assim como os olhos, pequenos e curiosos… iguais.
- Não vês que é o tio, palerma?! Olha lá para o cabelo.
e o capachinho
a garantir-me que
- … o tio…
palerma
- …o tio, palerma…
o tio palerma
o capachinho
a descolar-me, aos poucos, das saias da mamã, que lhe arrancava grunhidos satisfeitos com a mão sobre o pêlo e a mim gargalhadas felizes. Também lhe quis fazer uma festa. Era o meu tio preferido. Não me levem a mal os outros, mas…
o meu tio preferido.
Fiz-lhe a festa
(era quase do meu tamanho)
arrancando-lhe um grunhido de contentamento
um brilho nos olhos
pequenos e curiosos…
Quem não achou graça nenhuma foi a tia Zulinda, mulher do tio Américo, que
- Isso não tem graça nenhuma, Américo!
apesar das gargalhas de toda a gente.
Mas o tio Américo parecia não estar nem ali para os amuos dela, passando o resto da tarde entre as pernas das cunhadas.
- És um sacana, ó Américo!
o meu tio Roberto, quando o irmão lhe começou a foçar as saias à Guidinha.
- Já chega, Américo!
mas não chegava. Não é todos os dias que um homem pode ser um porco dos sete costados e foçar sem pejo vontades antigas, como era o caso da tia Guidinha.
- Ou paras imediatamente com isso…
a tia Zulinda
- … ou chateio-me a sério.
na sentença mais alta que pôde a vozinha fraca que lhe ficou da pleurisia.
- Ouviste o que eu disse, Américo?
aumentando meio tom esforçado à reprimenda.
E o tio Américo, que não podia responder, a levantar os olhos
pequenos e curiosos
a soltar um ronco
incompreensível
que a tia Zulinda entendeu como uma provocação, ou não teria ido à cozinha buscar a vassoura grande e varrê-lo ido para o quintal, deixando um silêncio fúnebre na sala.
Nos olhos de todos se via brilhar a esperança de que o tio Américo entrasse a qualquer momento pela janela num voo picado de albatroz e aterrasse em cima da mesa, entre os restos do almoço, anunciando, envolto numa nuvem de fumo
- Charã!
o homem que sempre foi, arrancando gargalhadas e aplausos a todos e lágrimas de contentamento e fúria à tia Zulinda, antes de descer para a beijar e apertar-lhe a bochecha no seu clássico
- Não custa nada, Dindinha!
Mas o tio Américo não veio e, ao fim de uma hora, uma excursão de família foi à rua, para dar com ele deitado sobre o capacho à espera de misericórdia.
O segundo grande silêncio formou-se, e nem o tio Sequeira que tinha sempre explicação para tudo se atreveu a abrir a boca. Pareciam começar a compreender que algo havia corrido mal naquele truque trocado, e que o tio Américo desta vez não seria capaz de desatar o nó górdio do feitiço.
- Ai, valha-me Nossa Senhora!
a tia Zulinda à beira do desmaio.
O ambiente adensou-se. A consternação era geral e só eu parecia achar graça àquela brincadeira. A minha mãe segurou-me pelo ombro, puxando-me quando me tentei aproximar do tio para lhe passar a mão pelo penteado.
Não estava a compreender. Uma hora atrás estavam todos divertidos e agora…
- É o tio Américo...
tive vontade de dizer
- Não tenham medo, tontos.
e quase me saiu
- Não vêem que é o tio, palermas?! Olhem lá para o cabelo.
mas um ronco interrompeu-me a intenção
um ronco fraco, indecifrável, mas cuja impotência dos olhos
pequenos e curiosos…
faziam compreender que estava arrasado.
Concordaram que talvez o tempo solucionasse ou remediasse a questão, e com dois cobertores fizeram-lhe uma cama na adega
ao lado do lagar
onde ainda em Setembro
mosto até à cintura
mosto que agora o afogaria
que de gatas não se pisam uvas.
Uma cama
dois cobertores
ao lado do lagar
duas voltas à chave
e a tarde a morrer baixinho
num gemer doído
a tarde
o meu tio Américo
mais do que a tarde
capaz que
mais do que a tarde
o meu tio Américo
baixinho
num gemer doído de quem sofre dentro de uma virgem de ferro em forma de porco-montês.
Eu não teria mais de quatro anos, mas recordo-me como se ontem
afinal
o meu tio preferido. Não me levem a mal os outros, mas…

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