Monday, June 30, 2008

Quase Mulher

Há meses que o Valentim não me procura. Há meses que

também eu

perdi a coragem de

uma pontinha de pé nos pêlos das suas pernas, num miado de gata com…

Há meses

Fevereiro

28 para ser mais exacta

que o doutor Gama Seixas

- A senhora tem um cancro na mama.

que a vida se me cristalizou diante dos lábios, incrédulos

- Como?

- Dezoito milímetros dona Adélia. Temos de operá-la o quanto antes. E perca as ilusões de salvar o peito. Não há como arriscar.

E eu que nunca me descuidava com os exames; eu tão certinha e

- … perca as ilusões de salvar o peito.

como se negligência da minha parte, como se eu não me apalpasse, me conferisse, como se o Valentim

as mãos cegas do Valentim…

e uma raiva enorme a acumular-se em cada passo a caminho do autocarro

para Benfica

uma raiva enorme do Valentim que

de mãos no meu peito

sem me sentir

como se duas bolas de esponja para a fisioterapia das artroses. Uma raiva enorme porque nunca me prestou atenção; porque de tanto as apertar, de tanto puxar por elas

(como se eu a mãe que o deixou à porta da maternidade)

nunca sentiu nada a mais.

- Dezoito milímetros…

Por favor!

A sentir-me usada, abusada, negligenciada…

e uma raiva enorme a escorrer-me para o lenço: o último de um maço encetado na paragem

para Benfica

onde o decote da blusa ainda a ser alvo de olhares

embora eu

vontade de gritar

- Gostam do meu cancro, javardos?

com raiva, a senti-lo diminuir, desaparecer

e

dentro de uns dias

nenhuns olhos a procurarem o decote que

nunca mais coragem de usar

como nunca mais coragem para uma pontinha de pé nos pêlos das pernas do Valentim. Já lá vão uns meses

estamos em Agosto

22 para ser mais exacta

portanto, desde Fevereiro

28

um dia antes

para ser mais exacta

a 27, portanto

que o doutor Gama Seixas

- A senhora tem…

… um cancro…

Agosto

estamos em Agosto

e o calor a puxar por mim, pelos humores de mim, mas eu, a não querer ser mais rejeitada do que já me rejeito, a

nem uma pontinha de pé nos pêlos das pernas do Valentim

miado de gata com…

Nada!

- E com a luz apagada? - Eu a tentar junto de mim uma solução, uma abreviação. Mas a escuridão não apaga tudo, visto no lugar do peito apenas o lugar do peito, pois a reconstituição

- Um dia…

o doutor Gama Seixas

embora para destruir

- …o quanto antes.

mas para reconstruir, nenhum médico

- Temos de operá-la…

E o autocarro

a caminho de Benfica

a passar ao longo do cemitério

e eu

a doer-me por dentro

com vontade de agarrar-me a toda a gente, aos pés de toda a gente

a pedir

- Ajudem-me! Por favor, não me deixem morrer! Não quero morrer, por favor! Estou cheia de medo! Alguém me agarre, por amor de Deus!

a pedir

suplicar

para ser mais exacta

que tivessem pena de mim, que me ajudassem

se todos quisessem, se todos fizessem um esforço, se todos estivessem do meu lado

tudo mais fácil

tudo muito mais fácil.

Mas as caras apertadas, cheias das suas vidas, como se em cada peito um cancro, a bater em vez do coração

contagem decrescente

tum-tum, tum-tum

condenados todos.

E eu a querer chegar a casa, agarrar-me ao Valentim, na esperança de que ele me salvasse, de que ele me acordasse daquele pesadelo, de que ele…

um abraço

em silêncio

(não importa )

garantindo-me

- Foi um pesadelo, já passou!

caso não mo pudesse garantir

pelo menos

- Vai tudo correr bem. Não te preocupes. Eu estou aqui. Ao teu lado. Sempre!

Também já era pedir de mais!

Ou a minha mãe, que há anos tinha morrido

doze

para ser mais exacta

e que me faltava agora como nunca. Eu a querer voltar atrás, eu a prometer que me portaria bem, eu a jurar que faria tudo quanto ela ou Deus quisessem, eu a garantir que aprendera a lição, eu a qualquer coisa, a assinar a minha sentença de morte para me salvar

como quem se atira de um centésimo andar em chamas.

Mas nada!

A sala vazia

os quartos

eu toda

como a casa

a enrolar-me no sofá, como se nos braços de Deus, no útero materno, um instante de conforto, de protecção, couto almofadado onde nada me poderia tocar. Mas

- …um cancro…

não o jogo da apanhada. De modo que

dias depois

oito

para ser mais exacta

a acordar como uma amazona, numa floresta verde de cortinados desesperançados. A mão esquerda a procurar o seio direito, porque a direita não se podia mexer e

nada

apenas o lugar onde um dia

uma mulher completa

de encher o olho

o decote, alvo de olhares

e a enfermeira, toda sorrisos

- Como é que se sente?

com dois fartos seios apontando para mim, a encherem-me os olhos de lágrimas mutiladas.

- A operação correu muito bem! Daqui a uns dias já estará em sua casa.

Cinco

para ser mais exacta.

E agora, meses depois, o Valentim, como se eu um monstro

não uma amazona

um monstro

a não me procurar

e eu

sem coragem para uma pontinha de pé

uma pontinha pé nos pêlos das suas pernas.

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