Friday, January 05, 2007

Para a próxima…

Ela chegava num toc toc de subir de escada, no seu passo absoluto, toda sapatos, enorme como uma estátua de bronze, e metia a chave à porta de uma vez só. Nessa altura já eu estava a caminho das cebolas para começar a chorar antes que fosse preciso bater-me.

- Olá fofinho, a mamã chegou! - numa voz de sargento rente à reforma.

- Olá fofinho… - sempre assim que me chamava.

- …a mamã… - como se tratava a si.

- … chegou!

e eu com vontade de lhe gritar da cozinha que ela não era a minha mãe, mas, em vez disso

- Olá fofinha!

e não

- Tu não és minha mãe! - como era de minha vontade. - Tu és um monstro!

e no entanto, unicamente

- Olá fofinha! - encolhido como a cauda de um cão assustada, agarrado à cebola para começar a chorar

- …a mamã chegou!

sem que fosse minha mãe, pois a mamã

uma mulher delicada; uma boneca de porcelana com rugas de cola porque o meu pai

- Para a próxima levas mais!

e para a próxima levava igual, porque mais não podia ser.

- Para a próxima…

e a minha mãe a apanhar os seus próprios cacos do chão, e a levá-los na concha das mãos, como se aparasse lágrimas

mas apenas cacos

para o fundo do quarto; para os colar de novo no sítio; para a próxima.

- Olá fofinho, a mamã chegou! - numa voz de sargento…

… rente à reforma.

e eu na cozinha, preso à ponta de uma cebola, como uma rama mole, impotente, com vontade de

- Tu não és minha mãe!

- …fofinha!

- Tu és um monstro!

- …fofinha!

mas uma fila de dentes enormes, tortos e amarelados na minha direcção a desaparecerem num alongar de lábios pintados.

- Então o que é a papa?

- Veneno para os ratos! - aquilo que me apetecia dizer, e a sair-me, num refogado de cobardia

- Bifinhos de cebolada.

- Bifinhos de cebolada?! - como se eu tivesse efectivamente dito

- Veneno para os ratos!

- Querias outra coisa, fofinha?

e uma fila de dentes enormes, tortos e amarelados na minha direcção, a não desaparecerem num alongar de lábios, e a mascarem palavras, indigestas, como se me mascassem a mim, ainda que não se ouvisse mais que

- Não, fofinho! Está óptimo! Estou mortinha de fome!

num silêncio que apenas eu sabia ouvir

- Mas é todos os dias a mesma merda? Não sabes fazer mais nada meu anormal?

ainda que só

- Não, fofinho! Está óptimo!

da mesma forma que eu

- Bifinhos de cebolada.

em vez de

- Veneno para os ratos!

- … meu anormal…

e o silêncio, a ressoar no ar da cozinha, num mascar de palavras

indigestas

a mascar-me a mim

- Tens tanta imaginação para fazer comida como para escrever livros! É por isso que ninguém te pega!

- …fofinho! Está óptimo!

não na voz de sargento rente à reforma

- Para a próxima…

apenas

- …fofinho!

- …óptimo!

ainda que nos meus ouvidos

- O que seria de ti, meu desgraçado, sem mim?!

e a resposta a não me surgir, porque a pergunta… o silêncio que apenas eu sabia ouvir

no ar da cozinha

na minha cabeça

no ar

- Veneno para os ratos!

- Está óptimo!

- Fofinh…

e eu a não compreender porque dissera

- Sim.

quando o padre me perguntou

- Aceitas para tua legítima esposa este monstro?

perguntando

no silêncio que apenas eu sabia ouvir

- Aceitas para tua legítima esposa o teu pai.

… a não compreender porque…

- Sim.

- Sim, aceito.

porque o medo é uma estátua de bronze a subir as escadas, não em tacão raso; em bota de cano alto. Porque o medo é uma boneca de porcelana em mil bocados espalhados pelo universo da minha infância. Porque o medo é uma mão cheia de cacos apanhados do chão, como lágrimas, rumo ao fundo do quarto. Porque o medo é uma cauda de cão assustada, preso à ponta de uma cebola, como uma rama mole, impotente, incapaz de dizer

- Não!

porque o medo são olhos abertos, máximos de TIR a espantar-me para os arbustos da casa de banho, que é como quem diz, para dentro de um sapato, quietinho, num silêncio de pulga, porque o medo é…

- Para a próxima…

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