Friday, December 19, 2008

O fantasma da Madalena

Conheci-a em cada da Edite
 festa de anos
 chamava-se Odete e
 como eu
 estava sozinha.
 A Edite, amiga de longa data
 (do tempo já da 5 de Outubro, quando o escritório ainda rejeitava clientes, por “excesso de trabalho”)
 sempre teve queda para padroeira do encalhados. De modo que
 a não me admirar 
 se ela
 - Tens de conhecer o Óscar.
 falasse nestes termos à amiga
 … Odete.
 - Divorciado faz dois anos.
 (trabalhinho arranjado pela padroeira Edite)
 - Não tornou a ter ninguém.
 Um caso ou outro mal sucedido, que a Madalena nuca saiu por completo lá de casa
 ou de mim, quando eu lá em casa.
 (mas esta parte a Edite a omitir)
 apenas
 - Divorciado faz dois anos.
 e
 - Não tornou a ter ninguém.
 Pois o facto de a Madalena nunca (…) por completo… 
 …lá de casa
 a fazer com que
 de cada vez que uma mulher no 3º esquerdo
 (não digo o número) 
 da Rua de Arroios
 o fantasma da Madalena
 - É impressão minha ou cheira-me a puta!?
 e o amor
 ou a carência que o parece
 a sair gorado.
 Duas apenas, em dois anos
 uma por ano, numa análise estatística
 embora nenhuma mais de duas semanas, que o fantasma da Madalena
 (casada já, e com um filho que nunca lhe fui capaz)
 a ironizar de nariz torcido
 - É impressão minha ou cheira-me a puta!?
 Por isso, quando a Edite
 - É o Óscar. É a Odete.
 o meu estômago a ficar nervoso
 não por ela
 mas porque a história a tentar de novo
 e o fantasma da Madalena
 “Alerta” 
 como um escuteirinho irritante
 a
 - É impressão minha ou…!? 
 razão porque eu
 o meu estômago
 a ficar nervoso
 porque um homem
 se homem 
 - Divorciado faz dois anos.
 não tem como
 - Não faz o meu género.
 pois dá logo vontade de perguntar
 - Ai não?! E que género é o teu?
 No fim de contas foi a Madalena quem
 - Quero o divórcio.
 a Madalena quem
 distante há muito
 um pé dentro, outro fora
 embora sempre
 - É impressão minha ou cheira-me a puta!?
 De maneira que 
 se eu
 - Não faz o meu género.
 capaz de os narizes todos 
 - Ai não?! 
 a torcerem as ventas
 - E que género é o teu?
 Pelo que
 apesar do estômago nervoso
 a passar a noite na conversa com a Odete. Diferente de mim: dia e noite, preto e branco, cara e coroa… alegre, gordinha, gargalhadas de copos pela cristaleira abaixo, enfermeira em São José, solteira
 - … e boa rapariga.
 como achou graça dizê-lo.
 Toda ela clichés. Como eu todo clichés. Só que ela clichés alegres, gordinhos
 vidros em estilhaços
 e eu
  cinzento, gravata azul, camisa sem cor, como as cuecas velhas do papá no estendal da marquise em Sete-Rios.
 Mas a verdade é que
 nessa noite
 depois das velas e do champanhe
 (porque qualquer gasosa é champanhe)
 portanto
 depois das velas e do champanhe
 que o bolo a mim não me cai bem
 nessa noite…
 como hei-de dizer?
 a Odete que
 - Acho que já estou a ficar tonta!
 a pegar-me no braço e, entre marteladas na cristaleira, a garantir-me
 - Você é tão engraçado, Óscar!
 a fazer-me sentir na obrigação de
 - Trata-me por tu.
 como se lhe levasse a mão ao interior da blusa e lhe soltasse a mola do soutien que lhe oprimia o peito
 arrancando-lhe um suspiro
 - Acho uma óptima ideia! 
 de maneira que
 ao despedir-me
 a Edite logo
 - E tu, Odete, como é que vais?
 puxando-me pela prontificação
 e antes de a Odete
 um táxi, ou coisa que o valha
 eu logo
 - Posso levá-la.
 que na opinião da Odete
 - … uma óptima ideia! 
 Num chover de copos pela cristaleira abaixo.
 Há um mês que passa cá os fins-de-semana e já plantou uma escova no copinho da casa de banho. Ainda não é nada certo, mas há duas coisas que me fazem crer que é possível. Uma é a Odete não sair da cama a correr para ir lavar o amor ao bidé
 não me rejeitando
 não me expelindo de dentro dela para correnteza do Tejo
 como as outras
 a Madalena, talvez
 não me lembro se a Madalena 
 depois de…
 a Madalena
 ou a torneira do bidé
 numa cumplicidade secreta
 para correnteza do Tejo
 como as outras duas
 que
 mal acabávamos
 - Vou só à casa de banho num instante. 
 Agora a Madalena não me lembro.
 A verdade é que nunca um filho meu
 (e agora
 casada já, e com um filho que nunca lhe fui capaz)
 dois abortos espontâneos 
 a própria palavra
 espontâneos 
 a dizer tudo
 a rejeitar-me atrasadamente
 enquanto a Odete 
 depois de nós (…)
 a ficar
 gargalhando alto
 por tudo e por nada um desastre de copos pela cristaleira abaixo
 - És tão engraçado, Óscar!
 a não sair da cama a correr 
 a não
 - Vou só à casa de banho num instante. 
 a achar tudo
 - … uma óptima ideia! 
 a rir
 gordinha
 feliz. 
 A outra coisa
 das duas que me fazem crer que é possível
 é o facto do fantasma da Madalena nunca mais
 - É impressão minha ou…!?
 uma pontinha de nariz
 de vez em quando
 torcido, é certo
 mas nunca mais
 - É impressão minha ou…!?
 assustado, é possível, pelo estilhaçar de copos da Odete 
 que não acreditava em fantasmas nem em palermices e está cá 
 parece-me
 para ficar
 o que eu
 de certa forma 
 até acho
 - …uma óptima ideia! 

Isto tá bonito, tá!

- Barda merda mais às criancinhas de África, pá! Até parece que aqui não há fome! Passei pouca, eu! Não nos quiseram de lá para fora? Atão agora desemerdem-se, amanhem-se sozinhos, olha o caralho! Ah, que Deus, que os portugueses assim, que os portugueses assado… Estão melhor agora, qués ver!? Olha, os meus velhos deixaram lá tudo! Três malas de roupa e nem uma cá chegou! 
 Isto é mau, isto é mau, mas toda a merda cá vem parar! Isso é que eu sei! Se é mau, puta que os pariu, pá! Vão lá para a terra deles, ou o caralho! Temos de ajudar? Ó Calisto, foda-se! Eu sei o que é que estou a dizer, pá! Vim de Angola com uns calções, umas cuecas, umas meias, uns sapatos, uma camisa e um boné. Mas tás a brincar comigo ou quê? Eu sei o que estou a dizer, pá! Passei por elas!
 Ajuda? Mas tu achas o Estado português tá interessado em ajudar as ex-colónias, pá? O Estado só ajuda aqueles que o ajudam a ele! Ou tu achas que têm poucos interesses por lá? Hum? É petróleo, é diamantes, é ouro, é o caralho! Têm tudo, aqueles gajos, pá! Logo não ajuda merda nenhuma, pá! Olha lá o Soares, esse verbo-de-encher… não andava lá aos diamantes, mais o caralho do filho dele, aquele cara cu mal fodido? Olha, quando caiu o helicóptero, o que é que andavam por lá a cheirar? Às zebras para fazer passadeiras, qués ver? Conta-me histórias! Olha, havia de ter sido eu e ficava lá! Essa é outra, pá. Se for um pobre a ter uma dor de barriga, caga-se todo e ainda o fazem limpar o corredor das urgências. Agora um burguês? Até o lhe limpam o cu com a aba da bata.
 Só te dão um chouriço se lhes deres um porco. E tens de ser tu a matá-lo. É como os bancos, pá! Para te darem um tostão já tu lhes destes cinquenta. Ninguém te dá nada, pá! Agora, vou eu ajudar? Tá bem, tá! E quem é que ajuda a mim?
 A mim? Darem-me uma casa a mim? Uma pouca de merda é que me dão, pá! As casas são para os gajos das barracas, que não mexem uma palha e ainda recebem subsídio! Eu trabalho, pá! Tenho três filhos e a mulher desempregada! Pago quinhentos aerios de renda, ganho oitocentos: comer, água, luz, gás… e já foste. Não fosse a minha sogra a dar algum, andavam-me os putos a chuchar no dedo de manhã à noite para enganar a fome!
 Mata-se um gajo aqui a trabalhar para quê? Isto tá bom é para os ladrões, pá! Um gajo assalta um banco, no dia a seguir já tá cá fora. É uma maravilha! E quanto mais roubares melhor! Olha lá aquele cabrão do Benfica! Vê lá se ele não dorme descansado! Ligas a televisão e é só merda dessa! É políticos, é empresários, é advogados, é o caralho! Agora vai lá tu roubar um pão e vais ver a volta que levas! É a mesma merda que os impostos, pá! Não pagas a horas, tás fodido. Mas se for o Estado que te deva a ti, tas fodido na mesma! Mordes o esquema? Tás sempre fodido, é o que é, pá! E nem piu!
 Sabes o que é que eu te digo? Fazia cá falta era outro Salazar! Punha esta merda na linha que era um foguete!
 Com o ordenado que eu tenho vai lá tu pedir um crédito. Mandam-te ir apanhar no cu e ainda se riem na tua cara! Por isso, olha, quinhentos aerios todos os meses para as unhas da senhoria e uma casa minha, nem um tijolo!  
 Mas depois vem o caralho dos ciganos e
 bumba
 toma lá uma casa nova, ó Tarota! 
 E aqui o Chico, que se foda! Se quiser uma casa que a compre! Alomba que nem um burro, que até se amola, e quando vai ao banco perguntar como é que funcionam a coisas dos créditos, olham para um gajo de sobrancelhas em arco como que a dizer
 - Ó amigo, só de olhar para a sua camisa, digo-lhe já que isto tá mau de créditos! 
 Olha que caralho, hem!
 E ainda por cima nunca estão satisfeitos, os cabrões dos ciganos! São como os porcos, deita-lhe palha limpa, mas vão-se é espojar na estrumeira! 
 É uma merda, pá!
 Tudo aumenta, tudo aumenta, só o ordenado de um gajo é que parece a picha de um velho! Só quando é para caçar votos é que aparecem a prometer este mundo e a cabeça do outro. Foda-se! Vão pó caralho! Encostá-los à parede ainda era pouco! Mas os portugueses são muita burros, pá, graças a Deus! Já tínhamos feito uma revolução à séria! Olha, o que fazia cá falta era uma guerra civil! Vê lá os espanhóis onde é que eles tão. Ou atão uma merda maior ainda! Vê lá alemães. Foderam-se duas vezes e duas vezes vieram à tona. São como os cagalhões, os sacanas! Não se afundam nem à pedrada. 
 Agora aqui? Oh, pá! É levar no cu desde que nasces até que morres! E depois de morto só não te enrabam se não puderem! tás-te a rir? Sabes quanto é que gastámos com a morte do meu velho? Quase trezentas biscas, pá! Não tivesse ele deixado uns trocos e tinham-no enterrado na vala comum! É como eu te digo, ó Calisto! Isto tá bom é para os gatunos, pá!
 Se não fosse cá por merdas assaltava um banco! Mas bater com os costados na pildra e sujeito e a apanhar sabonetes! Foda-se, tá quieto! A merda toda é essa! Senão a ver se não era!
 Eu não sei onde é que isto vai parar, pá! Os putos, não têm educação nenhuma. Mandam mais eles que os pais! Na escola fazem o que lhes apetece. Se um professor lhe espeta um tabefe no focinho tá mais fodido có caralho. Havia eu de dar ao meu pai certas respostas que às vezes ouço para ai! Levava um avio de cachaporra pelos cornos abaixo que dava para o mês todo! Mas de quem é a culpa? Claro que é dos pais, pá! Dos pais e da merda dos psicólogos! Isso é outra raça que anda para aí a encher o cu à custa dos pacóvios! Eu bem gostava de saber se na casa deles os filhos fazem o que lhe dá na telha e é só conversinhas mansas, como na televisão. Gostava de saber se na casa deles não se grita. Urtigas no cu dos outros são malvas! Hoje não se pode fazer nada aos meninos! Senão ficam todos traumatizados. Coitadinhos! Levei poucas, eu! E ainda aqui ando! E digo-te que se levasse mais não tinham sido mal dadas! Sabes como é que dizia o meu pai? “A porrada não educa, mas conserva”. É como te digo, pá! Só se perdem as que caem no chão. Levassem eles umas lamparinas na trombil quando as pedem e não se via a pouca vergonha que se vê hoje! 
 Ó Calisto, não me fodas, pá! Atão mas antigamente havia respeito aos mais velhos e hoje não há porquê, caralho? Deixam-nos fazer tudo! Depois ficam como aquele puto do anúncio, que só dá vontade é de lhe dar duas bolachadas no focinho! E a ele e à mãe! Tem côdea! Foda-se! Tem côdea? Tivesse eu côdeas quando tinha a idade dele, pá. Vim de Angola num barco carga, com sete anos fui viver para a Charneca, para uma barraca de contraplacado, que aos meus velhos ninguém deu casa! Brinquedos eram pedras e paus, e aos onze, obras com ele, que já tinha escola a mais! Isso é que é trauma, não é umas lambadas quando fazem falta! Por isso é que esta merda anda cheia de paneleiros, ou o caralho, que até mete nojo! Tem cona! Raios partam esta merda, pá! 
 Havia de ser um filho meu a torcer-me o nariz ao pão! Ao pão ou ao que quer que fosse! É de pequenino que se torce o pepino, ou não é? Os meus cá, assim que começam a levantar cachimbo, e ainda são pequenitos, levam logo pela medida grossa. Era o que faltava, um fedelho meu mandar em casa! Antes cagar um pé de merda que levar um filho meu a um psicólogo! É uma corja, pá! É o que eu te digo. Vai por mim! Olha, psicólogos e políticos, era pô-los todos num barco com uma machadada no casco! Foda-se! Eu é que devia mandar nisto, pá! Não sei onde é que isto vai parar, ó Calisto… mas antes que isto piore, manda ai vir mais duas, que agora pago eu. 
 

Segredo é segredo!

- Gostas das minhas maminhas?
 e eu a acenar sins com a cabeça
 a não dizer nada
 tinha jurado 
 não dizer nada
 quando a Ana Maria
 - Jura por Deus que não dizes nada a ninguém.
 e eu 
 que sim 
 com a cabeça
 que sim
 que não dizia 
 - … nada a ninguém.
 a cabeça por mim
 - Juro.
 “por Deus”
 (por quem mais)
 a cabeça, por mil palavras, como se dissesse
 - Fica só entre nós.
 porque a Ana Maria
 - Se jurares que não contas a ninguém, deixo-te mexer. Queres mexer, não queres?
 e eu logo
 que sim
 que sim
 com a cabeça
 “por Deus”
 que sim
 que queria 
 a não dizer nada
 jurado já 
 e a Ana Maria  
 - Gostas?
 e eu
 que sim 
 com a cabeça
 que sim
 “por Deus”
 - Juro.
 a cabeça por mim
 que sim
 que sim.
 Eu tinha sete anos e a Ana Maria… bem, não sei. Trabalhava lá em casa desde o meu aniversário
 Janeiro, portanto.
 Estávamos nas férias da Páscoa, quando ela
 - Queres ver as minhas maminhas?
 e eu 
 pela primeira vez 
 que sim
 que a cabeça 
 por mim
 que sim
 de cima da minha cama
 um verbo sequer
 nada
 a cabeça apenas.
 Eu 
 sete anos 
 e a Ana Maria… bem, não sei. Quando se tem sete anos a idade dos adultos é-nos confusa. E tirando os velhos, têm todos a mesma idade. Digamos que para uma criança de sete anos
 ou pelo menos eu com sete anos
 os adultos eram-no a partir dos quinze
 pelo menos o meu primo Ricardo já devia ser, visto fumar. Embora
  como a Ana Maria
 - Jura por Deus que não dizes nada a ninguém.
 quando eu
 no quintal
 com patinhas de gato
 o meu primo Ricardo
 - Jura por Deus que não dizes nada a ninguém.
 e eu
 com a cabeça
 “por Deus”
 (por quem mais)
 que sim
 que não dizia 
 - …nada a ninguém.
 Portanto, a Ana Maria, adulta, como os meus pais, o meu tio Almiro, a minha tia Cila, o meu primo Ricardo
 já que fumava
 quinze anos
 e me dizia
 além de 
 - Jura…
 - A tua empregada, puto, dá-me cá uma ponta!
 e eu acenava que sim com a cabeça
 sem entender ponta 
 como sem entender ponta quando
 o Ricardo
 a fazer-me companhia nas férias.
 Não a mim
 sei-o agora
 à Ana Maria 
 que 
 - …dá-me cá uma ponta!
 e por
 sei-o agora
 seio agora
 que
 (- Queres ver as minhas maminhas?)
 a Ana Maria
 dezoito anos, talvez vinte
 Quando se tem sete anos a idade dos adultos é-nos confusa. E tirando os velhos…
 a Ana Maria
 sei-o agora
 gostava mais de mim que do meu primo Ricardo, pois nunca lhas havia mostrado. Nunca lhe havia perguntado
 - Gostas das minhas maminhas?
 sei-o agora
 porque um juramento com a cabeça não vale, não é? Espero que Deus entenda assim
 que a Ana Maria entenda que sim
 um descuido
 como um espirro
 juro que como um espirro
 “por Deus”
 que como um espirro
 - Juro.
 - Juro que a Ana Maria não me põe em cima da cama e me mostra as maminhas para eu mexer.
 - Quê, puto?
 o meu primo Ricardo
 - Quê, puto?
 obrigando-me a jurar de novo
 e eu
 “por Deus”
 (por quem mais)
 - Juro por Deus que não me deixa apertar assim…
 (a exemplificar com as mãos)
 deixando o meu primo Ricardo de boca à banda
 a jurar por Deus que
 - … nada a ninguém.
 - Juro.
 Afinal eu também jurara que ele
 quinze anos
 adulto
 portanto
 - … não fuma no quintal às escondidas, tia. Nem na garagem. Juro por Deus. 
 Afinal um segredo é um segredo!

Se eu fosse a contar…

- Tanta vez que eu levei aqui a sô dona Amália! Tanta vez! Nem queira a menina saber. Sempre que precisava de um táxi ligava lá para a central
 (ela não, a menina Estrela)
 mas é a mesma coisa
 ligava lá para a central
 (que na altura não havia cá telemóveis)
 e mandava vir o Pires. 
 - Tanta vez!
 - Era uma senhora. Coitadinha! É assim a vida! Vão-se embora os bons e os maus ficam cá, para semente, que é boa! Anda tudo ao contrário! Mas o que é que se há-de fazer. Deus é que sabe. Olhe, que lhe tenha lá alminha em descanso! 
 - Tanta vez, menina! Tanta vez!
 - Olhe, uma vez, eram quatro da manhã
 (nunca mais me esqueço, tinha ido levar um cliente à Artilharia 1) 
 ligaram-me para o rádio para ir à Rua de São Bento, 193. Já sabia para quem era. Meia hora depois arrancávamos para o Porto.  
 - Tinha uma confiança em mim, que a menina nem calcula! Sei de coisas que nem os melhores amigos dela sonhavam! E o que já insistiram comigo para escrever um livro!? Calhando, ficava rico! Mas eu quero lá saber do dinheiro! Olhe, tenho uma casa paga, o carro é meu, uma filha formada, que já me deu dois netinhos
 (são estas duas jóias, aqui ao lado do S. Cristóvão)
 de modo que o dinheiro… 
 - Há coisas que não têm preço, menina. Não concorda? Obviamente! É uma riqueza que está aqui dentro e vai comigo para a cova. Por isso, quando a malta amiga
 - Ó Pires, porque é que não escreves um livro com essas coisas, pá?
 eu logo
 - Não!
 E não! Por dinheiro nenhum! Olhe, só se fosse pela saúde destas duas joínhas que aqui estão. Nem pela minha. Pode a menina acreditar. Nem pela minha! Segredo é segredo. Pelo menos cá comigo é assim. Quero chegar lá acima de consciência limpa, piscar o olho à sô dona Amália e receber aquela gargalhada que dizia
 - Ó Pires, só você para me aturar estas coisas todas, homem!
 - Ai, que saudades, meu Deus! 
 - Bem, não importa! O que lá vai lá vai. Como a sô dona Amália dizia, e muito bem, “ninguém foge ao seu destino”, e o meu, olhe, é este, andar de cá para lá a levar histórias de um lado para o outro. Mas se eu fosse a contar… ai Jesus! Caía outra vez o Carmo e a Trindade. Olha, olha! O coronel Baptista Lima… ui! Dava cá um livro! Mas não. Fica cá dentro que está muito bem. Ou pensa que foi para o Porto sozinha, naquela noite? Ah! As pessoas sabem lá! Os artistas são homens e mulheres, como toda a gente. Têm é de se abrigar mais, que senão comem-nos vivo. É por essas e por outras que aqui o Pires não quer outra coisa que esta vidinha discreta. Às vezes é complicada. E de que maneira! Mas não trocava isto por nada, menina. Acredite que não. E quem me tirasse este carrinho das mãos era abri uma cova e chutar-me lá para dentro. Mas ser artista… Não! Eu sou dos bastidores. Olhe, ainda fiz teatro, quando era novo. Entrei numa peça com o mestre Eugénio Salvador, que Deus tenha, no Maria Vitória. A menina já não é desse tempo. Mas não dava para aquilo. Tinha de trabalhar, e depois os ensaios… Enfim! Entretanto conheci a minha Elvira e, olhe, o teatro foi outro. Ah,ah,ah… Ai, ai! Mas prefiro assim. Vejo muito, falo é pouco!
 - Falei na sô dona Amália porque causa do fadinho que passou. Ainda hoje, e os anos que já lá vão, sempre que a ouço na rádio, fico todo arrepiado. Olhe, de estar a falar nisso. Mas o que não faltam são artistas que eu já levei aqui, menina! Quer dizer, aqui não, que este é novo. Era um outro Mercedes, um 300 Diesel. Aquilo sim era uma máquina! Não é que me possa queixar deste 
 (Mercedes é Mercedes)
 mas já não se fazem carros daqueles. Sabe quantos anos trabalhou ele nas minhas mãos? Todo o santo dia, que nas folgas ia sempre dar uma volta com a patroa a e filha? Vinte e cinco! É verdade! Vinte e cinco anos, menina! E sabe quantas vezes é que me deu problemas? Uma. Um furo! Ah,ah,ah… Ai, ai! Até dava gosto! Para mim era família. E quando tive de me desfazer dele, foi como se me tivesse morrido um irmão. Até chorei. Palavra de honra, menina! E olhe que fiz duas campanhas na Índia. Isto pode parecer parvo, mas era um companheiro. Passei mais horas com ele do que com a minha mulher. Olha, olha! Se fosse a fazer contas: dias de trabalhar doze, catorze horas. Semanas sem folgas, que isto a vida não era simples. A malta nova hoje queixa-se, e a menina desculpe, mas sabem lá o que isto já foi.
 - De modo que não é este, mas… A gente que aquele menino conheceu! Olhe, aquele é que se soubesse escrever tinha mais histórias que o Diabo! Que um homem aqui à frente vai de olhos na estrada. Nem sou cá pessoa de espreitar pelo retrovisor. Se falarem comigo, tudo bem, senão, vou aqui no meu cantinho, caladinho que nem um rato. Ouço as notícias, e tal. O resto também interessa pouco. Até a rádio já não é o que era. Dantes era uma companhia, agora… O que é bom acaba depressa. Sabe? Tenho saudades é dos Parodiantes! Ah,ah,ah… Esses andavam sempre comigo para todo o lado. E cheguei a transportar alguns. Não me lembro agora é do nome de nenhum. Bem, não importa. Mas aquele menino se soubesse escrever… Ui! As coisas que às vezes se fazem nos bancos de trás dos táxis. Imagino!
 - Olha-me para este agora. Anda lá com isso, pá! Cartas da farinha amparo! Hoje qualquer um tem carta! Por isso é que isto anda tudo entupido e é só acidentes. No meu tempo, menina, para se tirar a carta até aulas de mecânica tínhamos de ter! Mas não era cá aprender a mudar pneus! Era mecânica! Agora, desde que se pague, toma lá e faz-te à estrada. Tenho mais medo de certos tipos que andam na estrada que do Diabo!
 - Mas como lhe dizia, menina: Tantos! Nunca mais daqui saíamos. Olhe, só para ter uma ideia: Raul Solnado; Carlos do Carmo; o falecido Ary dos Santos; a Beatriz Costa, coitadinha, que Deus também já lá tem; o grande Tony de Matos, outro que também já lá está. Tantos, menina! Olhe o Badaró. Esse nem sei se ainda é vivo ou não. Já não é do seu tempo. Ainda se lembra!? É o do limpa o pó, é. Era um prato, esse malandro. A Ivone Silva. Ai, do que eu me fui lembrar! Uma vez apanhei-a à porta do ABC, valha-me Nossa Senhora, nem sabia onde morava… Foi o saudoso José Viana que a teve de ajudar a entrar no táxi, que vinha às arrecuas. 
 - Não é assim, ó Ivone! 
 parece que o estou a ouvir
 e ela
 - É assim é. É para trás que mija a burra!
 Era uma senhora!
 Tantos, menina! Tantos! Nunca mais daqui saíamos.

Sunday, November 16, 2008

Olha o passarinho

- Está ali um pente e um espelho se quiser dar um jeitinho ao cabelo.

o fotógrafo…

corrijo

o retratista

(camisinha às flores)

a indicar-me com o dedo

(acusador)

como que a obrigar-me, ou à vergonha em mim, a dar

- … um jeitinho ao cabelo.

que

de cabelo no ar

(embora o não dissesse)

lhe estragava arte

que os fotógrafos

corrijo

os retratistas

crêem-se uns artistas

por isso

- Está ali um pente e um espelho…

(se quiser)

na ponta do dedo

(acusador)

- …um pente e um espelho…

(só se quiser, está claro)

na subtileza da comunicação, a ouvir-se

- Que de cabelo no ar estraga-me a arte.

ou

- Depois não se venha cá queixar que ficou com cara de porco-espinho!

e tudo isto no bouquet paralinguístico de

- Está ali um pente e um espelho se quiser dar um jeitinho ao cabelo.

De modo que eu

dois passinhos para o toucador

(no silêncio dos obedientes)

onde

- … um pente e um espelho…

e o meu reflexo, contrariado, à espera de mim para

- …um jeitinho ao cabelo.

O pente

bidimensional

dentes finos, dentes grossos

deitado sobre o naperon

de olhos baixos, nu, envergonhado

cheio de cabelos e caspa

a pedir-me desculpa

(prostituta entre dois fretes sem tempo de passar pelo bidé)

no embaraço próprio dos objectos sujos

conforme um espelho reflectindo o dono.

E eu a estender-lhe a mão

embaraçado por embaraçá-lo, a fingir que

nojo nenhum, importância alguma

(Coitado, não tinha culpa. Tinha era caspa, com cabelo, como muita gente!)

a pegar nele

e o pente

retraído

a mudar de cor

embaraçado

não obstante eu

- Tem de ser amigo.

a levá-lo à cabeça num gesto só

a fingir que

nojo algum, nenhuma importância

apesar das voltas do estômago

como se o pente uma garfada de mioleira pela goela abaixo, provocando-me arrancos de vómito, contracções na cárdia.

E nisto

um risco ao meio, perfeitinho, porque o cabelo a afastar-se sozinho

de mãos na boca, contendo o vómito

como o mar vermelho

metade para cada lado

com nojo de Moisés

enquanto o fotógrafo

corrijo

o retratista

(calcinha vermelha)

faraó impiedoso

procurando lentes, olhos de Rá, a umbela, pequeno pálio contra a luz forte do deserto

(salinha a que chamam estúdio)

(…uns artistas)

à espera que eu acabasse de dar

- … um jeitinho ao cabelo.

E de volta à salinha

(a que chamam estúdio)

(jeitinho dado)

o dedo acusador apontado ao centro, ao banquinho de enroscar

desenroscar

de s’ enrascar

desenrascar

o banquinho

ao centro

diante de um painel de palmeiras, gaivotas e mar

onde eu

jeitinho dado

risquinho ao meio

a tomar lugar

direito

a julgar que

direito

pois o fotógrafo…

corrijo

o retratista

(sandalinha de couro)

a dizer

- Um pouco mais para a direita.

- Já foi demais.

- Para a esquerda agora.

Numa indecisão parlamentar

- Endireite a espinha.

E eu com vontade de lhe gritar

- Quem tem espinha são os peixes.

a endireitar a “espinha”

(no silêncio dos obedientes)

não como ele queria

que os artistas nunca estão satisfeitos

a aproximar-se de mim

camisinha às flores

calcinha vermelha

sandalinha de couro

a aproximar-se de mim com dois polvos de cinco tentáculos, colando-se-me à cabeça, fazendo força

- Assim.

e sem que eu me mexesse

- Não se mexa!

E eu com vontade de lhe gritar que não me tinha mexido, “maricas de merda”

camisinha de couro

calcinha às flores

sandalinha vermelha

que não me tinha mexido

com vontade de lhe gritar

- Quem tem espinha são os peixes.

A não me mexer

(no silêncio dos obedientes)

procurando evitar os tentáculos

perfumados

cheios de anéis e pêlos

paradoxo estético

e

apesar de não me mexer

um tentáculozinho a lamber-me o queixo

- Assim!

toquezinho de nada, importância das importâncias

que os artistas nunca estão satisfeitos

que os artistas

- Cuidado, que me estraga a arte!

que os artistas

- Depois não se venha cá queixar que ficou com cara de Mário Soares.

Um toquezinho de nada e

- Está bom. Não se mexa agora. Isso. Vá, agora um sorrisinho.

e eu com uma vontade de sorrir tão grande quanto de engolir uma caixa de pregos

a forçar as bochechas

(no silêncio dos obedientes)

- … um sorrisinho.

a imaginar um polícia para mim

- … um sorrisinho.

desconfiado

porque a fotografia a não corresponder à minha cara, onde

sorrisinho nenhum

de modo que a fotografia sorridente a ter de pôr uma cara séria, carrancuda, a imitar-me, a colar-se a mim, para não me arranjar problemas com a autoridade

porque os artistas

o fotógrafo…

corrijo

o retratista

(cabelinho pelos ombros)

a insistir

- … um sorrisinho.

E eu com vontade de lhe gritar

- Quem tem espinha são os peixes.

a forçar as bochechas

(no silêncio dos obedientes)

a descolar os lábios

a imitar um sorriso

diferente de sorrir

imitar apenas

a não querer estragar-lhe a arte; para que depois não me fosse lá queixar que ficara com cara de sapo penteado e

(no silêncio dos obedientes)

a olhar para o passarinho

quando

- Agora olhe para o passarinho.

Passarinho, aonde?

anéis e pêlos

paradoxo estético

cinco tentáculos

ardil manhoso

que os passarinhos não têm tentáculos

que os passarinhos não têm anéis nem pêlos

nem paradoxos.

De modo que passarinho nenhum

passarão

não passarão

passarola

passareta

borboleta

pianola

borbotão

de patinha no botão

- Agora olhe para o passarinho.

E eu com vontade de lhe gritar

- Quem tem espinha são os peixes.

a olhar para os tentáculos penados

anéis e pêlos

direito no banquinho de enroscar

desenroscar

de s’ enrascar

desenrascar

o banquinho

ao centro

diante de um painel de palmeiras, gaivotas e mar

onde a brisa a ameaçar-me o cabelo, o risco, o penteado

de bochechas forçadas

sujeito a arranjar problemas com a autoridade

fixando o pintassilgo

o pintarroxo

o pintainho

até que

Flash

a deixar-me cego

gravado na chapa

com cara de porco espinho

Mário Soares

sapo penteado

que o artista

corrijo

o maricas de merda

camisinha pelos ombros

calcinha de couro

sandalinha às flores

cabelinho vermelho

bem me deu a entender

- Depois não se venha cá queixar…

Agora ou Nunca

Olhava com inveja para as barrigas vaidosas das grávidas que se passeavam felizes pelo jardim da Estrela, quando

- Importa-se que fume?

a rouquidão de uma voz, ainda mal se havia sentado no banco que passámos a ter em comum.

Não me importava. Não estava grávida. Infelizmente nenhum motivo para

- Preferia que não.

- Estou farta desta merda! Tenho quase quarenta anos

(na verdade apenas trinta e cinco)

e não consigo engravidar.

A Isabel aos gritos, num misto de frustração e desespero. Enquanto eu

a ouvi-la e pouco mais.

Também eu queria um filho…dela!

- Quero fazer um teste de fertilidade. Quero saber se sou seca! Quero saber se o castigo é meu!

num misto de frustração e desespero.

- Esteja à vontade!

respondi, quase sem tirar os olhos de um vestido salmão que se arredondava sobre o ventre de outra mulher que por ali passava

(cabra)

de braço dado.

- Se o problema for meu, deixas-me?

o Paulo a perguntar-me com um olhar de cachorro preso à matricula diminuinte do carro dos donos.

- Claro que não! Estás parvo?

foi a resposta da Isabel, ganhando coragem para fazer a mesma pergunta.

- Eu também não! Nunca, Tolinha!

tomando-a nos braços e rematando

- Por isso não vale a pena castigarmo-nos com a verdade. Não importa de quem é o problema. É nosso. Basta. Não quero que te agonies, nem me quero agoniar eu.

Mas para mim não bastava. Queria sabê-lo. Queria-o quase tanto quanto a um filho. E por isso agoniava-me; agoniava-o. E no limite do desespero

A Isabel aninhar-se-me nos braços e, apesar de não satisfeita com a proposta, a deixar-se ficar em silêncio à espera do silêncio húmido dos meus lábios. Tentámos mais uma vez!

- Fuma?

a voz, desconcertante, estendendo o maço na minha direcção.

A coisa parecia descontrolada. Devorávamo-nos até ao limite do possível, num desespero incompreensível à razão. O desejo era tal, e tal a sofreguidão, que foi a melhor vez da minha vida; apesar de não o termos feito um com o outro. Eu, com uma fantasia selvática tornada realidade, e a Isabel, com o desejo enraivecido se ser mãe.

(Era agora ou…

- Não costumo… mas aceito um, sim!

Afinal de contas, nenhum motivo para

- …não.

e uma mão morena com uma chama na ponta avançando na minha direcção. E o cheiro a tabaco a misturar-se com um perfume quente que me entrou pelas narinas adentro despertando-me um desejo desconhecido. Estava aceso o instinto; o cigarro também.

- Nunca me deixas, Paulo?

- Claro que não, tolinha!

E mais saliva e mais suor e mais pêlos da carpete colados à humidade dos corpos (…)

… ou nunca!)

Eu sabia o problema não ser meu. Não que alguma vez tivesse feito um espermograma na vida, mas porque

- “Ou tu casa com a Rosinha, ou eu te mato, desgraçado!”

as palavras sentenciosas do pai da rapariga (da moça, melhor será dizê-lo) mal a barriga da filha se começou a tornar indiscreta. Uma aventura sem importância, um par de vezes: uma tarde, uma noite ou duas, que me obrigou a fugir da Baía sob ameaça de morte.

- Quando olho para estas crianças a correr de um lado para o outro, sinto uma vontade enorme de ser pai.

a voz do companheiro de banco e de fumo, envolta na neblina do cigarro, que já não fumava desde os tempos do Liceu Francês, a trazer-me de volta à Estrela, ao banco, ao seu lado. Parecia ter voado com o fumo, até à idade em que os sonhos e a realidade são uma e a mesma coisa, mas aquela voz pétrea rebentou a bola de sabão em forma de ventre prenhe que me envolvia os sentidos, no preciso momento em que as minhas mãos mentais se dirigiam descontroladamente para o pescoço da rapariga de salmão que tornava a passar. Parecia que de propósito para me provocar.

Cabra!

Cabras! Todas!

Tinha vontade de as espancar, de lhes arrancar a beleza das faces plenas de felicidade à chapada, mas… porque a voz

- Quando olho para estas crianças…

eu

- Como disse?

- Quando olho para estas crianças a correr de um lado para o outro, sinto uma vontade enorme de ser pai.

Duas semanas depois, sob o pretexto de ir tratar dos papéis para o casório, apanhei um autocarro e mil e duzentos quilómetros depois, num avião para Portugal.

- A senhora tem filhos?

- Tenho dois! - menti, no meio de duas passas denunciadoras.

- A vida nunca me deu essa felicidade! - e puxando fumo, acrescentou de peito cheio: - Mas ainda não perdi a esperança! - olhando-me desarmante para a alma nua.

Era agora ou nunca! Caídos um para cada lado do chão onde

exaustos, encharcados, plenos…

Eu na minha virilidade de macho; Isabel na sua maternidade de fêmea.

- Nunca me deixas, Paulo?

- Claro que não, tolinha!

Há coisas que não se explicam e… A tarde começava a acinzentar e o vento tinha tomado a forma de uma mão sob a aba do meu vestido, ali onde a coxa começa e a penugem se arrepia ao mínimo contacto. Quando dei por mim o banco tinha desaparecido e, no seu lugar, o alto miradouro do jardim, onde aquela voz rouca, um cavalo a galope pelas colinas das minhas espaldas acima, num encaixe completo até à medula dos ossos.

Hoje terá nove anos. Menino ou menina! Não sei. Creio que não vou saber nunca. Tal como

saber nunca

se meu ou não

pois apenas um par de vezes: uma tarde, uma noite ou duas

apesar de ela

- Por tudo o que há dji mais sagrado que é seu, Paulo! - lavada em lágrimas.

Nestas coisas as mulheres não se enganam.

As minhas mamas famintas de leite enchiam a cada investida e o meu ventre morto respondia a cada massagem cardíaca que aquele estranho paramédico me ministrava. Não sei explicar. Não quero explicar.

Foi uma loucura aquela noite!

Foi uma loucura aquela tarde!

No mês seguinte o período não veio e no lugar dele uma sensação de intraduzível felicidade. Um exame de farmácia confirmou o anseio, e dois meses depois a ecografia dava-me a melhor das notícias.

- São dois!

podia dizê-lo agora sem mentir quando alguém

- …tem filhos?

Não podia nem acreditar. Isabel estava grávida e eu ia ser pai!

- Só pode ter sido feito daquela vez! - assegurava o Paulo numa excitação infantil.

E eu

- Claro que foi, tolinho!

Afinal… quem poderia saber?!

Nestas coisas as mulheres não se enganam.

Monday, October 27, 2008

Vertigem

Depois que a Soraia me trocou por aquele taxistazinho de merda a vida perdeu o sentido.

- Olha que essa gaja não é boa rês, pá! - o pessoal do snack-bar a avisar-me.

- Também para o que é! - defendia-me eu, indiferente

aparentemente indiferente

mal sabendo, ou querendo admitir, que já estava vidrado na curvas desastrosas daquele corpo.

- Olha que já deu a volta a uns quantos pategos aqui no bairro, Chico! - o pessoal a insistir. Principalmente aqueles que nunca se haviam acidentado nas curvas de morte da Soraia. Maldita seja!

- Dizem até que foi por causa dela que o Victor se matou, pá.

- Uns fracos, pá! - afirmava eu, todo galo. - Gajos que não sabem lidar com uma mulher! E enchia a boca para

- Uns fracos, pá!

e num inchar de peito ainda acrescentava

- Uma mulher é uma mulher, pá! Não tem nada que saber.

Até que a Soraia a afastar os joelhos e eu

- Uns fracos, pá!

a não saber lidar com ela

- Olha que nem todos os carros são para todas as mãozinhas! Passa lá uma bomba para as mãos de um nabo e logo vês o que lhe espera.

E a Soraia um carro de competição com 800 cilindros em triplo W.

- Olha que aquilo não vem com kit de unhas, Chico! Ou tens “mãozinhas” para a gaja, ou vais direitinho à parede que até te amolas.

E os joelhos da Soraia a afastarem-se na minha direcção

uma velocidade vertiginosa

estrada em bico

a afunilar

a afunilar

em direcção ao precipício

e eu

um franguinho com vertigens à beira do abismo

da boca do inferno.

E ela

… Soraia. Maldita seja!

a perceber que eu não tinha mãozinhas para aquilo

um nabo

mas enquanto lhe deu pica gozar o pacóvio, que todas as sextas e sábados aos bifes da Trindade

tudo muito certo

uma lady

e eu de peito inchado,

todo galo

franguinho com vertigens à beira do abismo

a passeá-la à porta do snack-bar, ao fim da noite, onde os outros, invejosos, babados, lhe mandavam olhares às ancas e piadas a meu respeito.

- Então, ó Chico, já nem falas à malta?!

e eu

que já nem falava à malta

nem um gesto de cabeça; uma piscadela de olho

nada

a andar, a andar

inchado que nem um peru

todo galo…

(franguinho com vertigens à beira do abismo)

Mas agora…

agora que aquele taxistazinho de merda a levou, sei lá para onde, acabou-se tudo. A voltarem-me à ideia as palavras do Calisto

- Dizem até foi por causa dela que o Victor se matou, pá.

as do Necas

- Ou tens “mãozinhas” para a gaja, ou vais direitinho à parede que até te amolas.

E o taxistazinho de merda, mais habituado a grandes andamentos

de certeza mais habituado a grandes andamentos

de manhã à noite com um Mercedes na patuças

a levar-ma, sei lá para onde…

a deixar-me um vazio enorme

cheio de ecos

onde as palavras do Calisto

- Dizem até foi por causa dela que o Victor se matou, pá.

- … foi por causa dela que o Victor se matou, pá.

- … o Victor se matou, pá.

- … se matou, pá.

a dar-me vontade de morrer

aqui

neste quarto vazio com barba de cinco dias, a português suave e latas de salsichas com pão de forma e vinho de pacote, que é só o tempo de descer ao supermercado

a horas que não me vejam

a horas que ninguém

- Então, ó Chico, já nem falas à malta?!

só o tempo de descer ao supermercado

e

tau

o que calhar e uns cigarros.

Neste quarto vazio

(cama e armário)

alugado ao segundo

que isto aqui não é uma pensão

- Olhe que isto aqui não é uma pensão!

a dona disto que não é uma pensão, à porta, a avisar-me

- Olhe que isto aqui não é uma pensão!

a dar-me ganas de lhe apertar o papo

de lhe berrar bem alto

- É um ninho de putas. É o que isto é!

a não dizer nada

a deixar-me ficar

no canto vazio do quarto

(cama e armário)

que para amar nem é preciso tanto

afinal

- Uma mulher é uma mulher… Não tem nada que saber.

e pelo visto até tem

- Ou tens “mãozinhas” para a gaja, ou vais direitinho à parede que até te amolas.

as palavras do Necas no eco surdo do quarto

alugado ao segundo pelo taxímetro da velha que

- Olhe que isto aqui não é uma pensão!

e ao dizer taxímetro

a começar tudo de novo

a Soraia, o snack-bar, a Trindade, a pensão

- Olhe que isto aqui não é uma pensão!

- Já sei que não é uma pensão, foda-se!

… um ninho de putas. É o que isto é!

a deixar-me ficar

na esperança desesperançada que volte

que entenda que eu

Chico

o homem da vida dela

na esperança desesperançada que o taxistazinho de merda a abandone

que as mulheres abandonadas regressam sempre aos braços encornados dos pacóvios que as choram em pontas.

A deixar-me ficar

numa vontade de morrer

a horas que não me vejam

neste quarto de cinco dias, só, com barba de tempo a descer, suave, ao vazio… tau… uns cigarros. Português de forma, de pacote, de supermercado salsichas de pão e vinho de latas…o que calhar.

aqui

no canto

vazio

onde uma barata

passeando-me pelas biqueiras das botas, sem respeito algum

(como o pessoal do snack-bar se me visse agora

Português sem forma, barba de cinco quartos, salsichas de pão e vinho suave, tempo em lata, dias de pacote

o que calhar e uns cigarros)

respeito algum

a barata

pelas biqueiras de mim, ou das botas

como se eu não mais que um obstáculo no caminho

eu não mais que um obstáculo no caminho

que uma barata faz lá ideia o que é um homem

um franguinho com vertigens à beira do abismo

à boca do ralo do polibã

agora

repleto de cabelos e pêlos fossilizados em restos de sabão, onde a barata

agora

ou eu

a barata

agora

em movimentos de antenas, à procura dos pêlos dela

… Soraia. Maldita seja!

Quais os dela? Quais o meus? Quais os de toda a gente que por aqui passou antes de nós, que

- …isto aqui não é uma pensão!

… um ninho de putas…

já sei

num desespero, perdido

Quais os dela? Quais os dela? Quais os dela?

em movimentos de antenas

a barata

ou eu

a barata

Quais os dela? Quais os dela? Quais os dela?

Que frustração! Nem um resto do seu corpo a ser-me permitido

um fio ondulado de saudade… Nada!

Confundi-me com ela, com meia cidade, com meio mundo... meia pensão…

e que resta de nós…

um monte de pentelhos no ralo, misturados com o sebo e sabão…

o abismo

o ralo aberto

movimento de antenas

um medo que vem de dentro

de mim

do ralo

de onde um frio

uma dor

um silêncio de gargalhadas pelos quatro cantos do quarto

vazio

a arrepiarem-me a couraça

nua

gelada

numa vertigem de abismo à boca do ralo

à boca do inferno

de onde um eco

profundo

nas minhas antenas à toa

vindo das entranhas da cidade

me repete

- Dizem até que foi por causa dela que o Victor se matou, pá.

- … que o Victor se matou, pá.

- … se matou, pá.