Friday, December 19, 2008
O fantasma da Madalena
festa de anos
chamava-se Odete e
como eu
estava sozinha.
A Edite, amiga de longa data
(do tempo já da 5 de Outubro, quando o escritório ainda rejeitava clientes, por “excesso de trabalho”)
sempre teve queda para padroeira do encalhados. De modo que
a não me admirar
se ela
- Tens de conhecer o Óscar.
falasse nestes termos à amiga
… Odete.
- Divorciado faz dois anos.
(trabalhinho arranjado pela padroeira Edite)
- Não tornou a ter ninguém.
Um caso ou outro mal sucedido, que a Madalena nuca saiu por completo lá de casa
ou de mim, quando eu lá em casa.
(mas esta parte a Edite a omitir)
apenas
- Divorciado faz dois anos.
e
- Não tornou a ter ninguém.
Pois o facto de a Madalena nunca (…) por completo…
…lá de casa
a fazer com que
de cada vez que uma mulher no 3º esquerdo
(não digo o número)
da Rua de Arroios
o fantasma da Madalena
- É impressão minha ou cheira-me a puta!?
e o amor
ou a carência que o parece
a sair gorado.
Duas apenas, em dois anos
uma por ano, numa análise estatística
embora nenhuma mais de duas semanas, que o fantasma da Madalena
(casada já, e com um filho que nunca lhe fui capaz)
a ironizar de nariz torcido
- É impressão minha ou cheira-me a puta!?
Por isso, quando a Edite
- É o Óscar. É a Odete.
o meu estômago a ficar nervoso
não por ela
mas porque a história a tentar de novo
e o fantasma da Madalena
“Alerta”
como um escuteirinho irritante
a
- É impressão minha ou…!?
razão porque eu
o meu estômago
a ficar nervoso
porque um homem
se homem
- Divorciado faz dois anos.
não tem como
- Não faz o meu género.
pois dá logo vontade de perguntar
- Ai não?! E que género é o teu?
No fim de contas foi a Madalena quem
- Quero o divórcio.
a Madalena quem
distante há muito
um pé dentro, outro fora
embora sempre
- É impressão minha ou cheira-me a puta!?
De maneira que
se eu
- Não faz o meu género.
capaz de os narizes todos
- Ai não?!
a torcerem as ventas
- E que género é o teu?
Pelo que
apesar do estômago nervoso
a passar a noite na conversa com a Odete. Diferente de mim: dia e noite, preto e branco, cara e coroa… alegre, gordinha, gargalhadas de copos pela cristaleira abaixo, enfermeira em São José, solteira
- … e boa rapariga.
como achou graça dizê-lo.
Toda ela clichés. Como eu todo clichés. Só que ela clichés alegres, gordinhos
vidros em estilhaços
e eu
cinzento, gravata azul, camisa sem cor, como as cuecas velhas do papá no estendal da marquise em Sete-Rios.
Mas a verdade é que
nessa noite
depois das velas e do champanhe
(porque qualquer gasosa é champanhe)
portanto
depois das velas e do champanhe
que o bolo a mim não me cai bem
nessa noite…
como hei-de dizer?
a Odete que
- Acho que já estou a ficar tonta!
a pegar-me no braço e, entre marteladas na cristaleira, a garantir-me
- Você é tão engraçado, Óscar!
a fazer-me sentir na obrigação de
- Trata-me por tu.
como se lhe levasse a mão ao interior da blusa e lhe soltasse a mola do soutien que lhe oprimia o peito
arrancando-lhe um suspiro
- Acho uma óptima ideia!
de maneira que
ao despedir-me
a Edite logo
- E tu, Odete, como é que vais?
puxando-me pela prontificação
e antes de a Odete
um táxi, ou coisa que o valha
eu logo
- Posso levá-la.
que na opinião da Odete
- … uma óptima ideia!
Num chover de copos pela cristaleira abaixo.
Há um mês que passa cá os fins-de-semana e já plantou uma escova no copinho da casa de banho. Ainda não é nada certo, mas há duas coisas que me fazem crer que é possível. Uma é a Odete não sair da cama a correr para ir lavar o amor ao bidé
não me rejeitando
não me expelindo de dentro dela para correnteza do Tejo
como as outras
a Madalena, talvez
não me lembro se a Madalena
depois de…
a Madalena
ou a torneira do bidé
numa cumplicidade secreta
para correnteza do Tejo
como as outras duas
que
mal acabávamos
- Vou só à casa de banho num instante.
Agora a Madalena não me lembro.
A verdade é que nunca um filho meu
(e agora
casada já, e com um filho que nunca lhe fui capaz)
dois abortos espontâneos
a própria palavra
espontâneos
a dizer tudo
a rejeitar-me atrasadamente
enquanto a Odete
depois de nós (…)
a ficar
gargalhando alto
por tudo e por nada um desastre de copos pela cristaleira abaixo
- És tão engraçado, Óscar!
a não sair da cama a correr
a não
- Vou só à casa de banho num instante.
a achar tudo
- … uma óptima ideia!
a rir
gordinha
feliz.
A outra coisa
das duas que me fazem crer que é possível
é o facto do fantasma da Madalena nunca mais
- É impressão minha ou…!?
uma pontinha de nariz
de vez em quando
torcido, é certo
mas nunca mais
- É impressão minha ou…!?
assustado, é possível, pelo estilhaçar de copos da Odete
que não acreditava em fantasmas nem em palermices e está cá
parece-me
para ficar
o que eu
de certa forma
até acho
- …uma óptima ideia!
Isto tá bonito, tá!
Isto é mau, isto é mau, mas toda a merda cá vem parar! Isso é que eu sei! Se é mau, puta que os pariu, pá! Vão lá para a terra deles, ou o caralho! Temos de ajudar? Ó Calisto, foda-se! Eu sei o que é que estou a dizer, pá! Vim de Angola com uns calções, umas cuecas, umas meias, uns sapatos, uma camisa e um boné. Mas tás a brincar comigo ou quê? Eu sei o que estou a dizer, pá! Passei por elas!
Ajuda? Mas tu achas o Estado português tá interessado em ajudar as ex-colónias, pá? O Estado só ajuda aqueles que o ajudam a ele! Ou tu achas que têm poucos interesses por lá? Hum? É petróleo, é diamantes, é ouro, é o caralho! Têm tudo, aqueles gajos, pá! Logo não ajuda merda nenhuma, pá! Olha lá o Soares, esse verbo-de-encher… não andava lá aos diamantes, mais o caralho do filho dele, aquele cara cu mal fodido? Olha, quando caiu o helicóptero, o que é que andavam por lá a cheirar? Às zebras para fazer passadeiras, qués ver? Conta-me histórias! Olha, havia de ter sido eu e ficava lá! Essa é outra, pá. Se for um pobre a ter uma dor de barriga, caga-se todo e ainda o fazem limpar o corredor das urgências. Agora um burguês? Até o lhe limpam o cu com a aba da bata.
Só te dão um chouriço se lhes deres um porco. E tens de ser tu a matá-lo. É como os bancos, pá! Para te darem um tostão já tu lhes destes cinquenta. Ninguém te dá nada, pá! Agora, vou eu ajudar? Tá bem, tá! E quem é que ajuda a mim?
A mim? Darem-me uma casa a mim? Uma pouca de merda é que me dão, pá! As casas são para os gajos das barracas, que não mexem uma palha e ainda recebem subsídio! Eu trabalho, pá! Tenho três filhos e a mulher desempregada! Pago quinhentos aerios de renda, ganho oitocentos: comer, água, luz, gás… e já foste. Não fosse a minha sogra a dar algum, andavam-me os putos a chuchar no dedo de manhã à noite para enganar a fome!
Mata-se um gajo aqui a trabalhar para quê? Isto tá bom é para os ladrões, pá! Um gajo assalta um banco, no dia a seguir já tá cá fora. É uma maravilha! E quanto mais roubares melhor! Olha lá aquele cabrão do Benfica! Vê lá se ele não dorme descansado! Ligas a televisão e é só merda dessa! É políticos, é empresários, é advogados, é o caralho! Agora vai lá tu roubar um pão e vais ver a volta que levas! É a mesma merda que os impostos, pá! Não pagas a horas, tás fodido. Mas se for o Estado que te deva a ti, tas fodido na mesma! Mordes o esquema? Tás sempre fodido, é o que é, pá! E nem piu!
Sabes o que é que eu te digo? Fazia cá falta era outro Salazar! Punha esta merda na linha que era um foguete!
Com o ordenado que eu tenho vai lá tu pedir um crédito. Mandam-te ir apanhar no cu e ainda se riem na tua cara! Por isso, olha, quinhentos aerios todos os meses para as unhas da senhoria e uma casa minha, nem um tijolo!
Mas depois vem o caralho dos ciganos e
bumba
toma lá uma casa nova, ó Tarota!
E aqui o Chico, que se foda! Se quiser uma casa que a compre! Alomba que nem um burro, que até se amola, e quando vai ao banco perguntar como é que funcionam a coisas dos créditos, olham para um gajo de sobrancelhas em arco como que a dizer
- Ó amigo, só de olhar para a sua camisa, digo-lhe já que isto tá mau de créditos!
Olha que caralho, hem!
E ainda por cima nunca estão satisfeitos, os cabrões dos ciganos! São como os porcos, deita-lhe palha limpa, mas vão-se é espojar na estrumeira!
É uma merda, pá!
Tudo aumenta, tudo aumenta, só o ordenado de um gajo é que parece a picha de um velho! Só quando é para caçar votos é que aparecem a prometer este mundo e a cabeça do outro. Foda-se! Vão pó caralho! Encostá-los à parede ainda era pouco! Mas os portugueses são muita burros, pá, graças a Deus! Já tínhamos feito uma revolução à séria! Olha, o que fazia cá falta era uma guerra civil! Vê lá os espanhóis onde é que eles tão. Ou atão uma merda maior ainda! Vê lá alemães. Foderam-se duas vezes e duas vezes vieram à tona. São como os cagalhões, os sacanas! Não se afundam nem à pedrada.
Agora aqui? Oh, pá! É levar no cu desde que nasces até que morres! E depois de morto só não te enrabam se não puderem! tás-te a rir? Sabes quanto é que gastámos com a morte do meu velho? Quase trezentas biscas, pá! Não tivesse ele deixado uns trocos e tinham-no enterrado na vala comum! É como eu te digo, ó Calisto! Isto tá bom é para os gatunos, pá!
Se não fosse cá por merdas assaltava um banco! Mas bater com os costados na pildra e sujeito e a apanhar sabonetes! Foda-se, tá quieto! A merda toda é essa! Senão a ver se não era!
Eu não sei onde é que isto vai parar, pá! Os putos, não têm educação nenhuma. Mandam mais eles que os pais! Na escola fazem o que lhes apetece. Se um professor lhe espeta um tabefe no focinho tá mais fodido có caralho. Havia eu de dar ao meu pai certas respostas que às vezes ouço para ai! Levava um avio de cachaporra pelos cornos abaixo que dava para o mês todo! Mas de quem é a culpa? Claro que é dos pais, pá! Dos pais e da merda dos psicólogos! Isso é outra raça que anda para aí a encher o cu à custa dos pacóvios! Eu bem gostava de saber se na casa deles os filhos fazem o que lhe dá na telha e é só conversinhas mansas, como na televisão. Gostava de saber se na casa deles não se grita. Urtigas no cu dos outros são malvas! Hoje não se pode fazer nada aos meninos! Senão ficam todos traumatizados. Coitadinhos! Levei poucas, eu! E ainda aqui ando! E digo-te que se levasse mais não tinham sido mal dadas! Sabes como é que dizia o meu pai? “A porrada não educa, mas conserva”. É como te digo, pá! Só se perdem as que caem no chão. Levassem eles umas lamparinas na trombil quando as pedem e não se via a pouca vergonha que se vê hoje!
Ó Calisto, não me fodas, pá! Atão mas antigamente havia respeito aos mais velhos e hoje não há porquê, caralho? Deixam-nos fazer tudo! Depois ficam como aquele puto do anúncio, que só dá vontade é de lhe dar duas bolachadas no focinho! E a ele e à mãe! Tem côdea! Foda-se! Tem côdea? Tivesse eu côdeas quando tinha a idade dele, pá. Vim de Angola num barco carga, com sete anos fui viver para a Charneca, para uma barraca de contraplacado, que aos meus velhos ninguém deu casa! Brinquedos eram pedras e paus, e aos onze, obras com ele, que já tinha escola a mais! Isso é que é trauma, não é umas lambadas quando fazem falta! Por isso é que esta merda anda cheia de paneleiros, ou o caralho, que até mete nojo! Tem cona! Raios partam esta merda, pá!
Havia de ser um filho meu a torcer-me o nariz ao pão! Ao pão ou ao que quer que fosse! É de pequenino que se torce o pepino, ou não é? Os meus cá, assim que começam a levantar cachimbo, e ainda são pequenitos, levam logo pela medida grossa. Era o que faltava, um fedelho meu mandar em casa! Antes cagar um pé de merda que levar um filho meu a um psicólogo! É uma corja, pá! É o que eu te digo. Vai por mim! Olha, psicólogos e políticos, era pô-los todos num barco com uma machadada no casco! Foda-se! Eu é que devia mandar nisto, pá! Não sei onde é que isto vai parar, ó Calisto… mas antes que isto piore, manda ai vir mais duas, que agora pago eu.
Segredo é segredo!
e eu a acenar sins com a cabeça
a não dizer nada
tinha jurado
não dizer nada
quando a Ana Maria
- Jura por Deus que não dizes nada a ninguém.
e eu
que sim
com a cabeça
que sim
que não dizia
- … nada a ninguém.
a cabeça por mim
- Juro.
“por Deus”
(por quem mais)
a cabeça, por mil palavras, como se dissesse
- Fica só entre nós.
porque a Ana Maria
- Se jurares que não contas a ninguém, deixo-te mexer. Queres mexer, não queres?
e eu logo
que sim
que sim
com a cabeça
“por Deus”
que sim
que queria
a não dizer nada
jurado já
e a Ana Maria
- Gostas?
e eu
que sim
com a cabeça
que sim
“por Deus”
- Juro.
a cabeça por mim
que sim
que sim.
Eu tinha sete anos e a Ana Maria… bem, não sei. Trabalhava lá em casa desde o meu aniversário
Janeiro, portanto.
Estávamos nas férias da Páscoa, quando ela
- Queres ver as minhas maminhas?
e eu
pela primeira vez
que sim
que a cabeça
por mim
que sim
de cima da minha cama
um verbo sequer
nada
a cabeça apenas.
Eu
sete anos
e a Ana Maria… bem, não sei. Quando se tem sete anos a idade dos adultos é-nos confusa. E tirando os velhos, têm todos a mesma idade. Digamos que para uma criança de sete anos
ou pelo menos eu com sete anos
os adultos eram-no a partir dos quinze
pelo menos o meu primo Ricardo já devia ser, visto fumar. Embora
como a Ana Maria
- Jura por Deus que não dizes nada a ninguém.
quando eu
no quintal
com patinhas de gato
o meu primo Ricardo
- Jura por Deus que não dizes nada a ninguém.
e eu
com a cabeça
“por Deus”
(por quem mais)
que sim
que não dizia
- …nada a ninguém.
Portanto, a Ana Maria, adulta, como os meus pais, o meu tio Almiro, a minha tia Cila, o meu primo Ricardo
já que fumava
quinze anos
e me dizia
além de
- Jura…
- A tua empregada, puto, dá-me cá uma ponta!
e eu acenava que sim com a cabeça
sem entender ponta
como sem entender ponta quando
o Ricardo
a fazer-me companhia nas férias.
Não a mim
sei-o agora
à Ana Maria
que
- …dá-me cá uma ponta!
e por
sei-o agora
seio agora
que
(- Queres ver as minhas maminhas?)
a Ana Maria
dezoito anos, talvez vinte
Quando se tem sete anos a idade dos adultos é-nos confusa. E tirando os velhos…
a Ana Maria
sei-o agora
gostava mais de mim que do meu primo Ricardo, pois nunca lhas havia mostrado. Nunca lhe havia perguntado
- Gostas das minhas maminhas?
sei-o agora
porque um juramento com a cabeça não vale, não é? Espero que Deus entenda assim
que a Ana Maria entenda que sim
um descuido
como um espirro
juro que como um espirro
“por Deus”
que como um espirro
- Juro.
- Juro que a Ana Maria não me põe em cima da cama e me mostra as maminhas para eu mexer.
- Quê, puto?
o meu primo Ricardo
- Quê, puto?
obrigando-me a jurar de novo
e eu
“por Deus”
(por quem mais)
- Juro por Deus que não me deixa apertar assim…
(a exemplificar com as mãos)
deixando o meu primo Ricardo de boca à banda
a jurar por Deus que
- … nada a ninguém.
- Juro.
Afinal eu também jurara que ele
quinze anos
adulto
portanto
- … não fuma no quintal às escondidas, tia. Nem na garagem. Juro por Deus.
Afinal um segredo é um segredo!
Se eu fosse a contar…
(ela não, a menina Estrela)
mas é a mesma coisa
ligava lá para a central
(que na altura não havia cá telemóveis)
e mandava vir o Pires.
- Tanta vez!
- Era uma senhora. Coitadinha! É assim a vida! Vão-se embora os bons e os maus ficam cá, para semente, que é boa! Anda tudo ao contrário! Mas o que é que se há-de fazer. Deus é que sabe. Olhe, que lhe tenha lá alminha em descanso!
- Tanta vez, menina! Tanta vez!
- Olhe, uma vez, eram quatro da manhã
(nunca mais me esqueço, tinha ido levar um cliente à Artilharia 1)
ligaram-me para o rádio para ir à Rua de São Bento, 193. Já sabia para quem era. Meia hora depois arrancávamos para o Porto.
- Tinha uma confiança em mim, que a menina nem calcula! Sei de coisas que nem os melhores amigos dela sonhavam! E o que já insistiram comigo para escrever um livro!? Calhando, ficava rico! Mas eu quero lá saber do dinheiro! Olhe, tenho uma casa paga, o carro é meu, uma filha formada, que já me deu dois netinhos
(são estas duas jóias, aqui ao lado do S. Cristóvão)
de modo que o dinheiro…
- Há coisas que não têm preço, menina. Não concorda? Obviamente! É uma riqueza que está aqui dentro e vai comigo para a cova. Por isso, quando a malta amiga
- Ó Pires, porque é que não escreves um livro com essas coisas, pá?
eu logo
- Não!
E não! Por dinheiro nenhum! Olhe, só se fosse pela saúde destas duas joínhas que aqui estão. Nem pela minha. Pode a menina acreditar. Nem pela minha! Segredo é segredo. Pelo menos cá comigo é assim. Quero chegar lá acima de consciência limpa, piscar o olho à sô dona Amália e receber aquela gargalhada que dizia
- Ó Pires, só você para me aturar estas coisas todas, homem!
- Ai, que saudades, meu Deus!
- Bem, não importa! O que lá vai lá vai. Como a sô dona Amália dizia, e muito bem, “ninguém foge ao seu destino”, e o meu, olhe, é este, andar de cá para lá a levar histórias de um lado para o outro. Mas se eu fosse a contar… ai Jesus! Caía outra vez o Carmo e a Trindade. Olha, olha! O coronel Baptista Lima… ui! Dava cá um livro! Mas não. Fica cá dentro que está muito bem. Ou pensa que foi para o Porto sozinha, naquela noite? Ah! As pessoas sabem lá! Os artistas são homens e mulheres, como toda a gente. Têm é de se abrigar mais, que senão comem-nos vivo. É por essas e por outras que aqui o Pires não quer outra coisa que esta vidinha discreta. Às vezes é complicada. E de que maneira! Mas não trocava isto por nada, menina. Acredite que não. E quem me tirasse este carrinho das mãos era abri uma cova e chutar-me lá para dentro. Mas ser artista… Não! Eu sou dos bastidores. Olhe, ainda fiz teatro, quando era novo. Entrei numa peça com o mestre Eugénio Salvador, que Deus tenha, no Maria Vitória. A menina já não é desse tempo. Mas não dava para aquilo. Tinha de trabalhar, e depois os ensaios… Enfim! Entretanto conheci a minha Elvira e, olhe, o teatro foi outro. Ah,ah,ah… Ai, ai! Mas prefiro assim. Vejo muito, falo é pouco!
- Falei na sô dona Amália porque causa do fadinho que passou. Ainda hoje, e os anos que já lá vão, sempre que a ouço na rádio, fico todo arrepiado. Olhe, de estar a falar nisso. Mas o que não faltam são artistas que eu já levei aqui, menina! Quer dizer, aqui não, que este é novo. Era um outro Mercedes, um 300 Diesel. Aquilo sim era uma máquina! Não é que me possa queixar deste
(Mercedes é Mercedes)
mas já não se fazem carros daqueles. Sabe quantos anos trabalhou ele nas minhas mãos? Todo o santo dia, que nas folgas ia sempre dar uma volta com a patroa a e filha? Vinte e cinco! É verdade! Vinte e cinco anos, menina! E sabe quantas vezes é que me deu problemas? Uma. Um furo! Ah,ah,ah… Ai, ai! Até dava gosto! Para mim era família. E quando tive de me desfazer dele, foi como se me tivesse morrido um irmão. Até chorei. Palavra de honra, menina! E olhe que fiz duas campanhas na Índia. Isto pode parecer parvo, mas era um companheiro. Passei mais horas com ele do que com a minha mulher. Olha, olha! Se fosse a fazer contas: dias de trabalhar doze, catorze horas. Semanas sem folgas, que isto a vida não era simples. A malta nova hoje queixa-se, e a menina desculpe, mas sabem lá o que isto já foi.
- De modo que não é este, mas… A gente que aquele menino conheceu! Olhe, aquele é que se soubesse escrever tinha mais histórias que o Diabo! Que um homem aqui à frente vai de olhos na estrada. Nem sou cá pessoa de espreitar pelo retrovisor. Se falarem comigo, tudo bem, senão, vou aqui no meu cantinho, caladinho que nem um rato. Ouço as notícias, e tal. O resto também interessa pouco. Até a rádio já não é o que era. Dantes era uma companhia, agora… O que é bom acaba depressa. Sabe? Tenho saudades é dos Parodiantes! Ah,ah,ah… Esses andavam sempre comigo para todo o lado. E cheguei a transportar alguns. Não me lembro agora é do nome de nenhum. Bem, não importa. Mas aquele menino se soubesse escrever… Ui! As coisas que às vezes se fazem nos bancos de trás dos táxis. Imagino!
- Olha-me para este agora. Anda lá com isso, pá! Cartas da farinha amparo! Hoje qualquer um tem carta! Por isso é que isto anda tudo entupido e é só acidentes. No meu tempo, menina, para se tirar a carta até aulas de mecânica tínhamos de ter! Mas não era cá aprender a mudar pneus! Era mecânica! Agora, desde que se pague, toma lá e faz-te à estrada. Tenho mais medo de certos tipos que andam na estrada que do Diabo!
- Mas como lhe dizia, menina: Tantos! Nunca mais daqui saíamos. Olhe, só para ter uma ideia: Raul Solnado; Carlos do Carmo; o falecido Ary dos Santos; a Beatriz Costa, coitadinha, que Deus também já lá tem; o grande Tony de Matos, outro que também já lá está. Tantos, menina! Olhe o Badaró. Esse nem sei se ainda é vivo ou não. Já não é do seu tempo. Ainda se lembra!? É o do limpa o pó, é. Era um prato, esse malandro. A Ivone Silva. Ai, do que eu me fui lembrar! Uma vez apanhei-a à porta do ABC, valha-me Nossa Senhora, nem sabia onde morava… Foi o saudoso José Viana que a teve de ajudar a entrar no táxi, que vinha às arrecuas.
- Não é assim, ó Ivone!
parece que o estou a ouvir
e ela
- É assim é. É para trás que mija a burra!
Era uma senhora!
Tantos, menina! Tantos! Nunca mais daqui saíamos.
Sunday, November 16, 2008
Olha o passarinho
- Está ali um pente e um espelho se quiser dar um jeitinho ao cabelo.
o fotógrafo…
corrijo
o retratista
(camisinha às flores)
a indicar-me com o dedo
(acusador)
como que a obrigar-me, ou à vergonha em mim, a dar
- … um jeitinho ao cabelo.
que
de cabelo no ar
(embora o não dissesse)
lhe estragava arte
que os fotógrafos
corrijo
os retratistas
crêem-se uns artistas
por isso
- Está ali um pente e um espelho…
(se quiser)
na ponta do dedo
(acusador)
- …um pente e um espelho…
(só se quiser, está claro)
na subtileza da comunicação, a ouvir-se
- Que de cabelo no ar estraga-me a arte.
ou
- Depois não se venha cá queixar que ficou com cara de porco-espinho!
e tudo isto no bouquet paralinguístico de
- Está ali um pente e um espelho se quiser dar um jeitinho ao cabelo.
De modo que eu
dois passinhos para o toucador
(no silêncio dos obedientes)
onde
- … um pente e um espelho…
e o meu reflexo, contrariado, à espera de mim para
- …um jeitinho ao cabelo.
O pente
bidimensional
dentes finos, dentes grossos
deitado sobre o naperon
de olhos baixos, nu, envergonhado
cheio de cabelos e caspa
a pedir-me desculpa
(prostituta entre dois fretes sem tempo de passar pelo bidé)
no embaraço próprio dos objectos sujos
conforme um espelho reflectindo o dono.
E eu a estender-lhe a mão
embaraçado por embaraçá-lo, a fingir que
nojo nenhum, importância alguma
(Coitado, não tinha culpa. Tinha era caspa, com cabelo, como muita gente!)
a pegar nele
e o pente
retraído
a mudar de cor
embaraçado
não obstante eu
- Tem de ser amigo.
a levá-lo à cabeça num gesto só
a fingir que
nojo algum, nenhuma importância
apesar das voltas do estômago
como se o pente uma garfada de mioleira pela goela abaixo, provocando-me arrancos de vómito, contracções na cárdia.
E nisto
um risco ao meio, perfeitinho, porque o cabelo a afastar-se sozinho
de mãos na boca, contendo o vómito
como o mar vermelho
metade para cada lado
com nojo de Moisés
enquanto o fotógrafo
corrijo
o retratista
(calcinha vermelha)
faraó impiedoso
procurando lentes, olhos de Rá, a umbela, pequeno pálio contra a luz forte do deserto
(salinha a que chamam estúdio)
(…uns artistas)
à espera que eu acabasse de dar
- … um jeitinho ao cabelo.
E de volta à salinha
(a que chamam estúdio)
(jeitinho dado)
o dedo acusador apontado ao centro, ao banquinho de enroscar
desenroscar
de s’ enrascar
desenrascar
o banquinho
ao centro
diante de um painel de palmeiras, gaivotas e mar
onde eu
jeitinho dado
risquinho ao meio
a tomar lugar
direito
a julgar que
direito
pois o fotógrafo…
corrijo
o retratista
(sandalinha de couro)
a dizer
- Um pouco mais para a direita.
- Já foi demais.
- Para a esquerda agora.
Numa indecisão parlamentar
- Endireite a espinha.
E eu com vontade de lhe gritar
- Quem tem espinha são os peixes.
a endireitar a “espinha”
(no silêncio dos obedientes)
não como ele queria
que os artistas nunca estão satisfeitos
a aproximar-se de mim
camisinha às flores
calcinha vermelha
sandalinha de couro
a aproximar-se de mim com dois polvos de cinco tentáculos, colando-se-me à cabeça, fazendo força
- Assim.
e sem que eu me mexesse
- Não se mexa!
E eu com vontade de lhe gritar que não me tinha mexido, “maricas de merda”
camisinha de couro
calcinha às flores
sandalinha vermelha
que não me tinha mexido
com vontade de lhe gritar
- Quem tem espinha são os peixes.
A não me mexer
(no silêncio dos obedientes)
procurando evitar os tentáculos
perfumados
cheios de anéis e pêlos
paradoxo estético
e
apesar de não me mexer
um tentáculozinho a lamber-me o queixo
- Assim!
toquezinho de nada, importância das importâncias
que os artistas nunca estão satisfeitos
que os artistas
- Cuidado, que me estraga a arte!
que os artistas
- Depois não se venha cá queixar que ficou com cara de Mário Soares.
Um toquezinho de nada e
- Está bom. Não se mexa agora. Isso. Vá, agora um sorrisinho.
e eu com uma vontade de sorrir tão grande quanto de engolir uma caixa de pregos
a forçar as bochechas
(no silêncio dos obedientes)
- … um sorrisinho.
a imaginar um polícia para mim
- … um sorrisinho.
desconfiado
porque a fotografia a não corresponder à minha cara, onde
sorrisinho nenhum
de modo que a fotografia sorridente a ter de pôr uma cara séria, carrancuda, a imitar-me, a colar-se a mim, para não me arranjar problemas com a autoridade
porque os artistas
o fotógrafo…
corrijo
o retratista
(cabelinho pelos ombros)
a insistir
- … um sorrisinho.
E eu com vontade de lhe gritar
- Quem tem espinha são os peixes.
a forçar as bochechas
(no silêncio dos obedientes)
a descolar os lábios
a imitar um sorriso
diferente de sorrir
imitar apenas
a não querer estragar-lhe a arte; para que depois não me fosse lá queixar que ficara com cara de sapo penteado e
(no silêncio dos obedientes)
a olhar para o passarinho
quando
- Agora olhe para o passarinho.
Passarinho, aonde?
anéis e pêlos
paradoxo estético
cinco tentáculos
ardil manhoso
que os passarinhos não têm tentáculos
que os passarinhos não têm anéis nem pêlos
nem paradoxos.
De modo que passarinho nenhum
passarão
não passarão
passarola
passareta
borboleta
pianola
borbotão
de patinha no botão
- Agora olhe para o passarinho.
E eu com vontade de lhe gritar
- Quem tem espinha são os peixes.
a olhar para os tentáculos penados
anéis e pêlos
direito no banquinho de enroscar
desenroscar
de s’ enrascar
desenrascar
o banquinho
ao centro
diante de um painel de palmeiras, gaivotas e mar
onde a brisa a ameaçar-me o cabelo, o risco, o penteado
de bochechas forçadas
sujeito a arranjar problemas com a autoridade
fixando o pintassilgo
o pintarroxo
o pintainho
até que
Flash
a deixar-me cego
gravado na chapa
com cara de porco espinho
Mário Soares
sapo penteado
que o artista
corrijo
o maricas de merda
camisinha pelos ombros
calcinha de couro
sandalinha às flores
cabelinho vermelho
bem me deu a entender
- Depois não se venha cá queixar…
Agora ou Nunca
Olhava com inveja para as barrigas vaidosas das grávidas que se passeavam felizes pelo jardim da Estrela, quando
- Importa-se que fume?
a rouquidão de uma voz, ainda mal se havia sentado no banco que passámos a ter em comum.
Não me importava. Não estava grávida. Infelizmente nenhum motivo para
- Preferia que não.
- Estou farta desta merda! Tenho quase quarenta anos
(na verdade apenas trinta e cinco)
e não consigo engravidar.
A Isabel aos gritos, num misto de frustração e desespero. Enquanto eu
a ouvi-la e pouco mais.
Também eu queria um filho…dela!
- Quero fazer um teste de fertilidade. Quero saber se sou seca! Quero saber se o castigo é meu!
num misto de frustração e desespero.
- Esteja à vontade!
respondi, quase sem tirar os olhos de um vestido salmão que se arredondava sobre o ventre de outra mulher que por ali passava
(cabra)
de braço dado.
- Se o problema for meu, deixas-me?
o Paulo a perguntar-me com um olhar de cachorro preso à matricula diminuinte do carro dos donos.
- Claro que não! Estás parvo?
foi a resposta da Isabel, ganhando coragem para fazer a mesma pergunta.
- Eu também não! Nunca, Tolinha!
tomando-a nos braços e rematando
- Por isso não vale a pena castigarmo-nos com a verdade. Não importa de quem é o problema. É nosso. Basta. Não quero que te agonies, nem me quero agoniar eu.
Mas para mim não bastava. Queria sabê-lo. Queria-o quase tanto quanto a um filho. E por isso agoniava-me; agoniava-o. E no limite do desespero
A Isabel aninhar-se-me nos braços e, apesar de não satisfeita com a proposta, a deixar-se ficar em silêncio à espera do silêncio húmido dos meus lábios. Tentámos mais uma vez!
- Fuma?
a voz, desconcertante, estendendo o maço na minha direcção.
A coisa parecia descontrolada. Devorávamo-nos até ao limite do possível, num desespero incompreensível à razão. O desejo era tal, e tal a sofreguidão, que foi a melhor vez da minha vida; apesar de não o termos feito um com o outro. Eu, com uma fantasia selvática tornada realidade, e a Isabel, com o desejo enraivecido se ser mãe.
(Era agora ou…
- Não costumo… mas aceito um, sim!
Afinal de contas, nenhum motivo para
- …não.
e uma mão morena com uma chama na ponta avançando na minha direcção. E o cheiro a tabaco a misturar-se com um perfume quente que me entrou pelas narinas adentro despertando-me um desejo desconhecido. Estava aceso o instinto; o cigarro também.
- Nunca me deixas, Paulo?
- Claro que não, tolinha!
E mais saliva e mais suor e mais pêlos da carpete colados à humidade dos corpos (…)
… ou nunca!)
Eu sabia o problema não ser meu. Não que alguma vez tivesse feito um espermograma na vida, mas porque
- “Ou tu casa com a Rosinha, ou eu te mato, desgraçado!”
as palavras sentenciosas do pai da rapariga (da moça, melhor será dizê-lo) mal a barriga da filha se começou a tornar indiscreta. Uma aventura sem importância, um par de vezes: uma tarde, uma noite ou duas, que me obrigou a fugir da Baía sob ameaça de morte.
- Quando olho para estas crianças a correr de um lado para o outro, sinto uma vontade enorme de ser pai.
a voz do companheiro de banco e de fumo, envolta na neblina do cigarro, que já não fumava desde os tempos do Liceu Francês, a trazer-me de volta à Estrela, ao banco, ao seu lado. Parecia ter voado com o fumo, até à idade em que os sonhos e a realidade são uma e a mesma coisa, mas aquela voz pétrea rebentou a bola de sabão em forma de ventre prenhe que me envolvia os sentidos, no preciso momento em que as minhas mãos mentais se dirigiam descontroladamente para o pescoço da rapariga de salmão que tornava a passar. Parecia que de propósito para me provocar.
Cabra!
Cabras! Todas!
Tinha vontade de as espancar, de lhes arrancar a beleza das faces plenas de felicidade à chapada, mas… porque a voz
- Quando olho para estas crianças…
eu
- Como disse?
- Quando olho para estas crianças a correr de um lado para o outro, sinto uma vontade enorme de ser pai.
Duas semanas depois, sob o pretexto de ir tratar dos papéis para o casório, apanhei um autocarro e mil e duzentos quilómetros depois, num avião para Portugal.
- A senhora tem filhos?
- Tenho dois! - menti, no meio de duas passas denunciadoras.
- A vida nunca me deu essa felicidade! - e puxando fumo, acrescentou de peito cheio: - Mas ainda não perdi a esperança! - olhando-me desarmante para a alma nua.
Era agora ou nunca! Caídos um para cada lado do chão onde
exaustos, encharcados, plenos…
Eu na minha virilidade de macho; Isabel na sua maternidade de fêmea.
- Nunca me deixas, Paulo?
- Claro que não, tolinha!
Há coisas que não se explicam e… A tarde começava a acinzentar e o vento tinha tomado a forma de uma mão sob a aba do meu vestido, ali onde a coxa começa e a penugem se arrepia ao mínimo contacto. Quando dei por mim o banco tinha desaparecido e, no seu lugar, o alto miradouro do jardim, onde aquela voz rouca, um cavalo a galope pelas colinas das minhas espaldas acima, num encaixe completo até à medula dos ossos.
Hoje terá nove anos. Menino ou menina! Não sei. Creio que não vou saber nunca. Tal como
saber nunca
se meu ou não
pois apenas um par de vezes: uma tarde, uma noite ou duas
apesar de ela
- Por tudo o que há dji mais sagrado que é seu, Paulo! - lavada em lágrimas.
Nestas coisas as mulheres não se enganam.
As minhas mamas famintas de leite enchiam a cada investida e o meu ventre morto respondia a cada massagem cardíaca que aquele estranho paramédico me ministrava. Não sei explicar. Não quero explicar.
Foi uma loucura aquela noite!
Foi uma loucura aquela tarde!
No mês seguinte o período não veio e no lugar dele uma sensação de intraduzível felicidade. Um exame de farmácia confirmou o anseio, e dois meses depois a ecografia dava-me a melhor das notícias.
- São dois!
podia dizê-lo agora sem mentir quando alguém
- …tem filhos?
Não podia nem acreditar. Isabel estava grávida e eu ia ser pai!
- Só pode ter sido feito daquela vez! - assegurava o Paulo numa excitação infantil.
E eu
- Claro que foi, tolinho!
Afinal… quem poderia saber?!
Nestas coisas as mulheres não se enganam.
Monday, October 27, 2008
Vertigem
Depois que a Soraia me trocou por aquele taxistazinho de merda a vida perdeu o sentido.
- Olha que essa gaja não é boa rês, pá! - o pessoal do snack-bar a avisar-me.
- Também para o que é! - defendia-me eu, indiferente
aparentemente indiferente
mal sabendo, ou querendo admitir, que já estava vidrado na curvas desastrosas daquele corpo.
- Olha que já deu a volta a uns quantos pategos aqui no bairro, Chico! - o pessoal a insistir. Principalmente aqueles que nunca se haviam acidentado nas curvas de morte da Soraia. Maldita seja!
- Dizem até que foi por causa dela que o Victor se matou, pá.
- Uns fracos, pá! - afirmava eu, todo galo. - Gajos que não sabem lidar com uma mulher! E enchia a boca para
- Uns fracos, pá!
e num inchar de peito ainda acrescentava
- Uma mulher é uma mulher, pá! Não tem nada que saber.
Até que a Soraia a afastar os joelhos e eu
- Uns fracos, pá!
a não saber lidar com ela
- Olha que nem todos os carros são para todas as mãozinhas! Passa lá uma bomba para as mãos de um nabo e logo vês o que lhe espera.
E a Soraia um carro de competição com 800 cilindros em triplo W.
- Olha que aquilo não vem com kit de unhas, Chico! Ou tens “mãozinhas” para a gaja, ou vais direitinho à parede que até te amolas.
E os joelhos da Soraia a afastarem-se na minha direcção
uma velocidade vertiginosa
estrada em bico
a afunilar
a afunilar
em direcção ao precipício
e eu
um franguinho com vertigens à beira do abismo
da boca do inferno.
E ela
… Soraia. Maldita seja!
a perceber que eu não tinha mãozinhas para aquilo
um nabo
mas enquanto lhe deu pica gozar o pacóvio, que todas as sextas e sábados aos bifes da Trindade
tudo muito certo
uma lady
e eu de peito inchado,
todo galo
franguinho com vertigens à beira do abismo
a passeá-la à porta do snack-bar, ao fim da noite, onde os outros, invejosos, babados, lhe mandavam olhares às ancas e piadas a meu respeito.
- Então, ó Chico, já nem falas à malta?!
e eu
que já nem falava à malta
nem um gesto de cabeça; uma piscadela de olho
nada
a andar, a andar
inchado que nem um peru
todo galo…
(franguinho com vertigens à beira do abismo)
Mas agora…
agora que aquele taxistazinho de merda a levou, sei lá para onde, acabou-se tudo. A voltarem-me à ideia as palavras do Calisto
- Dizem até foi por causa dela que o Victor se matou, pá.
as do Necas
- Ou tens “mãozinhas” para a gaja, ou vais direitinho à parede que até te amolas.
E o taxistazinho de merda, mais habituado a grandes andamentos
de certeza mais habituado a grandes andamentos
de manhã à noite com um Mercedes na patuças
a levar-ma, sei lá para onde…
a deixar-me um vazio enorme
cheio de ecos
onde as palavras do Calisto
- Dizem até foi por causa dela que o Victor se matou, pá.
- … foi por causa dela que o Victor se matou, pá.
- … o Victor se matou, pá.
- … se matou, pá.
a dar-me vontade de morrer
aqui
neste quarto vazio com barba de cinco dias, a português suave e latas de salsichas com pão de forma e vinho de pacote, que é só o tempo de descer ao supermercado
a horas que não me vejam
a horas que ninguém
- Então, ó Chico, já nem falas à malta?!
só o tempo de descer ao supermercado
e
tau
o que calhar e uns cigarros.
Neste quarto vazio
(cama e armário)
alugado ao segundo
que isto aqui não é uma pensão
- Olhe que isto aqui não é uma pensão!
a dona disto que não é uma pensão, à porta, a avisar-me
- Olhe que isto aqui não é uma pensão!
a dar-me ganas de lhe apertar o papo
de lhe berrar bem alto
- É um ninho de putas. É o que isto é!
a não dizer nada
a deixar-me ficar
no canto vazio do quarto
(cama e armário)
que para amar nem é preciso tanto
afinal
- Uma mulher é uma mulher… Não tem nada que saber.
e pelo visto até tem
- Ou tens “mãozinhas” para a gaja, ou vais direitinho à parede que até te amolas.
as palavras do Necas no eco surdo do quarto
alugado ao segundo pelo taxímetro da velha que
- Olhe que isto aqui não é uma pensão!
e ao dizer taxímetro
a começar tudo de novo
a Soraia, o snack-bar, a Trindade, a pensão
- Olhe que isto aqui não é uma pensão!
- Já sei que não é uma pensão, foda-se!
… um ninho de putas. É o que isto é!
a deixar-me ficar
na esperança desesperançada que volte
que entenda que eu
Chico
o homem da vida dela
na esperança desesperançada que o taxistazinho de merda a abandone
que as mulheres abandonadas regressam sempre aos braços encornados dos pacóvios que as choram em pontas.
A deixar-me ficar
numa vontade de morrer
a horas que não me vejam
neste quarto de cinco dias, só, com barba de tempo a descer, suave, ao vazio… tau… uns cigarros. Português de forma, de pacote, de supermercado salsichas de pão e vinho de latas…o que calhar.
aqui
no canto
vazio
onde uma barata
passeando-me pelas biqueiras das botas, sem respeito algum
(como o pessoal do snack-bar se me visse agora
Português sem forma, barba de cinco quartos, salsichas de pão e vinho suave, tempo em lata, dias de pacote
o que calhar e uns cigarros)
respeito algum
a barata
pelas biqueiras de mim, ou das botas
como se eu não mais que um obstáculo no caminho
eu não mais que um obstáculo no caminho
que uma barata faz lá ideia o que é um homem
um franguinho com vertigens à beira do abismo
à boca do ralo do polibã
agora
repleto de cabelos e pêlos fossilizados em restos de sabão, onde a barata
agora
ou eu
a barata
agora
em movimentos de antenas, à procura dos pêlos dela
… Soraia. Maldita seja!
Quais os dela? Quais o meus? Quais os de toda a gente que por aqui passou antes de nós, que
- …isto aqui não é uma pensão!
… um ninho de putas…
já sei
num desespero, perdido
Quais os dela? Quais os dela? Quais os dela?
em movimentos de antenas
a barata
ou eu
a barata
Quais os dela? Quais os dela? Quais os dela?
Que frustração! Nem um resto do seu corpo a ser-me permitido
um fio ondulado de saudade… Nada!
Confundi-me com ela, com meia cidade, com meio mundo... meia pensão…
e que resta de nós…
um monte de pentelhos no ralo, misturados com o sebo e sabão…
o abismo
o ralo aberto
movimento de antenas
um medo que vem de dentro
de mim
do ralo
de onde um frio
uma dor
um silêncio de gargalhadas pelos quatro cantos do quarto
vazio
a arrepiarem-me a couraça
nua
gelada
numa vertigem de abismo à boca do ralo
à boca do inferno
de onde um eco
profundo
nas minhas antenas à toa
vindo das entranhas da cidade
me repete
- Dizem até que foi por causa dela que o Victor se matou, pá.
- … que o Victor se matou, pá.
- … se matou, pá.