- Está ali um pente e um espelho se quiser dar um jeitinho ao cabelo.
o fotógrafo…
corrijo
o retratista
(camisinha às flores)
a indicar-me com o dedo
(acusador)
como que a obrigar-me, ou à vergonha em mim, a dar
- … um jeitinho ao cabelo.
que
de cabelo no ar
(embora o não dissesse)
lhe estragava arte
que os fotógrafos
corrijo
os retratistas
crêem-se uns artistas
por isso
- Está ali um pente e um espelho…
(se quiser)
na ponta do dedo
(acusador)
- …um pente e um espelho…
(só se quiser, está claro)
na subtileza da comunicação, a ouvir-se
- Que de cabelo no ar estraga-me a arte.
ou
- Depois não se venha cá queixar que ficou com cara de porco-espinho!
e tudo isto no bouquet paralinguístico de
- Está ali um pente e um espelho se quiser dar um jeitinho ao cabelo.
De modo que eu
dois passinhos para o toucador
(no silêncio dos obedientes)
onde
- … um pente e um espelho…
e o meu reflexo, contrariado, à espera de mim para
- …um jeitinho ao cabelo.
O pente
bidimensional
dentes finos, dentes grossos
deitado sobre o naperon
de olhos baixos, nu, envergonhado
cheio de cabelos e caspa
a pedir-me desculpa
(prostituta entre dois fretes sem tempo de passar pelo bidé)
no embaraço próprio dos objectos sujos
conforme um espelho reflectindo o dono.
E eu a estender-lhe a mão
embaraçado por embaraçá-lo, a fingir que
nojo nenhum, importância alguma
(Coitado, não tinha culpa. Tinha era caspa, com cabelo, como muita gente!)
a pegar nele
e o pente
retraído
a mudar de cor
embaraçado
não obstante eu
- Tem de ser amigo.
a levá-lo à cabeça num gesto só
a fingir que
nojo algum, nenhuma importância
apesar das voltas do estômago
como se o pente uma garfada de mioleira pela goela abaixo, provocando-me arrancos de vómito, contracções na cárdia.
E nisto
um risco ao meio, perfeitinho, porque o cabelo a afastar-se sozinho
de mãos na boca, contendo o vómito
como o mar vermelho
metade para cada lado
com nojo de Moisés
enquanto o fotógrafo
corrijo
o retratista
(calcinha vermelha)
faraó impiedoso
procurando lentes, olhos de Rá, a umbela, pequeno pálio contra a luz forte do deserto
(salinha a que chamam estúdio)
(…uns artistas)
à espera que eu acabasse de dar
- … um jeitinho ao cabelo.
E de volta à salinha
(a que chamam estúdio)
(jeitinho dado)
o dedo acusador apontado ao centro, ao banquinho de enroscar
desenroscar
de s’ enrascar
desenrascar
o banquinho
ao centro
diante de um painel de palmeiras, gaivotas e mar
onde eu
jeitinho dado
risquinho ao meio
a tomar lugar
direito
a julgar que
direito
pois o fotógrafo…
corrijo
o retratista
(sandalinha de couro)
a dizer
- Um pouco mais para a direita.
- Já foi demais.
- Para a esquerda agora.
Numa indecisão parlamentar
- Endireite a espinha.
E eu com vontade de lhe gritar
- Quem tem espinha são os peixes.
a endireitar a “espinha”
(no silêncio dos obedientes)
não como ele queria
que os artistas nunca estão satisfeitos
a aproximar-se de mim
camisinha às flores
calcinha vermelha
sandalinha de couro
a aproximar-se de mim com dois polvos de cinco tentáculos, colando-se-me à cabeça, fazendo força
- Assim.
e sem que eu me mexesse
- Não se mexa!
E eu com vontade de lhe gritar que não me tinha mexido, “maricas de merda”
camisinha de couro
calcinha às flores
sandalinha vermelha
que não me tinha mexido
com vontade de lhe gritar
- Quem tem espinha são os peixes.
A não me mexer
(no silêncio dos obedientes)
procurando evitar os tentáculos
perfumados
cheios de anéis e pêlos
paradoxo estético
e
apesar de não me mexer
um tentáculozinho a lamber-me o queixo
- Assim!
toquezinho de nada, importância das importâncias
que os artistas nunca estão satisfeitos
que os artistas
- Cuidado, que me estraga a arte!
que os artistas
- Depois não se venha cá queixar que ficou com cara de Mário Soares.
Um toquezinho de nada e
- Está bom. Não se mexa agora. Isso. Vá, agora um sorrisinho.
e eu com uma vontade de sorrir tão grande quanto de engolir uma caixa de pregos
a forçar as bochechas
(no silêncio dos obedientes)
- … um sorrisinho.
a imaginar um polícia para mim
- … um sorrisinho.
desconfiado
porque a fotografia a não corresponder à minha cara, onde
sorrisinho nenhum
de modo que a fotografia sorridente a ter de pôr uma cara séria, carrancuda, a imitar-me, a colar-se a mim, para não me arranjar problemas com a autoridade
porque os artistas
o fotógrafo…
corrijo
o retratista
(cabelinho pelos ombros)
a insistir
- … um sorrisinho.
E eu com vontade de lhe gritar
- Quem tem espinha são os peixes.
a forçar as bochechas
(no silêncio dos obedientes)
a descolar os lábios
a imitar um sorriso
diferente de sorrir
imitar apenas
a não querer estragar-lhe a arte; para que depois não me fosse lá queixar que ficara com cara de sapo penteado e
(no silêncio dos obedientes)
a olhar para o passarinho
quando
- Agora olhe para o passarinho.
Passarinho, aonde?
anéis e pêlos
paradoxo estético
cinco tentáculos
ardil manhoso
que os passarinhos não têm tentáculos
que os passarinhos não têm anéis nem pêlos
nem paradoxos.
De modo que passarinho nenhum
passarão
não passarão
passarola
passareta
borboleta
pianola
borbotão
de patinha no botão
- Agora olhe para o passarinho.
E eu com vontade de lhe gritar
- Quem tem espinha são os peixes.
a olhar para os tentáculos penados
anéis e pêlos
direito no banquinho de enroscar
desenroscar
de s’ enrascar
desenrascar
o banquinho
ao centro
diante de um painel de palmeiras, gaivotas e mar
onde a brisa a ameaçar-me o cabelo, o risco, o penteado
de bochechas forçadas
sujeito a arranjar problemas com a autoridade
fixando o pintassilgo
o pintarroxo
o pintainho
até que
Flash
a deixar-me cego
gravado na chapa
com cara de porco espinho
Mário Soares
sapo penteado
que o artista
corrijo
o maricas de merda
camisinha pelos ombros
calcinha de couro
sandalinha às flores
cabelinho vermelho
bem me deu a entender
- Depois não se venha cá queixar…
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