Tuesday, October 27, 2009

Palavras

O teu corpo satisfeito
suado do esforço para arrancar de mim um suspiro de gozo
a dizer que me ama
- Amo-te…
sem emoção
- Amo-te…
um bigode
num arquejo
suado
- Amo-te…
a dizer que me ama
um bigode cheirando a cinzeiro
a dizer que me ama
como se um bigode
cheirando a cinzeiro
capaz de amar alguém
- Amo-te, Margarida.
como a minha mãe
- … Margarida…
sem emoção
a quem o meu pai nunca dissera amar
- O teu pai nunca disse que me amava.
e por isso eu a dever sentir-me satisfeita, pois ao menos tu
o teu bigode
apesar do porquê
daqueles três suspiros ridículos que os homens soltam no fim de quebrarem
- Amo-te, Margarida.
a dever sentir-me satisfeita
visto o meu pai
nunca
- Amo-te...
sem emoção, que fosse
- Amo-te...
uma vez na vida
- Amo-te…
nunca
nem sequer depois dos suspiros
ridículos
que os homens
ridículos
no fim de quebrarem
a dever sentir-me satisfeita
porque tu
o teu bigode
apesar do porquê
emoção ou não
- Amo-te, Margarida.
- … Margarina.
- … Catrapiler.
- … Regisconta.
- … Rais ta partam.
como todos os homens
ridículos
depois dos três suspiros
- Amo-te…
Mas não. Não sinto. Da mesma forma que não sinto tu a suspirares para dentro de mim. Sequer tu, dentro de mim. Não sinto, não sinto, não sinto…
ao contrário da voz da minha mãe
no meu estômago
como um arrepio
- Tu nunca te satisfazes com nada!
e uma vontade de responder
Com nada, mãe?
Um bigode cheirando a cinzeiro, mãe?
Um bigode que
- Ah! Ah! Ah!
trisuspirando
como quem
“minha machadinha”
quase sem folgo, como um rato desancado à vassourada
- Amo-te, Margarida.
só porque…
- Ah! Ah! Ah!
dentro de mim, mãe!?
É, mãe?
Nunca me satisfaço com nada, mãe?
Só porque o pai nunca
- Amo-te, Ricardina.
uma vez na vida
- Amo-te, Ricardina.
nem sequer depois dos suspiros
- Amo-te, Ricardina.
devo dar graças a Deus por o Manel
- Amo-te, Margarida.
(?)
É, mãe?
Só porque nunca um estalo, eu a dever graças a Deus?
É, mãe?
Nunca me satisfaço com nada!?
Acha, mãe? Com nada?
Um rato cheirando a cinzeiro, mãe!? Babado! Como se em vez da vassourada, a boca de um gato. Babado, mãe! Babado!
Como é que uma mulher se satisfaz com um rato babado cheirando a cinzeiro, mãe? Como, mãe? Como?
Nunca um carinho, um abraço, um jantar fora, uma flor. Peidos debaixo dos lençóis, mãe! Que eu há noites mal prego olho de tanto sonho por cumprir.
- Tu nunca te satisfazes com nada!
Nos pés, cascas de mexilhões nascendo dos dedos
e se eu
- Ó Manel, corta as unhas!
logo o Manel
- Andas muito fina, tu!
só porque eu
- Ó Manel, corta as unhas!
Nunca me satisfaço com nada, mãe?
Um bigode amarelo cheirando a cinzeiro. Não tinha dito? Digo agora. Amarelo. Como é que se geme debaixo de um bigode amarelo cheirando a cinzeiro senão de sofrimento, mãe? Como, mãe?
É pedir muito, um carinho, um abraço, um jantar fora, uma flor… unhas em vez de cascas, ar puro debaixo dos lençóis? É, mãe? Só porque
“- Amo-te”
depois de três suspiros
ridículos
dentro de mim?
As palavras não são tudo, mãe
Manel
(!)
Há os gestos, a ausência deles
que um
- Amo-te!
depois de um homem suspirar três vezes vale tanto como a confissão de um torturado
Mentira! Mentira! Mentira! Eu sei que é mentira, mãe!
“Amo-te”, coisa nenhuma
um desabafo
um suspiro diferente de “Ah!”
o mesmo que nada
o silêncio do pai depois de quebrar…
Nunca um carinho, um abraço, um jantar fora, uma flor. Peidos debaixo dos lençóis, mãe! Que eu há noites mal prego olho de tanto sonho por cumprir.
Mentira! Mentira! Mentira!
como
- Ah! Ah! Ah!
(minha machadinha)
e no mesmo fôlego
- Amo-te, Margarida.
naquele ínfimo instante em que um homem crê no amor como um condenado em Deus à hora da morte
mas que passa rápido
um calor que se perde depressa
porque o amor de um homem arrefece rápido, como o que deles nos sobra no transpirado das coxas
(não é mãe?)
rápido
frio
como
- Ah! Ah! Ah!
(minha machadinha)
desconfortável
um bafo, um bigode, um homem que não me lembro bem de onde veio
- De onde veio, mãe?
desconfortável
como o bafo do teu ressonar no meu pescoço.
Tenho nojo dele, mãe.
Nojo de ti, Manel.
E tão mais nojo de mim!
…tão mais nojo de mim…
neste desespero que grito para dentro
como os gemidos de sofrimento provocados pelo embate seco de um corpo estranho contra o ventre
(um corpo que não me lembro bem de onde veio
- De onde veio, mãe?)
até que
- Ah! Ah! Ah!
até que
- Amo-te, Margarida
até que
umas costas a roncarem para o meio da cama
umas costas que não me lembro bem de onde vieram.
- De onde vieram, mãe?
E eu cansada de fingir!
Não finjo mais, não finjo mais, não finjo mais…
tanto lhe dá
já perdi a conta aos anos que
tanto lhe dá
é por mim
é por mim que não finjo mais
que uma mulher não finge para o homem, mas para si mesma. Sei-o agora.
Portanto
não finjo mais
cansada de ali estar
como não estando
embora estado
sem que ali esteja
ou houvesse um dia
ali, como noutro lado qualquer, vazia contigo dentro,
vazia
contigo dentro
num gelar peganhento
até que
umas costas
que não me lembro bem de onde vieram.
a roncarem para o meio da cama
satisfeitas
suadas do esforço para arrancarem de mim um suspiro de gozo
depois de dizerem que me amam
- Amo-te, Margarida.
sem emoção
que para as costas
como para os bigodes
as palavras não custam nada
nada.

Não é mentira

Amo o Rui.
Amo o Rui, amo o Rui, amo o Rui…
Somos felizes.
Somos felizes, sim. Somos felizes.
Mas há uns dias que
no trabalho
o Simão…
Nem sei o que estou para aqui a dizer! Desabafos.
Amo o Rui.
Amo, sim. E somos felizes. É querido, é amigo, é companheiro, damo-nos bem na cama... Sim, damo-nos bem na cama. Mas há uns dias que
no trabalho
o Simão…
A verdade é que penso nele. Não gosto dele. Isso tenho a certeza.
Amo o Rui.
Mas a verdade é que
penso nele.
É desinteressado. Tem um olhar vago de quem não está nem aí para o mundo. Não dá confiança, mas sorri e é simpático. Há qualquer coisa que
os meus olhos
há qualquer coisa que puxa os meus olhos para ele.
Lá no escritório anda tudo doido. Só mulheres
e o Simão.
o Simão…
Lá no escritório anda tudo doido…
É bonito. Mas não é por isso. Tem um olhar vago de quem não está nem aí para o mundo. É desinteressado. Ou desperta interesse, que talvez seja o mesmo.
Nem sei o que estou para aqui a dizer! Desabafos.
Amo o Rui.
… damo-nos bem…
ainda ontem à noite, o Rui
na cama…
O Rui sempre me procurou. É quase sempre o Rui que me procura.
Amo o Rui, amo o Rui, amo o Rui…
quase sempre o Rui que me procura.
Gosto que o Rui me procure. Se calhar para me sentir mais desejada, ou por alguma coisa que está no meu genoma de fêmea
talvez seja o mesmo
talvez outra coisa qualquer na qual nunca parei para pensar.
Pensar para quê?
Amo o Rui.
Amo, sim. E somos felizes. É querido, é amigo, é companheiro, damo-nos bem na cama... Sim, damo-nos bem na cama. Mas há uns dias que
no trabalho
o Simão…
A verdade é que penso nele. Não gosto dele. Isso tenho a certeza.
Amo o Rui.
Mas a verdade é que…
É quase sempre o Rui que me procura.
Como ontem à noite
na cama
a mão do Rui, as minhas pernas, um arrepio, uma vontadinha
nunca é logo uma vontade
uma vontadinha
a mão do Rui
a boca
o meu pescoço, um arrepio
e a pouca luz do quarto a projectar na minha pele outra mão, outra boca
nas minhas pernas
no meu pescoço
outra mão
a pouca luz do quarto
outra mão
sim
não
sim
não
sim
mão
sim
mão
o Rui
o Rui
o Rui
amo o Rui
mas na minha cabeça
não sei porquê
Simão…
Não gosto dele. Isso tenho a certeza.
Mas…
um olhar vago
desinteressado…
Não gosto dele… certeza
amo o Rui
mas a verdade é que
penso nele.
Fizemos amor
eu e o Rui
sempre carinhoso comigo
nada a dizer
não é perfeito
ninguém o é
(detesto a expressão)
mas
nada a dizer.
Fizemos amor
o Rui
e no fim
o Rui
- Foi bom! Não foi?
e eu
- Foi. Foi óptimo.
eu que não estive bem ali
não me lembro de ter estado bem ali
de ter sentido bem as coisas.
Há dias do mês em que as mulheres não sentem tão bem as coisas.
Há dias do mês em que as mulheres não sentem tão bem as coisas.
Há dias do mês em que as mulheres não sentem tão bem as coisas.
Amo o Rui.
Amo o Rui.
Amo o Rui…
não é uma busca de verdade pela repetição da mentira.
Não é mentira.
Não é mentira.
Não é mentira.
Talvez outra coisa qualquer na qual nunca parei para pensar.
Pensar para quê?
Amo o Rui.
Amo, sim. E somos felizes. É querido, é amigo, é companheiro, damo-nos bem…
ainda ontem à noite…
- …Foi óptimo.
apesar de eu não ter sentido bem as coisas
Há dias do mês em que as mulheres não sentem tão bem as coisas.
como ontem
não é mentira
- …Foi óptimo.
ou pelo menos
- …bom!
como disse o Rui.
Há dias do mês em que as mulheres…
não sei porquê
nunca parei para pensar.
Pensar para quê?
Amo o Rui
somos felizes
apesar de há uns dias que
no trabalho
na minha cabeça
não sei porquê...
um olhar vago
desinteressado
não sei porquê
nunca parei para pensar…
Pensar para quê?
Não gosto dele… tenho a certeza.
Amo o Rui.
Amo o Rui.
Amo o Rui…
Amo o Rui, Simão. Entendes? Amo o Rui.

Monday, October 05, 2009

Então não se vê logo?

Havia qualquer coisa nos olhos dela
ou nos meus olhos a olharem os olhos dela
(que nestas coisas nunca se sabe muito bem)
que desafiava em mim uma paternidade desconhecida.
Era triste
o olhar
dela
ou o meu olhar para ela
(que nestas coisas…)
a provocar em mim uma vontade irresistível de abraçá-la
ou de abraçar-me a ela
(…nunca se sabe muito bem).
Trabalhava
ela
num cafezito de esquina, para os lados da Av. da Igreja
não na Av. da Igreja
para os lados
onde eu costumava parar ao fim da tarde.
Nunca lhe conhecera um sorriso
Não diria antipática
apenas
nunca lhe conhecera um sorriso.
Até ao dia em que, com um guardanapo, fiz uma coisa esquisita e, quando veio à mesa com a bica do costume, lhe passei para as mãos num
- Tome.
Ficou a olhar aquilo. A tentar, como eu, encontrar algum sentido para além de
- Tome.
mas porque sentido nenhum, por mais que a imaginação
é um gato pardo
um boi almiscarado
uma bobina de indução termoeléctrica
(se imaginasse o que isso fosse)
a perguntar
- O que é isto?
num alçar de sobrancelhas
arcos finos, cinzelados à pinça
reveladoras, só por isso, de alguma esperança na viva; na sorte; em algo que seja
chamem-lhe fado os mal fadados
(que nestas coisas nunca se sabe muito bem)
- O que é isto?
(pronuncia perfeita)
e eu
com a maior das obviedades
- É uma cegonha! Então não se vê logo?
porque não me lembrei
(e se lembrasse também não o diria)
- É uma vontade irresistível de abraçá-la.
ou de
- Abraçar-me a si.
(que nestas coisas…)
Por isso
não podendo dizer outra coisa
já que nem gato pardo, nem boi almiscarado
uma vontade termoeléctrica de bobinar-me em si
de a bobinar em mim
uma vontade termoeléctrica
uma bobina de indução
a dizer
- É uma cegonha! Então não se vê logo?
E um rir a não se lhe segurar aos lábios.
Não há como uma mulher de olhos tristes apanhada desprevenida pela graça.
Riu. Levou a mão à boca, onde um dente de ouro brilhava menos que os seus olhos
ou os meus olhos a olharem os olhos dela
(que nestas coisas nunca se sabe muito bem)
infantis
os meus olhos
os dela
a provocar em mim uma vontade irresistível de levá-la dali, pegá-la ao colo, aninhá-la em mim, encostar-lhe a cabeça ao peito e dizer
- Vai tudo correr bem.
como se alguma coisa me dissesse
os seus olhos, talvez
os meus a olharem os dela
que a vida não está fácil
os seus olhos, talvez
os meus a olharem os dela
a provocar em mim uma vontade irresistível de levá-la dali
de ser eu também criança aninhada ao colo
(que nestas coisas…)
o colo que se dá é o colo que se recebe.
Riu. Agradeceu sem jeito o objecto sem jeito
(pronuncia perfeita)
cegonha alguma
coisa alguma
(bobina de indução termoeléctrica)
apenas
- …uma vontade irresistível de abraçá-la.
ou de
- Abraçar-me a si.
(…nunca se sabe…)
pois não podia dizer outra coisa
já que nem gato pardo, nem boi almiscarado
apenas
- É uma cegonha! Então não se vê logo?
Quando saí, tornou a sorrir. Um troco em forma de dentes à mostra
(afinal eram dois
os de ouro)
De modo que na tarde seguinte
e na seguinte à seguinte
um sorriso ao chegar, outro com o café, e outro ao sair. Como uma prescrição médica. E eu a pensar que
um dia destes
não hoje
um dia destes
que um homem na minha idade
apesar de não acusar os anos
(sessenta e oito no fim do mês)
reformado e viúvo
tem o seu quê de timidez
mas um dia destes
eu a pensar
não hoje
um dia destes
convido-a para sair. Porque não? Dois anéis nos dedos. Aliança alguma. Dois anéis. Aliança alguma. De modo que
Porque não?
um homem na minha idade
reformado e viúvo
Porque não?
Uma companhia é uma companhia. E depois deixava-lhe tudo, que nem filhos nem sobrinhos.
Aninhá-la em mim
aninhar-me nela
que um homem na minha idade

abraçá-la
abraçar-me a ela
juntar duas vidas num viver só
até ao dia que Deus quiser
e depois…
e depois deixar-lhe tudo
cegonhas de papel
um apartamento na avenida do Brasil
a continha do banco
o pecúlio de uma vida de pouca coisa, mas séria
deixar-lhe tudo
de modo a ela
ainda nova
ficar assegurada
que a vida não está fácil
e parece-me que não vai estar nunca.

Sunday, October 04, 2009

Nome: Vida / Apelido: Ironia do Caralho

Sabem lá vocês o que é amar a Deus de cu para o ar!
- Ah e tal, matou a mulher… Era passar o resto da vida lá dentro!
Como se diferença alguma entre oito anos e o resto da vida.
Sabem lá vocês…
onde fica o fim da vida. A vida nem sempre termina na morte. Há vidas que nunca chegam a arrancar, apesar dos cadáveres
no topo de uma mesa
com um bolo à frente
enfeitado de velas
e um rebanho de ovelhas a balir desafinadas
(porque nunca se cantam parabéns afinados)
a bater os casquinhos no fim
por mais um ano de morte viva.
Sabem lá vocês…
o que é roer cadeia.
Só homens
tudo ao monte
tudo áspero
como uma barda de dois dias
lençóis de pano cru
as mãos de um trolha…
que na cadeia não há cremes
nem sabonete líquido
(sabonete líquido é outra coisa)
há sabão
duro
cheio de pêlos
escorregadio
como as enguias que
mal damos por elas
- Pst!
mal damos por elas
- Apanha aí.
e o jeito é só um.
Sabem lá vocês o que é amar a Deus de cu para o ar!
Um azar na vida. Um copo a mais, uma discussão fora de horas, um estalo sem memória, uma força mal medida e
- …matou a mulher… Era passar o resto da vida lá dentro!
Um cadáver no chão, um fio de sangue no tapete branco da sala, na quina da mesa de mármore…
Tantas vezes que a Zaida
- Cuidado com tapete, Zé Pedro!
- Ainda hás-de sujar o tapete, Zé Pedro!
- O tapete, Zé Pedro!
Tantas vezes que a Zaida
- … Zé Pedro!
mais a porcaria do tapete. Tantas vezes que…
um copo fora de horas
estalo mal medido
azar
uma discussão sem memória
força a mais
e a vida
um fio de sangue no tapete branco da sala
que o apelido da Vida é Ironia do Caralho.
Tantas vezes que a Zaida
- É só mulheres!
desconfiada
com razão
desconfiada, ainda assim
- É só mulheres!
a Zaida
mal poderia imaginar que agora
o apelido da vida
só homens
tudo ao monte
tudo áspero
como uma barda de dois dias
lençóis de pano cru
as mãos de um trolha…
que na cadeia não há cremes
nem sabonete líquido
(sabonete líquido é outra coisa)
há sabão
duro
cheio de pêlos
escorregadio
como as enguias que
mal damos por elas
- Pst!
mal damos por elas
- Apanha aí.
e o jeito é só um.
Sabem lá vocês o que é amar a Deus de cu para o ar!
- É só mulheres!
a Zaida
- É só mulheres!
É só mulheres!?
O último apelido da vida é que é só mulheres!
Só homens!
Só homens, Zaida!
Só homens…
Tudo ao monte
tudo áspero
como uma barda de dois dias
lençóis de pano cru
as mãos de um trolha
que
mal damos por elas
- Pst!
mal damos por elas
- Apanha aí.
Ironia do Caralho
é esse o apelido da vida
vida que
nem sempre termina na morte
como a da Zaida
um fio de sangue
na minha cabeça para o resto dos meus dias
um fio de sangue
e uma vontade de gritar
- Cuidado com o tapete!
Sempre que um fio do sangue
do nariz
do canto da boca
de entre as pernas, no primeiro dia em que
- Pst!
uma vontade de gritar
no primeiro dia em que
- Apanha aí.
uma vontade de gritar
que na cadeia não há cremes
nem sabonete líquido

sabão duro
cheio de pêlos
escorregadio
como o chão da sala
apesar do tapete
onde a Zaida
- … Zé Pedro!
um fio de sangue
para o resto dos meus dias
que oito anos, ou o resto da vida, vai dar no mesmo
como vai dar no mesmo
Vida, ou Ironia do Caralho.

Tuesday, September 01, 2009

Amor em coma

Hoje, à saída do hospital, quando demos as mãos, senti-me como o teu pai, que acabávamos de visitar
(porque parecia mal não o visitarmos)
embora ele, nem ali para nós
para a vida
para coisíssima nenhuma
(como sempre se queixou a tua mãe)
ligado ao ventilador
em coma profundo
esperança alguma
(pois quem está morto não tem esperança)
apesar do ventilador garantir
- Garanto!
a insuflar
a desinsuflar
- Garanto!
estar vivo.
Hoje
à saída do hospital
quando demos as mãos
(não sei que mão procurou que mão)
(se ambas)
(sequer se foi uma mão aquilo que procurou aquilo que procurou a mão)
(ou ambas)
hoje
quando demos as mãos
senti que não nos… qualquer coisa… há muito tempo
o amor em coma
esperança alguma
porque o que está morto
como quem está morto
não tem esperança
apesar do ventilador
das mãos
a insuflar(em)
a desinsuflar(em)
dois sapos húmidos, corações esverdeados pelo bolor dos dias
feitos o do teu pai que
de repente
rebentou com um cigarro na boca
pum
morto
como quando em criança no quintal da tia Amélia com o Jorge e o Fernando
- Abre-lhe a boca, pá!
ao coração
ao sapo
- Abre-lhe a boca, pá!
um cigarro
conquistado às escondidas numa gaveta da sala
e era vê-lo insuflar
insuflar
insuflar
como o coração do teu pai
pum
morto
como o nosso amor
(se é que algum dia)
amor
pum
morto
apesar do ventilador
arreliado, já
- Garanto! Já disse! Garanto!
estar vivo
morto
a ganhar cheiro
como uma casca de banana que nos caiu da mão para trás do sofá num serão qualquer, algures no tempo, e por lá ficou
a ganhar cheiro
apodrecendo num canto
como o teu pai.
Hoje
à saída do hospital
quando demos as mãos
(ou estas se deram)
uma sensação
qualquer coisa
uma sensação
em jeito de quem acordasse de um coma profundo
como se a tua mão
a minha mão
pás eléctricas de um desfibrilhador
num choque violento, ao menor contacto, arrancando-me, por instantes, ao coma, trazendo-me à cabeça
ao coração
à cabeça
a qualquer coisa
um sofá
algures no tempo
há muito tempo
uma casca de banana a cair-nos da mão.
Demos as mãos. Não demos mais nada. E seguimos de mão dada, calados, que faz muito tempo dissemos tudo.
Seguimos
calados
faz muito tempo
dissemos tudo
e por isso
não demos mais nada
e seguimos
calados
cada qual na sua vida privada
como quando nos juntamos para a cópula a que depois de eu me vir chamamos amor
mas amor nenhum
casca de banana apodrecida atrás do sofá
amor nenhum
vida nenhuma no teu pai
apesar do ventilador garantir
- Garanto!
a insuflar
a desinsuflar
- Garanto!
arreliado, já
- Garanto! Já disse! Garanto!
estar vivo.
Do mesmo modo que garantiria estar vivo o nosso amor só porque uma descarga de mãos nos fez estremecer o miocárdio
(acho que a ti também).
Mas não. Amor nenhum, vida nenhuma
casca de banana, apenas
apodrecida
atrás do sofá
pois uma descarga eléctrica não significa nada
como um dar as mãos
uns lábios mortos que encostamos por encostar quando nos juntamos para a cópula a que depois de eu…
não significa nada.
Uma descarga eléctrica. O que é que tem de especial? Uma descarga eléctrica
um formigueiro
é isso
um formigueiro que nos engana
nos ilude os sentidos
nos faz crer que o nosso amor
(o nosso amor!?
que seja!)
nos faz crer que o nosso amor
ainda vivo
como o teu pai
ligado às máquinas
por certo um formigueiro igual
mas vida nenhuma
uma questão de dias
(que a vida não é senão uma questão de dias)
mais dia, menos dia
pum
como um sapo de cigarro na boca
- Abre-lhe a boca, pá!
igual a
- Garanto!
e nem o teu pai
nem o sapo do quintal da tia Amélia
nem o nosso amor
(que seja!)
nem o nosso amor
vida alguma, já
que insuflar e desinsuflar não basta para estar vivo.
E seguimos
calados
faz muito tempo dissemos tudo
mãos dadas
cada qual na sua vida privada
como quando nos juntamos para a cópula
calados
passeio afora
a provocar inveja nos casais separados
a inveja do moribundo diante do doente terminal que se move ainda pelo próprio pé
pelas próprias mãos
terminal
apesar do ventilador
das mãos
terminal
apesar da inveja
casais como nós (ausentes de mãos) invejosos de nós, como nós
(acho que tu também)
invejosos de casais como nós
porque todos os casais
mais cedo ou mais tarde
como a morte
(uma questão de dias)
como nós.
E nisto
no olhar invejoso dos passantes
(ou eu a querer que
(olhar invejoso dos passantes)
nisto
no passamento que é tudo
um frio a surgir do nada
um medo
a lembrança do teu pai
do sapo no quintal da tia Amélia
a insuflar
já morto
a insuflar no entanto
como o nosso amor
(que seja)
já morto
um medo
um frio a surgir do nada
um azedume na boca
como se a boca um sapo insuflando a morte
um cigarro que nunca acendi
(nunca)
porque medo de
pum
medo
mais do que medo
qualquer coisa que as palavras não alcançam
um frio a surgir do nada
a apertar um pouco a mão
não eu
o medo
numa massagem cardíaca à altura da anca
num desespero
qualquer coisa que as palavras não alcançam
(pode ser medo)
a apertar um pouco
a mão
(acho que tu também
ou eu a querer que tu também)
um pouco a mão
um reflexo
capaz que reflexo
não bem um movimento
uma intencionalidade
um reflexo
como o miocárdio do teu pai
o último pulsar do sapo antes de rebentar
as melhoras da morte
a gerar em nós
(acho que em ti também
ou eu a querer que em ti também)
qualquer coisa próxima da esperança
da vida
nem uma coisa nem outra
apenas qualquer coisa próxima
um reflexo de vida
nada a ver com vida
um reflexo apenas
alguma coisa comparável a um ventilador, a garantir-nos
- Garanto!
ainda estarmos vivos.

Thursday, April 30, 2009

Diálogo Monológico

- Estou?
- Sou eu.
- Então se sabes que sou eu podias pelo menos fingir e ser simpático!
- Não, não estou a começar, André. Infelizmente!
- O que eu quero é saber como é que é logo. Ficaste de me dizer qualquer coisa, lembras-te?!
- Estás sempre muito ocupado. Só os outros é que não fazem nada.
- Que humor é que queres que eu tenha, André? Estive a tarde toda à espera que me ligasses para combinarmos as coisas. Não me posso comprometer com as pessoas sem saber como é que é contigo, e tu, nem ai nem ui. E ainda tens o desplante de me dizer, com um arzinho todo calmo, que estou com um “humozinho que vai lá vai”.
- Pelo amor de Deus, André! Agora digo-te eu, não comeces. Como é que é afinal?
- Ó André, caramba! Como é que é o quê? Vamos ou não vamos?
- Ainda tens de ver? É que só podes estar a brincar comigo!
- Se tu te lembrasses é que eu me admirava.
- E quando é que sabes?
- Daqui a uma hora!
- Eu disse à Sónia que o mais tardar às quatro horas lhe dizia alguma coisa. São três e meia.
- Então se está bem, vamos, porque é que é que disseste que só daqui a uma hora é que sabias?
- E agora já não precisas de falar com o Director?
- Vê lá, não arranjes problemas por causa de mim!
- Não, não estou a ser chata, André! Tu é que te esqueces das coisas que combinas comigo e depois e vens com desculpazinhas esfarrapadas, como os miúdos.
- Vá, esquece! Não vale a pena estar agora a discutir isso. Há-de ser sempre a mesma coisa!
- Como é que é, apanhas o Ruben e deixa-lo na tua mãe?
- Ó André, sabes perfeitamente que estou sem carro.
- Não te lembraste? Novidade!
- Sai às cinco. Nem sequer sabes a que hora a que o teu filho sai do colégio!
- Não estou a pegar por tudo e por nada, André. Agora se tu achas que estares-te nas tintas para tudo o que não tenha a ver directamente contigo é normal, então se calar estou a pegar por tudo e por nada.
- Claro, falamos depois! Contigo é sempre depois!
- Sim, vá, não interessa. Apanha mas é o teu filho e deixa-o na tua mãe. Ah, e avisa-a que ele dorme lá hoje. Mas não te esqueças, senão já sabes como é.
- Como é quê? Parece tu que não sabes como é! Ah que Deus que nunca me dizem para onde vão, quando é que vêm, e fica aqui o menino, e não sei se o deito, se espero por vocês. Ninguém se preocupa comigo; só sirvo para tapar buracos… nhanhanha nhanhanha…
- Oh! Não é verdade, queres ver?
- Ó André, não estou nada em dia não. Que maçada!
- É mentira o que eu disse? Parece que não conheces a tua mãe.
- Pronto! Mas eu disse que a minha é melhor? Quem parece que está a querer embirrar és tu.
- Claro! Não fosse sempre eu a começar! Eu disse apenas para deixares o Ruben na tua mãe e para a avisares de que o neto dela dorme lá hoje, mais nada.
- O que eu disse foi que, se não lhe dizes ela fica preocupada.
- Pronto, não foi isso que eu disse. Esquece. Tens razão.
- Sim, sim… Se não tivesses é que eu me admirava!
- Bem, esquece lá isso. Avisa-a, é só o que eu te peço. Ah, e já agora, se não for abusar muito do meu marido, passa na lavandaria e apanha-me o vestido que lá deixei.
- É nas amoreiras. Conheces outra?
- Sim, no centro comercial.
- Não, não precisas de nenhum talão. Diz que é para mim, elas sabem.
- Não, não quero mais nada. A não ser que me apanhes às seis.
- Espero lá em baixo.
- Mas custa-te muito dar a volta? Não vens de carro?
- Oh!
- Toda a gente sai daqui, só para ti é que é muito trânsito.
- É só porque estou carregada. Tenho uma caixa de dossiers, a pasta, a mala, o portátil… Se achas que são só dois passinhos com isto tudo às costas.
- Mas se te custar muito, diz, que eu apanho um táxi. Vê lá, não apanhes um esgotamento nervoso no trânsito por minha causa.
- É em Cascais.
- Eu já tinha-te dito, André.
- Que culpa tenho eu que a Sónia e o Marcelo vivam em Cascais, que seja hora de ponta, sexta-feira e esteja tudo a sair de Lisboa?
- Olha, se é para isto, mais vale dizeres de uma vez que não queres ir.
- Parece! São só complicações!
-Pronto, está bem.
- Então vá.
- Sim, às seis.
- Até logo.

Reflexo

E a vir-me à memória, nós
agora que te foste embora
nós na roulotte do teu tio
nós em Armação de Pêra
nós na casa de campo do Paulo e da Marta
nós na Arrifana
nós no banco de trás do carro dos meus pais
como a Anita no Jardim Zoológico
a Anita no Parque
a Anita na Floresta
nós
a vir-me à memória, nós
agora que te foste embora
porque de repente
ou eu a achar que de repente
(agora que te foste embora)
os meus olhos no teu espelho
à procura de restos de ti
uma sombra
uma ponta de cabelo
um resto de brilho dos teus olhos, que tantas horas ali pousaram
(que o espelho é o poleiro dos olhos)
tristes
tantas horas ali
interrogativos
à procura de ti
como eu agora que te foste embora
à procura de ti
um resto
alguma coisa esquecida
(tu que eras tão distraída…)
alguma coisa te há-de ter ficado para trás
alguma coisa deves ter esquecido entre um retoque de batom e uma escovadela de rímel…
alguma coisa…
desespero
(não o substantivo, o verbo)
desespero
alguma coisa
mas nada
apenas eu
o mesmo que nada
a minha cara transtornada pela tua ausência.
Onde será que os espelhos guardam os reflexos?
Pergunto-lhe, aos gritos
desgraçado
desespero
(… o verbo)
desespero
arranco-o da parede, chocalho-o, louco…
tens de cair
tens de cair
tens de cair
alguma coisa tua
uma sombra
uma ponta de cabelo
um resto de brilho dos teus olhos…
Por Deus, alguma coisa!
um resto
um sinal de ti.
Mas nada de coisa nenhuma
apenas eu
o mesmo que nada
a minha cara transtornada pela tua ausência.
Onde será que os espelhos guardam os reflexos?
pergunto
aos gritos
atirando-o ao chão
desgraçado
num revolver de cacos
sou mil pedaços, agora
que te foste embora
mil pedaços
mil nadas
mil caras transtornadas pela tua ausência
espalhados
dentro
fora de mim
as caras, os cacos
transtornados
fora de si
dentro
fora de mim
louco
os dedos em sangue e…
nada
agora que te foste embora
apenas eu
o mesmo que nada
em mil pedaços.
Não creio em superstições absurdas: sete anos de azar. Sem ti, a vida toda. Não me chegaria a vida toda a partir espelhos para cobrir o azar que é não ter-te
alguma coisa tua
uma sombra
uma ponta de cabelo
um resto de brilho dos teus olhos…
alguma coisa tua…
Por Deus, alguma coisa!
um resto
um sinal de ti
alguma coisa esquecida
(tu que eras tão distraída…)
alguma coisa te há-de ter ficado para trás
alguma coisa deves ter esquecido entre um retoque de batom e uma escovadela de rímel…
alguma coisa
alguma coisa

Sete anos de azar? Quem dera sete anos de azar e depois
tu
alguma coisa tua de volta ao espelho
(a outro espelho)
uma sombra
uma ponta de cabelo
um resto de brilho dos teus olhos…
Os dedos em sangue, mas de ti…
nem sombra.
Sete anos de azar
sete anos de desespero
(o substantivo, agora)
sete anos no meio dos cacos
sete anos na merda
sete anos no Tibete…
como a Anita no circo
a Anita no Ballet
a Anita na cozinha
uma espécie de penitência: sete anos da tua ausência; sete anões
ou lá como se diz anos grandes!
Sete anos. O que são sete anos!? Azar é não encontrar-te aqui, onde sei que estás
porque sei que estás
tens de estar
alguma coisa te há-de ter ficado para trás
que os reflexos, como os espíritos, não desaparecem da noite para o dia
alguma coisa
no meio dos cacos
mil lamelas de vidro salpicadas de sangue sob o meu olhar microscópico na procura de ti
caco a caco
dia a dia
(reflexo estilhaçado da nossa existência).
Eu sei que estás
ainda há cacos
de espelho
de mim
de nós
eu sei que estás
ainda há cacos
e enquanto há cacos há esperança.

Wednesday, April 01, 2009

Quando estamos carentes…

A Ana, nua, é uma mulher com movimentos de gata. Estica-se, rebola, ronrona e entrega-se num abandono manso que as palavras que conheço me não bastam para o explicar. Ana tem vinte e nove anos e quando não está na cama comigo preocupa-se com a idade. Não é muito bonita, tem sardas no peito magro, dedos compridos, púbis negra, ligada ao umbigo por um carreiro de penugem descolorada. Podia dizer que Ana é esguia, mas já lhe referi os dedos e a magreza do peito. Se não refiro mais é, talvez, porque Ana seja apenas isto. Insisto: se não refiro mais… apenas isto.
Embora pudesse encher a página com coisas de Ana… não o faço. Isto apenas me basta. E a quem lê… a quem lê tanto lhe dá, e mais espaço fica para compor como for. De Ana apenas mais três coisas: casada, mãe de um filho e minha amante.
Conhecemo-nos pela Internet. Facilitador de emoções e conversas
bonequinhos amarelos que falam por nós; uma flor, um “lol” e
um encontro na Sé
cafezinho discreto…
- Parece que nos conhecemos há muito tempo, já!
a Ana a dizer e eu a concordar.
Quando estamos carentes sentimos afinidade com um número muito maior de gente. Olhamos para alguém na rua que nos devolve o olhar e logo
- Parece que nos conhecemos há muito tempo, já!
E apesar de o saber
quando a Ana
- Parece que nos conhecemos há muito tempo, já!
eu a concordar
porque discordar é adiantar conversa e conversa não adianta nada.
De modo que

qualquer coisa que a Ana
- …, não achas?
eu
(que talvez nem achasse)
- Sem dúvida!
Porque quando estamos carentes concordamos com um número muito maior de gente. Olhamos para alguém na rua que nos devolve o olhar e logo
- Sem dúvida!
e daí a um encontro na Sé
cafezinho discreto
um pulinho
como dali para a minha cama
onde a Ana
nua
movimentos de gata
entregando-se
num abandono manso que as palavras que conheço me não bastam para o explicar
a garantir que
- Nunca tinha sentido isto antes.
Porque quando estamos carentes somos compatíveis na cama com um número muito maior de gente. Olhamos para alguém na almofada que nos devolve o olhar e logo
- Nunca tinha sentido isto antes.
porque quando estamos carentes a memória é uma coisa difusa, um suspiro de açúcar que engana a fome. Daí que
- Nunca tinha sentido isto antes.
e um olhar, um sorriso, um gesto parvo, uma carantonha, uma gargalhada, um abraço rebolado em lençóis adolescentes
e
- És tão parvo!
- … tão parva!
Porque quando estamos carentes achamos graça a um número muito maior de gente. Olhamos para alguém na dobra do lençol que nos devolve o olhar e logo
- És tão parvo!
- … tão parva!
em gargalhadas com vontade de infinito, porque nos sentimos apaixonados, já
tão certos, já, de que
- Acho que estou apaixonado…
- … apaixonada por ti!
Porque quando estamos carentes apaixonamo-nos por um número muito maior de gente. Olhamos para alguém na rua, na almofada, na dobra do lençol, que nos devolve o olhar e logo
- Amo-te!
prenhes de força, capazes de tudo
seguros da correspondência exacta entre o sentimento e a expressão
- Amo-te!
Porque quando estamos carentes amamos um número muito maior de gente. Olhamos para alguém no ecrã, que nos devolve um bonequinho amarelo, uma flor… e
- Amo-te!
“lol”
com a mesma facilidade com que
- Podemos encontrar-nos na Sé.
cafezinho discreto
e
num pulinho
movimentos de gata
sardas no peito magro, dedos compridos, púbis negra, ligada ao umbigo por um carreiro de penugem descolorada.
Não custa nada
um bonequinho amarelo, uma flor, um “lol”
e…
- Parece que nos conhecemos há muito tempo, já!
Afinal, quando estamos carentes sentimos afinidade com um número muito maior de gente. Olhamos para alguém na rua que nos devolve o olhar e logo
- Parece que nos conhecemos!?
- Há muito tempo, já!

Dez cêntimos

- Olhe, desculpe! Eu sou do Barreiro e fui assaltado. Vim aqui à Loja do Cidadão tratar do bilhete de identidade
que vou para Espanha trabalhar daqui a duas semanas
o cunhado de um primo meu, que vive na Suiça, tem um restaurante em Sevilha e arranjou-me lá trabalho
e como o B.I. estava quase a caducar, vim aqui tratar disso
que lá no Barreiro demora muito mais tempo.
Mas enganei-me na saída do metro
que eu não conheço muito bem Lisboa
e saí ali no Martim Moniz.
Andei às voltas, às voltas a ver se dava com isto, até que lá me resolvi a perguntar alguém.
Olhe, foi a minha desgraça!
Três tipos disseram-me que também iam para lá
marroquinos, ou não sei
que tinham de tratar de uns papeis e que se quisesse podia ri com eles.
Na minha boa fé lá fui.
Se eu soubesse!
Meteram-se por umas ruas estreitas e depois lá por uns becos…
e eu a achar aquilo esquisito
até que às tantas, viraram-se a mim e, olhe
marcaram-me todo
tenho aqui na perna, no braço…
E agora estou desesperado.
Roubaram-me tudo.
Até o telemóvel.
Que senão ligava ao meu cunhado
que ele trabalha ali para o Prior Velho, ou Sete Rios, ou o que é que é
e ele vinha-me buscar
mas nem sei o número de cor
que uma pessoa agora habitua-se a guardar tudo no telemóvel.
Sacanas!
Ainda para mais a minha sobrinha faz anos hoje.
Dois aninhos!
Olhe, tinha uma fotografia dela na carteia. Até lha mostrava. Mariana. Chama-se mariana. E eu… olhe
estou todo dorido, minha senhora. E tenho a roupa toda suja, até me rasgaram o casaco
Sacanas, pá!
Estes não apanha a polícia. Tá quéto! Agora e fosse eu, ou a senhora…
Eu ainda pensei ir à polícia! Mas neste estado? Iam mesmo acreditar em mim. Tenho umas dores neste braço que nem imagina, minha senhora.
Até tenho vergonha de estar aqui a incomodar as pessoas. Ainda hão-de pensar que é para droga. E neste estado. Eu pensava o mesmo! Mas não é minha senhora. Juro que não é. Pela saúde da minha sobrinha, que é coisa que mais amo nesta vida.
Mas estou desesperado. Estou aqui há mais de uma hora para arranjar isto, minha senhora: um euro e meio. Mas neste estado quem é que me ajuda? Se a senhora pudesse. São só dez cêntimos que me faltam, minha senhora. Dez cêntimos para o bilhete.

Gina

Gina
(já de si o nome é mau)
trabalhava a dias em casas particulares e a noites
(fins-de-semana apenas)
em casas… particularmente.
Cinjamo-nos ao que importa: a dias em casas particulares. Dois filhos: Berta e Lucas. Ambos mulatos
de pais diferentes
e ela
Gina
(já de si o nome…)
branquinha como um cadáver exangue. E como um cadáver, magra; peito nenhum. O rosto… nada de especial
aliás
(para vinte e sete anos)
muito mal tratadinho.
Numa orelha, nem um furo, na outra, uma colecção de argolas, aranhas, meias-luas, o diabo…
Calças de ganga ruças
sempre…
minto
quase sempre ruças.
Ténis grandes, tipo bota, e t-shirt branca com qualquer coisa estampada
sempre…
minto
quase sempre estampada
letras, figuras, abstracções, o diabo…
Perfume? Desodorizante, talvez. É capaz que, desodorizante. Agora que penso nisso, é capaz que, desodorizante
capaz de jurar que desodorizante.
Olhos baços. Apenas para enfeitar o rosto.
Gina
a dias
a noites
(fins-de-semana apenas)
… particularmente.
Berta e Lucas
pais diferentes
ambos pretos
mulatos os filhos
a garantir que
(ainda que se não possa provar)
Gina
(já de si o nome é mau)
um gosto especial pelo exótico
(exótico para nós, caucasianos descoloridos)
diria.
Fazia dias
(noites…
…particularmente)
que não aparecia pelo bairro. Os filhos
Berta e Lucas
ambos mulatos
de pais diferentes
de pais ausentes
dois dias em casa, fechados à fome.
Fazia dias
(noites…
…particularmente)
Que
Gina
(já de si o nome é mau)
que não aparecia
até que a notícia
no lugar das calças ruças
da orelha intacta
ao contrário dos braços, das pernas, das mãos…
nem um furo
a notícia a chegar primeiro que a colecção de argolas, aranhas, meias-luas, o diabo…
a notícia
num sprint de etíope esganado com fome
a passar pelos ténis
pela t-shirt
qualquer coisa estampada
letras, figuras, abstracções, o diabo…
dispensando perfume…
Desodorizante, talvez.
A notícia
num sprint de corcel pela encosta da Maria Pia
nomeando os perigos do desporto equestre
afirmando que quem se mete na equitação arrisca-se a cair do cavalo.

Monday, March 02, 2009

Abracadabra

No dia em que o meu tio Américo se transformou num javali foi a loucura naquela casa. Eu não teria mais de quatro anos, mas recordo-me como se ontem. A princípio tive medo, claro, e não queria acreditar quando a mamã
- É o tio Américo, filho.
fazendo-lhe festas na cabeça de porco desgrenhado.
- Não tenhas medo, tonto.
como se fosse dizer
- Não tenhas medo, tonto.
o medo
puf
num passe de mágica
igual ao tio Américo
naquele almoço de domingo entre o arroz doce e o café
- Senhoras e senhores, convosco, Péricles, o albatroz dos sete mares!
e nisto
puf
um javali
arrancando um abanão geral à plateia de familiares que, a aguardar por um penado mergulhão
puf
sai-lhes um foçador de trufas de capachinho à António Calvário.
- Não vês que é o tio, palerma?! Olha lá para o cabelo.
E de facto
- … o cabelo
o penteado
risquinho ao lado entre o ruivo e o louro, a manter-se intacto. Assim como os olhos, pequenos e curiosos… iguais.
- Não vês que é o tio, palerma?! Olha lá para o cabelo.
e o capachinho
a garantir-me que
- … o tio…
palerma
- …o tio, palerma…
o tio palerma
o capachinho
a descolar-me, aos poucos, das saias da mamã, que lhe arrancava grunhidos satisfeitos com a mão sobre o pêlo e a mim gargalhadas felizes. Também lhe quis fazer uma festa. Era o meu tio preferido. Não me levem a mal os outros, mas…
o meu tio preferido.
Fiz-lhe a festa
(era quase do meu tamanho)
arrancando-lhe um grunhido de contentamento
um brilho nos olhos
pequenos e curiosos…
Quem não achou graça nenhuma foi a tia Zulinda, mulher do tio Américo, que
- Isso não tem graça nenhuma, Américo!
apesar das gargalhas de toda a gente.
Mas o tio Américo parecia não estar nem ali para os amuos dela, passando o resto da tarde entre as pernas das cunhadas.
- És um sacana, ó Américo!
o meu tio Roberto, quando o irmão lhe começou a foçar as saias à Guidinha.
- Já chega, Américo!
mas não chegava. Não é todos os dias que um homem pode ser um porco dos sete costados e foçar sem pejo vontades antigas, como era o caso da tia Guidinha.
- Ou paras imediatamente com isso…
a tia Zulinda
- … ou chateio-me a sério.
na sentença mais alta que pôde a vozinha fraca que lhe ficou da pleurisia.
- Ouviste o que eu disse, Américo?
aumentando meio tom esforçado à reprimenda.
E o tio Américo, que não podia responder, a levantar os olhos
pequenos e curiosos
a soltar um ronco
incompreensível
que a tia Zulinda entendeu como uma provocação, ou não teria ido à cozinha buscar a vassoura grande e varrê-lo ido para o quintal, deixando um silêncio fúnebre na sala.
Nos olhos de todos se via brilhar a esperança de que o tio Américo entrasse a qualquer momento pela janela num voo picado de albatroz e aterrasse em cima da mesa, entre os restos do almoço, anunciando, envolto numa nuvem de fumo
- Charã!
o homem que sempre foi, arrancando gargalhadas e aplausos a todos e lágrimas de contentamento e fúria à tia Zulinda, antes de descer para a beijar e apertar-lhe a bochecha no seu clássico
- Não custa nada, Dindinha!
Mas o tio Américo não veio e, ao fim de uma hora, uma excursão de família foi à rua, para dar com ele deitado sobre o capacho à espera de misericórdia.
O segundo grande silêncio formou-se, e nem o tio Sequeira que tinha sempre explicação para tudo se atreveu a abrir a boca. Pareciam começar a compreender que algo havia corrido mal naquele truque trocado, e que o tio Américo desta vez não seria capaz de desatar o nó górdio do feitiço.
- Ai, valha-me Nossa Senhora!
a tia Zulinda à beira do desmaio.
O ambiente adensou-se. A consternação era geral e só eu parecia achar graça àquela brincadeira. A minha mãe segurou-me pelo ombro, puxando-me quando me tentei aproximar do tio para lhe passar a mão pelo penteado.
Não estava a compreender. Uma hora atrás estavam todos divertidos e agora…
- É o tio Américo...
tive vontade de dizer
- Não tenham medo, tontos.
e quase me saiu
- Não vêem que é o tio, palermas?! Olhem lá para o cabelo.
mas um ronco interrompeu-me a intenção
um ronco fraco, indecifrável, mas cuja impotência dos olhos
pequenos e curiosos…
faziam compreender que estava arrasado.
Concordaram que talvez o tempo solucionasse ou remediasse a questão, e com dois cobertores fizeram-lhe uma cama na adega
ao lado do lagar
onde ainda em Setembro
mosto até à cintura
mosto que agora o afogaria
que de gatas não se pisam uvas.
Uma cama
dois cobertores
ao lado do lagar
duas voltas à chave
e a tarde a morrer baixinho
num gemer doído
a tarde
o meu tio Américo
mais do que a tarde
capaz que
mais do que a tarde
o meu tio Américo
baixinho
num gemer doído de quem sofre dentro de uma virgem de ferro em forma de porco-montês.
Eu não teria mais de quatro anos, mas recordo-me como se ontem
afinal
o meu tio preferido. Não me levem a mal os outros, mas…

Saturday, January 31, 2009

Já não sei como se começa

Já não sei como se faz, como se beija, o que se diz depois do sexo. Já não sei como se chega a casa e diz aos pais
 ao meu pai
 - Pai, este é o…
 - … o meu novo namorado.
 Não sei quantos foram. Sei. Claro que sei. Uma mulher não esquece nunca o frio que sente depois das pernas fechadas, das portas fechadas.
 E depois aos meus amigos
 às minhas amigas
 mais do que aos meus amigos
 às minhas amigas
 - … este é …
 - … o Bernardo.
 - … o António.
 - … o Miguel.
 - … o Kuka.
 e o meu pai
 - Isso é lá nome de gente?!
 Porque para o meu pai nenhum homem é ideal para mim.
 E pelo visto tem razão.
 De modo que agora
 cinco anos depois 
 três desde que terminou
 não sei como se chega a casa e se diz aos pais
 ao meu pai
 - Pai, este é o…
 - … o meu novo namorado.
 (Até porque já deixam de ser tão novos assim!)
 Brincadeira.
 Mas para além disso, muito antes disso tudo
 eu a não saber como se começa. 
 Tudo de novo: música preferida, viagem de sonho, filme da minha vida, o livro que mais me fez chorar…
 (O meu diário se o leio).
 Quero um homem já feito
 sem perguntas
 sem dúvidas
 existenciais ou físicas.
 E não sei se o Roberto…
 (um amigo, ainda)
 não sei, dizia
 se o Roberto o é
 apesar de seguro
 aparentemente seguro
 que aquilo que me dá a parecer é que os homens nunca são seguros. Bóias insufláveis que vão perdendo o ar, e no fim, ainda temos de ser nós a arrastá-los para terra. De modo que 
 não sei se o Roberto…
 apesar da sua aparência insuflada de dragão
 de crocodilo
 de orca
 das mil formas penduradas nas tendinhas da praia
 o homem que procuro.
 Procuro? 
 Acho que o amor da minha vida
 (se é que há um amor da minha vida)
  já passou por mim. 
 Não sei qual foi…
 Não sejas ridícula, Clara! Claro que sabes. Uma mulher não esquece nunca o frio que sente depois das pernas fechadas, das portas fechadas. Quando as noites ficam de repente maiores, intermináveis. O sono demora, como a felicidade que não chega por mais carneiros que se contem
 a felicidade não chega. A cama
 enorme
 coberta de Inverno, de um vento frio que se mete por debaixo dos lençóis, internando-se nos ossos, cobrindo-os de musgo…
 uma mulher não esquece nunca
 e é por isso que agora
 aos trinta e sete anos
 solteira, independente
 aparentemente forte, segura
 como o Roberto
 (um amigo, ainda)
 aparência insuflada 
 dragão
 crocodilo
 orca
 mil formas penduradas nas tendinhas da praia…
 agora
 aos trinta e sete anos
 aparência só
 solteira, independente
 forte, segura
 aparência 
 só
 a não saber já como se faz
 como se beija, o que se diz depois do sexo…
 como se chega a casa e diz aos pais
 ao meu pai
 - Este é o Roberto.
 aos meus amigos
 - Este é o Roberto.
 às minhas amigas
 mais do que aos meus amigos
 às minhas amigas
 - Este é o Roberto.
 às minhas amigas que vão dar gritinhos de felicidade por mim e quando eu
 à casa de banho
 a juntarem-se ao centro da mesa 
 num concílio de comadres
 para se questionarem se 
 - Será desta que ela desencalha?
 Cabras!
 O problema não é falarem, é ser verdade. Eu própria não tenho a certeza se o Roberto 
 (um amigo, ainda)
 o tal homem já feito
 sem perguntas
 sem dúvidas
 existenciais ou físicas
 que procuro.
 Procuro? 
 Não tenho a certeza.
 E os trinta e sete anos a baralharem-se as ideias, os sentimentos
 que a partir de certa idade deixamos de estar certas das nossas certezas. Nunca uma paixão é tão segura quanto aos doze anos, aos quinze anos, até mesmo aos dezoito o mundo não nos assusta porque tudo absoluto e seguro. 
 Mas aos trinta e sete…
 Claro que gosto do Roberto!
 É inteligente, bem disposto
 uma excelente pessoa…
 E parece que ao dizer
 excelente pessoa
 uma sensação de não gostar assim tanto.
 É atencioso
 o Roberto
 faz-me rir 
 sinto-me bem ao lado dele
 mas
 como é que se começa?
 Como é que se faz?
 Como é que se beija?
 O que é que se diz depois do sexo?
 Três anos sozinha. Não sei se já tinha dito.
 Ou melhor
 três anos sem ninguém
 que sozinha, creio, há muito mais. De modo que…
 não sei…
 como é que se chega a casa e diz aos pais
 ao meu pai
 - Pai, este é o…
 … Roberto… 
 … um amigo. (?)
 Aos meus amigos
 -este é o…
 … Roberto… 
 … um amigo. (?)
 às minhas amigas
 mais do que aos meus amigos
 às minhas amigas
 - Este é o Roberto… 
 … um amigo. (?)
 Tenho trinta e sete anos…
 Um amigo?
 e quando eu
 à casa de banho…
 Cabras! 
 E se no fim, o Roberto, mais uma bóia rota no mar inquieto da minha vida? Afinal, há um dia em que a bóia rebenta e por mais que lhe sopremos dentro, que apertemos o furo, com ambas as mãos, com ambos os braços, como ambas as pernas, como o corpo inteiro, o ar acabará por ir-se todo. 
 E talvez seja esse o medo
 não de o Roberto não ser
 que talvez seja
 não o de começar
 o de não saber como se faz
 como se beija
 o que se diz depois do sexo
 que isso talvez saiba
 (uma mulher não esquece nunca)
 não o de chegar a casa 
 - Pai, este é o Roberto, o meu novo namorado.
 junto dos amigos
 nem sequer das minhas amigas
 - Pessoal, este é o Roberto, o meu novo namorado.
 mas do dia em que tudo arrefece, o dia em que o Inverno se instala em nós, se mete por debaixo dos lençóis, internando-se nos ossos, cobrindo-os de musgo e por mais que as pernas se fechem, as portas se fechem, o calor, como o ar de uma bóia rota, acaba sempre por ir embora. 

Havia de ser comigo!

O Luís a pedir-me desculpa
 que perdera a cabeça
 que não sabia o que lhe tinha dado
 que não tornaria a acontecer
 a jurar
 - Juro…
 que não sabia o que lhe tinha dado
 que
 - … não torna a acontecer!
 e eu
 eu que sempre dissera alto
 - Um homem a mim só me batia uma vez!
 que jurava
 - Denunciava-o à polícia!
 eu que 
 quando a Catarina me contou que a Cármen 
 - … levou uma sova do marido que até manca de uma perna.
 a garantir
 - Havia de ser comigo!
 eu
 no dia em que o Luís
 - Desculpa, Ana! Desculpa!
 eu
 a mesma eu 
 a desculpar
 a não dizer nada a ninguém
 porque o Luís
 - Perdi a cabeça. Não sei o que me deu.
 porque o Luís
 - Juro que não torna a acontecer.
 porque o Luís
 - Juro!
 eu
 a mesma eu 
 a desculpar
 a dar a outra face, ou a perder a legitimidade para a negar
 a dizer para mim mesma que era um bom marido, que sabia que não se iria repetir, que perdera de facto a cabeça, que o provocara…
 sim, que o provocara
 que quando quero 
 eu sei
 sou provocadora
 a prová-lo, portanto
 a assumir parte da culpa
 do estalo
 dois dedos e meio
 polegar, indicador, meio anelar, a pertencerem-me…
 E quando a Catarina, umas semanas depois
 - A Cármen tornou a apanhar.
 eu
 silêncio
 -Ouviste o que eu disse?
 e eu que, perfeitamente
 a encolher os ombros
 a
 - Não quero saber mais dessa história.
 a não
 - Havia de ser comigo!
 e ao invés de
 - Havia de ser comigo!
 a
 - Não quero saber mais dessa história.
 porque o verbo mudara de tempo
 a encher-me de vergonha, como se algo o denunciasse em mim, nos meus gestos
 como se a minha face batida
 - Catarina! 
 a encher-se de sangue e vergonha
 - Catarina! Olha…
 a denunciar-me e à minha cobardia.
 Por isso, quando a Catarina
 - O que é que te deu?
 eu
 direitinha à maquina do café 
 cara baixa
 (nenhuma marca
 uma semana já
 nem no próprio dia
 mas)
 cara baixa
 maquina do café 
 - É bem feito! Que é para não ser parva. Quem leva o primeiro estalo merece uma sova. E das grandes!
 a expurgar a minha frustração
 até que a Catarina
 - Calma!
 e eu
 calma
 a voltar para a secretária
 papéis e teclas
 papéis e teclas
 papéis e teclas
 até às quarto e meia
 papéis e teclas…
 Até àquele dia, o Luís… pouco a dizer. Uma discussão ou outra, o normal. Quem não tem? Mas as discussões são um prenúncio
 sei-o agora
 soube-o sempre
 um alerta, um sinal, um indicador de doença. São a febre que acusa uma inflamação escondida. E um dia a voz põe-se em bicos de pés, como se o volume legitimasse as opiniões, e sai o primeiro
 - Estúpida de merda!
 o primeiro
 - Estúpida de merda é a tua mãe!
 e daí ao primeiro estalo uma distância muito curta
 porque quando se deixam as conversas fermentar, azedam.
 e agora
 - Desculpa, Ana! Desculpa!
 - Perdi a cabeça. Não sei o que me deu.
 - Não torna a acontecer.
 - Juro!
 E eu a pensar
 o casamento, a casa, o carro, as contas…
 filhos ainda não, mas
  famílias à mistura e 
 dizer o quê? 
 - O Luís deu-me um estalo? 
 O meu pai, a minha mãe, a minha irmã que
 tenho a certeza
 já apanhou do namorado
 um estúpido desocupado que lhe vive às custas
 a dizerem
 - Mas vais deixar tudo por causa disso?
 o meu pai que
 na minha mãe
 a minha mãe que
 do meu pai 
 a minha irmã
 que
 tenho a certeza
 do namorado
 um estúpido desocupado
 todos
 a
 - Mas vais deixar tudo por causa disso?
 de modo que eu 
 a desculpar
 porque o Luís
 - Desculpa, Ana! Desculpa!
 porque o Luís
 - Perdi a cabeça. Não sei o que me deu.
 porque o Luís
 - Não torna a acontecer.
 porque o Luís
 - Juro!
 E porque quem mais jura mais mente, quatro meses depois o Luís a perder a cabeça, a dar-me uma sova e a sair de casa sem 
 - Desculpa, Ana! Desculpa!
 a voltar a casa sem pedir desculpa
 a não me dirigir a palavra para coisa nenhuma
 a dormir no sofá
 não porque eu
 - Aqui…
 (no quarto)
 - …não entras!
 Um dia, dois dias, três dias… e eu a penar “vou à minha vida. Isto não é nada.” A lembrar-me da Catarina
 - A Cármen tornou a apanhar.
 a ter-lhe raiva
 (que sabe ela da vida? Nunca teve uma relação. Namorados, mil. Mas uma relação? Que sabe ela da vida? Casa, carro, contas, família… Que sabe ela para falar assim dos outros?)
 E no meio dos pensamentos 
 o meu pai
 a minha mãe
 a minha irmã
 - Mas vais deixar tudo por causa disso?
 A casa, o carro, as contas…
 filhos ainda não, mas
  famílias à mistura e 
 mais isto
 mais aquilo
 que desculpas não faltam quando as queremos dar
 como
 esperar mais um dia
 até ao próximo Sábado
 a jurar que 
 só até Sábado
 e Domingo e quarta e sexta e quinta e terça 
 segunda após segunda
 e nunca mais era Sábado,
 nunca mais o Luís
 - Desculpa, Ana! Desculpa!
 - Perdi a cabeça. Não sei o que me deu.
 nunca mais o Luís
 - Não torna a acontecer.
 - Juro!
 nunca mais 
 nem uma palavra.
 Nada!
 Mas porque haveria o Luís de me pedir perdão se eu própria não pedi?
 Se eu própria não…
 - Desculpa, Ana! Desculpa!
 Se eu própria não…
 - Perdi a cabeça. Não sei o que me deu.
 - Não torna a acontecer.
 - Juro!
 - Juro!
 - Juro!