Thursday, April 30, 2009

Reflexo

E a vir-me à memória, nós
agora que te foste embora
nós na roulotte do teu tio
nós em Armação de Pêra
nós na casa de campo do Paulo e da Marta
nós na Arrifana
nós no banco de trás do carro dos meus pais
como a Anita no Jardim Zoológico
a Anita no Parque
a Anita na Floresta
nós
a vir-me à memória, nós
agora que te foste embora
porque de repente
ou eu a achar que de repente
(agora que te foste embora)
os meus olhos no teu espelho
à procura de restos de ti
uma sombra
uma ponta de cabelo
um resto de brilho dos teus olhos, que tantas horas ali pousaram
(que o espelho é o poleiro dos olhos)
tristes
tantas horas ali
interrogativos
à procura de ti
como eu agora que te foste embora
à procura de ti
um resto
alguma coisa esquecida
(tu que eras tão distraída…)
alguma coisa te há-de ter ficado para trás
alguma coisa deves ter esquecido entre um retoque de batom e uma escovadela de rímel…
alguma coisa…
desespero
(não o substantivo, o verbo)
desespero
alguma coisa
mas nada
apenas eu
o mesmo que nada
a minha cara transtornada pela tua ausência.
Onde será que os espelhos guardam os reflexos?
Pergunto-lhe, aos gritos
desgraçado
desespero
(… o verbo)
desespero
arranco-o da parede, chocalho-o, louco…
tens de cair
tens de cair
tens de cair
alguma coisa tua
uma sombra
uma ponta de cabelo
um resto de brilho dos teus olhos…
Por Deus, alguma coisa!
um resto
um sinal de ti.
Mas nada de coisa nenhuma
apenas eu
o mesmo que nada
a minha cara transtornada pela tua ausência.
Onde será que os espelhos guardam os reflexos?
pergunto
aos gritos
atirando-o ao chão
desgraçado
num revolver de cacos
sou mil pedaços, agora
que te foste embora
mil pedaços
mil nadas
mil caras transtornadas pela tua ausência
espalhados
dentro
fora de mim
as caras, os cacos
transtornados
fora de si
dentro
fora de mim
louco
os dedos em sangue e…
nada
agora que te foste embora
apenas eu
o mesmo que nada
em mil pedaços.
Não creio em superstições absurdas: sete anos de azar. Sem ti, a vida toda. Não me chegaria a vida toda a partir espelhos para cobrir o azar que é não ter-te
alguma coisa tua
uma sombra
uma ponta de cabelo
um resto de brilho dos teus olhos…
alguma coisa tua…
Por Deus, alguma coisa!
um resto
um sinal de ti
alguma coisa esquecida
(tu que eras tão distraída…)
alguma coisa te há-de ter ficado para trás
alguma coisa deves ter esquecido entre um retoque de batom e uma escovadela de rímel…
alguma coisa
alguma coisa

Sete anos de azar? Quem dera sete anos de azar e depois
tu
alguma coisa tua de volta ao espelho
(a outro espelho)
uma sombra
uma ponta de cabelo
um resto de brilho dos teus olhos…
Os dedos em sangue, mas de ti…
nem sombra.
Sete anos de azar
sete anos de desespero
(o substantivo, agora)
sete anos no meio dos cacos
sete anos na merda
sete anos no Tibete…
como a Anita no circo
a Anita no Ballet
a Anita na cozinha
uma espécie de penitência: sete anos da tua ausência; sete anões
ou lá como se diz anos grandes!
Sete anos. O que são sete anos!? Azar é não encontrar-te aqui, onde sei que estás
porque sei que estás
tens de estar
alguma coisa te há-de ter ficado para trás
que os reflexos, como os espíritos, não desaparecem da noite para o dia
alguma coisa
no meio dos cacos
mil lamelas de vidro salpicadas de sangue sob o meu olhar microscópico na procura de ti
caco a caco
dia a dia
(reflexo estilhaçado da nossa existência).
Eu sei que estás
ainda há cacos
de espelho
de mim
de nós
eu sei que estás
ainda há cacos
e enquanto há cacos há esperança.

3 comments:

Alice atrás do Espelho said...

Queres fazer um jogo de espelhos?! =D se reflectires em contra luz as linhas do teu texto...eu mostro as minhas imagens em chão reluzente...mas como há mil reflexos em cada espelho...apanha os pedaços da tua esperança e edita mais um livro! =p

Bjs reflectidos

Carla said...

Olá, Norberto. Encontrei o link para o seu blog no seu livro, o qual ainda não comecei a ler. De qualquer forma, a curiosidade trouxe-me até aqui. Adorei este "Reflexos". Arrepiou-me o modo como bateu cá no fundo e fez reflexo em mim...
Um beijo

Carla said...

Perdão, "Reflexo".