Saturday, January 31, 2009

Havia de ser comigo!

O Luís a pedir-me desculpa
 que perdera a cabeça
 que não sabia o que lhe tinha dado
 que não tornaria a acontecer
 a jurar
 - Juro…
 que não sabia o que lhe tinha dado
 que
 - … não torna a acontecer!
 e eu
 eu que sempre dissera alto
 - Um homem a mim só me batia uma vez!
 que jurava
 - Denunciava-o à polícia!
 eu que 
 quando a Catarina me contou que a Cármen 
 - … levou uma sova do marido que até manca de uma perna.
 a garantir
 - Havia de ser comigo!
 eu
 no dia em que o Luís
 - Desculpa, Ana! Desculpa!
 eu
 a mesma eu 
 a desculpar
 a não dizer nada a ninguém
 porque o Luís
 - Perdi a cabeça. Não sei o que me deu.
 porque o Luís
 - Juro que não torna a acontecer.
 porque o Luís
 - Juro!
 eu
 a mesma eu 
 a desculpar
 a dar a outra face, ou a perder a legitimidade para a negar
 a dizer para mim mesma que era um bom marido, que sabia que não se iria repetir, que perdera de facto a cabeça, que o provocara…
 sim, que o provocara
 que quando quero 
 eu sei
 sou provocadora
 a prová-lo, portanto
 a assumir parte da culpa
 do estalo
 dois dedos e meio
 polegar, indicador, meio anelar, a pertencerem-me…
 E quando a Catarina, umas semanas depois
 - A Cármen tornou a apanhar.
 eu
 silêncio
 -Ouviste o que eu disse?
 e eu que, perfeitamente
 a encolher os ombros
 a
 - Não quero saber mais dessa história.
 a não
 - Havia de ser comigo!
 e ao invés de
 - Havia de ser comigo!
 a
 - Não quero saber mais dessa história.
 porque o verbo mudara de tempo
 a encher-me de vergonha, como se algo o denunciasse em mim, nos meus gestos
 como se a minha face batida
 - Catarina! 
 a encher-se de sangue e vergonha
 - Catarina! Olha…
 a denunciar-me e à minha cobardia.
 Por isso, quando a Catarina
 - O que é que te deu?
 eu
 direitinha à maquina do café 
 cara baixa
 (nenhuma marca
 uma semana já
 nem no próprio dia
 mas)
 cara baixa
 maquina do café 
 - É bem feito! Que é para não ser parva. Quem leva o primeiro estalo merece uma sova. E das grandes!
 a expurgar a minha frustração
 até que a Catarina
 - Calma!
 e eu
 calma
 a voltar para a secretária
 papéis e teclas
 papéis e teclas
 papéis e teclas
 até às quarto e meia
 papéis e teclas…
 Até àquele dia, o Luís… pouco a dizer. Uma discussão ou outra, o normal. Quem não tem? Mas as discussões são um prenúncio
 sei-o agora
 soube-o sempre
 um alerta, um sinal, um indicador de doença. São a febre que acusa uma inflamação escondida. E um dia a voz põe-se em bicos de pés, como se o volume legitimasse as opiniões, e sai o primeiro
 - Estúpida de merda!
 o primeiro
 - Estúpida de merda é a tua mãe!
 e daí ao primeiro estalo uma distância muito curta
 porque quando se deixam as conversas fermentar, azedam.
 e agora
 - Desculpa, Ana! Desculpa!
 - Perdi a cabeça. Não sei o que me deu.
 - Não torna a acontecer.
 - Juro!
 E eu a pensar
 o casamento, a casa, o carro, as contas…
 filhos ainda não, mas
  famílias à mistura e 
 dizer o quê? 
 - O Luís deu-me um estalo? 
 O meu pai, a minha mãe, a minha irmã que
 tenho a certeza
 já apanhou do namorado
 um estúpido desocupado que lhe vive às custas
 a dizerem
 - Mas vais deixar tudo por causa disso?
 o meu pai que
 na minha mãe
 a minha mãe que
 do meu pai 
 a minha irmã
 que
 tenho a certeza
 do namorado
 um estúpido desocupado
 todos
 a
 - Mas vais deixar tudo por causa disso?
 de modo que eu 
 a desculpar
 porque o Luís
 - Desculpa, Ana! Desculpa!
 porque o Luís
 - Perdi a cabeça. Não sei o que me deu.
 porque o Luís
 - Não torna a acontecer.
 porque o Luís
 - Juro!
 E porque quem mais jura mais mente, quatro meses depois o Luís a perder a cabeça, a dar-me uma sova e a sair de casa sem 
 - Desculpa, Ana! Desculpa!
 a voltar a casa sem pedir desculpa
 a não me dirigir a palavra para coisa nenhuma
 a dormir no sofá
 não porque eu
 - Aqui…
 (no quarto)
 - …não entras!
 Um dia, dois dias, três dias… e eu a penar “vou à minha vida. Isto não é nada.” A lembrar-me da Catarina
 - A Cármen tornou a apanhar.
 a ter-lhe raiva
 (que sabe ela da vida? Nunca teve uma relação. Namorados, mil. Mas uma relação? Que sabe ela da vida? Casa, carro, contas, família… Que sabe ela para falar assim dos outros?)
 E no meio dos pensamentos 
 o meu pai
 a minha mãe
 a minha irmã
 - Mas vais deixar tudo por causa disso?
 A casa, o carro, as contas…
 filhos ainda não, mas
  famílias à mistura e 
 mais isto
 mais aquilo
 que desculpas não faltam quando as queremos dar
 como
 esperar mais um dia
 até ao próximo Sábado
 a jurar que 
 só até Sábado
 e Domingo e quarta e sexta e quinta e terça 
 segunda após segunda
 e nunca mais era Sábado,
 nunca mais o Luís
 - Desculpa, Ana! Desculpa!
 - Perdi a cabeça. Não sei o que me deu.
 nunca mais o Luís
 - Não torna a acontecer.
 - Juro!
 nunca mais 
 nem uma palavra.
 Nada!
 Mas porque haveria o Luís de me pedir perdão se eu própria não pedi?
 Se eu própria não…
 - Desculpa, Ana! Desculpa!
 Se eu própria não…
 - Perdi a cabeça. Não sei o que me deu.
 - Não torna a acontecer.
 - Juro!
 - Juro!
 - Juro!

1 comment:

Anonymous said...

brutal