O Luís a pedir-me desculpa
que perdera a cabeça
que não sabia o que lhe tinha dado
que não tornaria a acontecer
a jurar
- Juro…
que não sabia o que lhe tinha dado
que
- … não torna a acontecer!
e eu
eu que sempre dissera alto
- Um homem a mim só me batia uma vez!
que jurava
- Denunciava-o à polícia!
eu que
quando a Catarina me contou que a Cármen
- … levou uma sova do marido que até manca de uma perna.
a garantir
- Havia de ser comigo!
eu
no dia em que o Luís
- Desculpa, Ana! Desculpa!
eu
a mesma eu
a desculpar
a não dizer nada a ninguém
porque o Luís
- Perdi a cabeça. Não sei o que me deu.
porque o Luís
- Juro que não torna a acontecer.
porque o Luís
- Juro!
eu
a mesma eu
a desculpar
a dar a outra face, ou a perder a legitimidade para a negar
a dizer para mim mesma que era um bom marido, que sabia que não se iria repetir, que perdera de facto a cabeça, que o provocara…
sim, que o provocara
que quando quero
eu sei
sou provocadora
a prová-lo, portanto
a assumir parte da culpa
do estalo
dois dedos e meio
polegar, indicador, meio anelar, a pertencerem-me…
E quando a Catarina, umas semanas depois
- A Cármen tornou a apanhar.
eu
silêncio
-Ouviste o que eu disse?
e eu que, perfeitamente
a encolher os ombros
a
- Não quero saber mais dessa história.
a não
- Havia de ser comigo!
e ao invés de
- Havia de ser comigo!
a
- Não quero saber mais dessa história.
porque o verbo mudara de tempo
a encher-me de vergonha, como se algo o denunciasse em mim, nos meus gestos
como se a minha face batida
- Catarina!
a encher-se de sangue e vergonha
- Catarina! Olha…
a denunciar-me e à minha cobardia.
Por isso, quando a Catarina
- O que é que te deu?
eu
direitinha à maquina do café
cara baixa
(nenhuma marca
uma semana já
nem no próprio dia
mas)
cara baixa
maquina do café
- É bem feito! Que é para não ser parva. Quem leva o primeiro estalo merece uma sova. E das grandes!
a expurgar a minha frustração
até que a Catarina
- Calma!
e eu
calma
a voltar para a secretária
papéis e teclas
papéis e teclas
papéis e teclas
até às quarto e meia
papéis e teclas…
Até àquele dia, o Luís… pouco a dizer. Uma discussão ou outra, o normal. Quem não tem? Mas as discussões são um prenúncio
sei-o agora
soube-o sempre
um alerta, um sinal, um indicador de doença. São a febre que acusa uma inflamação escondida. E um dia a voz põe-se em bicos de pés, como se o volume legitimasse as opiniões, e sai o primeiro
- Estúpida de merda!
o primeiro
- Estúpida de merda é a tua mãe!
e daí ao primeiro estalo uma distância muito curta
porque quando se deixam as conversas fermentar, azedam.
e agora
- Desculpa, Ana! Desculpa!
- Perdi a cabeça. Não sei o que me deu.
- Não torna a acontecer.
- Juro!
E eu a pensar
o casamento, a casa, o carro, as contas…
filhos ainda não, mas
famílias à mistura e
dizer o quê?
- O Luís deu-me um estalo?
O meu pai, a minha mãe, a minha irmã que
tenho a certeza
já apanhou do namorado
um estúpido desocupado que lhe vive às custas
a dizerem
- Mas vais deixar tudo por causa disso?
o meu pai que
na minha mãe
a minha mãe que
do meu pai
a minha irmã
que
tenho a certeza
do namorado
um estúpido desocupado
todos
a
- Mas vais deixar tudo por causa disso?
de modo que eu
a desculpar
porque o Luís
- Desculpa, Ana! Desculpa!
porque o Luís
- Perdi a cabeça. Não sei o que me deu.
porque o Luís
- Não torna a acontecer.
porque o Luís
- Juro!
E porque quem mais jura mais mente, quatro meses depois o Luís a perder a cabeça, a dar-me uma sova e a sair de casa sem
- Desculpa, Ana! Desculpa!
a voltar a casa sem pedir desculpa
a não me dirigir a palavra para coisa nenhuma
a dormir no sofá
não porque eu
- Aqui…
(no quarto)
- …não entras!
Um dia, dois dias, três dias… e eu a penar “vou à minha vida. Isto não é nada.” A lembrar-me da Catarina
- A Cármen tornou a apanhar.
a ter-lhe raiva
(que sabe ela da vida? Nunca teve uma relação. Namorados, mil. Mas uma relação? Que sabe ela da vida? Casa, carro, contas, família… Que sabe ela para falar assim dos outros?)
E no meio dos pensamentos
o meu pai
a minha mãe
a minha irmã
- Mas vais deixar tudo por causa disso?
A casa, o carro, as contas…
filhos ainda não, mas
famílias à mistura e
mais isto
mais aquilo
que desculpas não faltam quando as queremos dar
como
esperar mais um dia
até ao próximo Sábado
a jurar que
só até Sábado
e Domingo e quarta e sexta e quinta e terça
segunda após segunda
e nunca mais era Sábado,
nunca mais o Luís
- Desculpa, Ana! Desculpa!
- Perdi a cabeça. Não sei o que me deu.
nunca mais o Luís
- Não torna a acontecer.
- Juro!
nunca mais
nem uma palavra.
Nada!
Mas porque haveria o Luís de me pedir perdão se eu própria não pedi?
Se eu própria não…
- Desculpa, Ana! Desculpa!
Se eu própria não…
- Perdi a cabeça. Não sei o que me deu.
- Não torna a acontecer.
- Juro!
- Juro!
- Juro!
Saturday, January 31, 2009
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1 comment:
brutal
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