- Tanta vez que eu levei aqui a sô dona Amália! Tanta vez! Nem queira a menina saber. Sempre que precisava de um táxi ligava lá para a central
(ela não, a menina Estrela)
mas é a mesma coisa
ligava lá para a central
(que na altura não havia cá telemóveis)
e mandava vir o Pires.
- Tanta vez!
- Era uma senhora. Coitadinha! É assim a vida! Vão-se embora os bons e os maus ficam cá, para semente, que é boa! Anda tudo ao contrário! Mas o que é que se há-de fazer. Deus é que sabe. Olhe, que lhe tenha lá alminha em descanso!
- Tanta vez, menina! Tanta vez!
- Olhe, uma vez, eram quatro da manhã
(nunca mais me esqueço, tinha ido levar um cliente à Artilharia 1)
ligaram-me para o rádio para ir à Rua de São Bento, 193. Já sabia para quem era. Meia hora depois arrancávamos para o Porto.
- Tinha uma confiança em mim, que a menina nem calcula! Sei de coisas que nem os melhores amigos dela sonhavam! E o que já insistiram comigo para escrever um livro!? Calhando, ficava rico! Mas eu quero lá saber do dinheiro! Olhe, tenho uma casa paga, o carro é meu, uma filha formada, que já me deu dois netinhos
(são estas duas jóias, aqui ao lado do S. Cristóvão)
de modo que o dinheiro…
- Há coisas que não têm preço, menina. Não concorda? Obviamente! É uma riqueza que está aqui dentro e vai comigo para a cova. Por isso, quando a malta amiga
- Ó Pires, porque é que não escreves um livro com essas coisas, pá?
eu logo
- Não!
E não! Por dinheiro nenhum! Olhe, só se fosse pela saúde destas duas joínhas que aqui estão. Nem pela minha. Pode a menina acreditar. Nem pela minha! Segredo é segredo. Pelo menos cá comigo é assim. Quero chegar lá acima de consciência limpa, piscar o olho à sô dona Amália e receber aquela gargalhada que dizia
- Ó Pires, só você para me aturar estas coisas todas, homem!
- Ai, que saudades, meu Deus!
- Bem, não importa! O que lá vai lá vai. Como a sô dona Amália dizia, e muito bem, “ninguém foge ao seu destino”, e o meu, olhe, é este, andar de cá para lá a levar histórias de um lado para o outro. Mas se eu fosse a contar… ai Jesus! Caía outra vez o Carmo e a Trindade. Olha, olha! O coronel Baptista Lima… ui! Dava cá um livro! Mas não. Fica cá dentro que está muito bem. Ou pensa que foi para o Porto sozinha, naquela noite? Ah! As pessoas sabem lá! Os artistas são homens e mulheres, como toda a gente. Têm é de se abrigar mais, que senão comem-nos vivo. É por essas e por outras que aqui o Pires não quer outra coisa que esta vidinha discreta. Às vezes é complicada. E de que maneira! Mas não trocava isto por nada, menina. Acredite que não. E quem me tirasse este carrinho das mãos era abri uma cova e chutar-me lá para dentro. Mas ser artista… Não! Eu sou dos bastidores. Olhe, ainda fiz teatro, quando era novo. Entrei numa peça com o mestre Eugénio Salvador, que Deus tenha, no Maria Vitória. A menina já não é desse tempo. Mas não dava para aquilo. Tinha de trabalhar, e depois os ensaios… Enfim! Entretanto conheci a minha Elvira e, olhe, o teatro foi outro. Ah,ah,ah… Ai, ai! Mas prefiro assim. Vejo muito, falo é pouco!
- Falei na sô dona Amália porque causa do fadinho que passou. Ainda hoje, e os anos que já lá vão, sempre que a ouço na rádio, fico todo arrepiado. Olhe, de estar a falar nisso. Mas o que não faltam são artistas que eu já levei aqui, menina! Quer dizer, aqui não, que este é novo. Era um outro Mercedes, um 300 Diesel. Aquilo sim era uma máquina! Não é que me possa queixar deste
(Mercedes é Mercedes)
mas já não se fazem carros daqueles. Sabe quantos anos trabalhou ele nas minhas mãos? Todo o santo dia, que nas folgas ia sempre dar uma volta com a patroa a e filha? Vinte e cinco! É verdade! Vinte e cinco anos, menina! E sabe quantas vezes é que me deu problemas? Uma. Um furo! Ah,ah,ah… Ai, ai! Até dava gosto! Para mim era família. E quando tive de me desfazer dele, foi como se me tivesse morrido um irmão. Até chorei. Palavra de honra, menina! E olhe que fiz duas campanhas na Índia. Isto pode parecer parvo, mas era um companheiro. Passei mais horas com ele do que com a minha mulher. Olha, olha! Se fosse a fazer contas: dias de trabalhar doze, catorze horas. Semanas sem folgas, que isto a vida não era simples. A malta nova hoje queixa-se, e a menina desculpe, mas sabem lá o que isto já foi.
- De modo que não é este, mas… A gente que aquele menino conheceu! Olhe, aquele é que se soubesse escrever tinha mais histórias que o Diabo! Que um homem aqui à frente vai de olhos na estrada. Nem sou cá pessoa de espreitar pelo retrovisor. Se falarem comigo, tudo bem, senão, vou aqui no meu cantinho, caladinho que nem um rato. Ouço as notícias, e tal. O resto também interessa pouco. Até a rádio já não é o que era. Dantes era uma companhia, agora… O que é bom acaba depressa. Sabe? Tenho saudades é dos Parodiantes! Ah,ah,ah… Esses andavam sempre comigo para todo o lado. E cheguei a transportar alguns. Não me lembro agora é do nome de nenhum. Bem, não importa. Mas aquele menino se soubesse escrever… Ui! As coisas que às vezes se fazem nos bancos de trás dos táxis. Imagino!
- Olha-me para este agora. Anda lá com isso, pá! Cartas da farinha amparo! Hoje qualquer um tem carta! Por isso é que isto anda tudo entupido e é só acidentes. No meu tempo, menina, para se tirar a carta até aulas de mecânica tínhamos de ter! Mas não era cá aprender a mudar pneus! Era mecânica! Agora, desde que se pague, toma lá e faz-te à estrada. Tenho mais medo de certos tipos que andam na estrada que do Diabo!
- Mas como lhe dizia, menina: Tantos! Nunca mais daqui saíamos. Olhe, só para ter uma ideia: Raul Solnado; Carlos do Carmo; o falecido Ary dos Santos; a Beatriz Costa, coitadinha, que Deus também já lá tem; o grande Tony de Matos, outro que também já lá está. Tantos, menina! Olhe o Badaró. Esse nem sei se ainda é vivo ou não. Já não é do seu tempo. Ainda se lembra!? É o do limpa o pó, é. Era um prato, esse malandro. A Ivone Silva. Ai, do que eu me fui lembrar! Uma vez apanhei-a à porta do ABC, valha-me Nossa Senhora, nem sabia onde morava… Foi o saudoso José Viana que a teve de ajudar a entrar no táxi, que vinha às arrecuas.
- Não é assim, ó Ivone!
parece que o estou a ouvir
e ela
- É assim é. É para trás que mija a burra!
Era uma senhora!
Tantos, menina! Tantos! Nunca mais daqui saíamos.
(ela não, a menina Estrela)
mas é a mesma coisa
ligava lá para a central
(que na altura não havia cá telemóveis)
e mandava vir o Pires.
- Tanta vez!
- Era uma senhora. Coitadinha! É assim a vida! Vão-se embora os bons e os maus ficam cá, para semente, que é boa! Anda tudo ao contrário! Mas o que é que se há-de fazer. Deus é que sabe. Olhe, que lhe tenha lá alminha em descanso!
- Tanta vez, menina! Tanta vez!
- Olhe, uma vez, eram quatro da manhã
(nunca mais me esqueço, tinha ido levar um cliente à Artilharia 1)
ligaram-me para o rádio para ir à Rua de São Bento, 193. Já sabia para quem era. Meia hora depois arrancávamos para o Porto.
- Tinha uma confiança em mim, que a menina nem calcula! Sei de coisas que nem os melhores amigos dela sonhavam! E o que já insistiram comigo para escrever um livro!? Calhando, ficava rico! Mas eu quero lá saber do dinheiro! Olhe, tenho uma casa paga, o carro é meu, uma filha formada, que já me deu dois netinhos
(são estas duas jóias, aqui ao lado do S. Cristóvão)
de modo que o dinheiro…
- Há coisas que não têm preço, menina. Não concorda? Obviamente! É uma riqueza que está aqui dentro e vai comigo para a cova. Por isso, quando a malta amiga
- Ó Pires, porque é que não escreves um livro com essas coisas, pá?
eu logo
- Não!
E não! Por dinheiro nenhum! Olhe, só se fosse pela saúde destas duas joínhas que aqui estão. Nem pela minha. Pode a menina acreditar. Nem pela minha! Segredo é segredo. Pelo menos cá comigo é assim. Quero chegar lá acima de consciência limpa, piscar o olho à sô dona Amália e receber aquela gargalhada que dizia
- Ó Pires, só você para me aturar estas coisas todas, homem!
- Ai, que saudades, meu Deus!
- Bem, não importa! O que lá vai lá vai. Como a sô dona Amália dizia, e muito bem, “ninguém foge ao seu destino”, e o meu, olhe, é este, andar de cá para lá a levar histórias de um lado para o outro. Mas se eu fosse a contar… ai Jesus! Caía outra vez o Carmo e a Trindade. Olha, olha! O coronel Baptista Lima… ui! Dava cá um livro! Mas não. Fica cá dentro que está muito bem. Ou pensa que foi para o Porto sozinha, naquela noite? Ah! As pessoas sabem lá! Os artistas são homens e mulheres, como toda a gente. Têm é de se abrigar mais, que senão comem-nos vivo. É por essas e por outras que aqui o Pires não quer outra coisa que esta vidinha discreta. Às vezes é complicada. E de que maneira! Mas não trocava isto por nada, menina. Acredite que não. E quem me tirasse este carrinho das mãos era abri uma cova e chutar-me lá para dentro. Mas ser artista… Não! Eu sou dos bastidores. Olhe, ainda fiz teatro, quando era novo. Entrei numa peça com o mestre Eugénio Salvador, que Deus tenha, no Maria Vitória. A menina já não é desse tempo. Mas não dava para aquilo. Tinha de trabalhar, e depois os ensaios… Enfim! Entretanto conheci a minha Elvira e, olhe, o teatro foi outro. Ah,ah,ah… Ai, ai! Mas prefiro assim. Vejo muito, falo é pouco!
- Falei na sô dona Amália porque causa do fadinho que passou. Ainda hoje, e os anos que já lá vão, sempre que a ouço na rádio, fico todo arrepiado. Olhe, de estar a falar nisso. Mas o que não faltam são artistas que eu já levei aqui, menina! Quer dizer, aqui não, que este é novo. Era um outro Mercedes, um 300 Diesel. Aquilo sim era uma máquina! Não é que me possa queixar deste
(Mercedes é Mercedes)
mas já não se fazem carros daqueles. Sabe quantos anos trabalhou ele nas minhas mãos? Todo o santo dia, que nas folgas ia sempre dar uma volta com a patroa a e filha? Vinte e cinco! É verdade! Vinte e cinco anos, menina! E sabe quantas vezes é que me deu problemas? Uma. Um furo! Ah,ah,ah… Ai, ai! Até dava gosto! Para mim era família. E quando tive de me desfazer dele, foi como se me tivesse morrido um irmão. Até chorei. Palavra de honra, menina! E olhe que fiz duas campanhas na Índia. Isto pode parecer parvo, mas era um companheiro. Passei mais horas com ele do que com a minha mulher. Olha, olha! Se fosse a fazer contas: dias de trabalhar doze, catorze horas. Semanas sem folgas, que isto a vida não era simples. A malta nova hoje queixa-se, e a menina desculpe, mas sabem lá o que isto já foi.
- De modo que não é este, mas… A gente que aquele menino conheceu! Olhe, aquele é que se soubesse escrever tinha mais histórias que o Diabo! Que um homem aqui à frente vai de olhos na estrada. Nem sou cá pessoa de espreitar pelo retrovisor. Se falarem comigo, tudo bem, senão, vou aqui no meu cantinho, caladinho que nem um rato. Ouço as notícias, e tal. O resto também interessa pouco. Até a rádio já não é o que era. Dantes era uma companhia, agora… O que é bom acaba depressa. Sabe? Tenho saudades é dos Parodiantes! Ah,ah,ah… Esses andavam sempre comigo para todo o lado. E cheguei a transportar alguns. Não me lembro agora é do nome de nenhum. Bem, não importa. Mas aquele menino se soubesse escrever… Ui! As coisas que às vezes se fazem nos bancos de trás dos táxis. Imagino!
- Olha-me para este agora. Anda lá com isso, pá! Cartas da farinha amparo! Hoje qualquer um tem carta! Por isso é que isto anda tudo entupido e é só acidentes. No meu tempo, menina, para se tirar a carta até aulas de mecânica tínhamos de ter! Mas não era cá aprender a mudar pneus! Era mecânica! Agora, desde que se pague, toma lá e faz-te à estrada. Tenho mais medo de certos tipos que andam na estrada que do Diabo!
- Mas como lhe dizia, menina: Tantos! Nunca mais daqui saíamos. Olhe, só para ter uma ideia: Raul Solnado; Carlos do Carmo; o falecido Ary dos Santos; a Beatriz Costa, coitadinha, que Deus também já lá tem; o grande Tony de Matos, outro que também já lá está. Tantos, menina! Olhe o Badaró. Esse nem sei se ainda é vivo ou não. Já não é do seu tempo. Ainda se lembra!? É o do limpa o pó, é. Era um prato, esse malandro. A Ivone Silva. Ai, do que eu me fui lembrar! Uma vez apanhei-a à porta do ABC, valha-me Nossa Senhora, nem sabia onde morava… Foi o saudoso José Viana que a teve de ajudar a entrar no táxi, que vinha às arrecuas.
- Não é assim, ó Ivone!
parece que o estou a ouvir
e ela
- É assim é. É para trás que mija a burra!
Era uma senhora!
Tantos, menina! Tantos! Nunca mais daqui saíamos.
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