Depois que a Soraia me trocou por aquele taxistazinho de merda a vida perdeu o sentido.
- Olha que essa gaja não é boa rês, pá! - o pessoal do snack-bar a avisar-me.
- Também para o que é! - defendia-me eu, indiferente
aparentemente indiferente
mal sabendo, ou querendo admitir, que já estava vidrado na curvas desastrosas daquele corpo.
- Olha que já deu a volta a uns quantos pategos aqui no bairro, Chico! - o pessoal a insistir. Principalmente aqueles que nunca se haviam acidentado nas curvas de morte da Soraia. Maldita seja!
- Dizem até que foi por causa dela que o Victor se matou, pá.
- Uns fracos, pá! - afirmava eu, todo galo. - Gajos que não sabem lidar com uma mulher! E enchia a boca para
- Uns fracos, pá!
e num inchar de peito ainda acrescentava
- Uma mulher é uma mulher, pá! Não tem nada que saber.
Até que a Soraia a afastar os joelhos e eu
- Uns fracos, pá!
a não saber lidar com ela
- Olha que nem todos os carros são para todas as mãozinhas! Passa lá uma bomba para as mãos de um nabo e logo vês o que lhe espera.
E a Soraia um carro de competição com 800 cilindros em triplo W.
- Olha que aquilo não vem com kit de unhas, Chico! Ou tens “mãozinhas” para a gaja, ou vais direitinho à parede que até te amolas.
E os joelhos da Soraia a afastarem-se na minha direcção
uma velocidade vertiginosa
estrada em bico
a afunilar
a afunilar
em direcção ao precipício
e eu
um franguinho com vertigens à beira do abismo
da boca do inferno.
E ela
… Soraia. Maldita seja!
a perceber que eu não tinha mãozinhas para aquilo
um nabo
mas enquanto lhe deu pica gozar o pacóvio, que todas as sextas e sábados aos bifes da Trindade
tudo muito certo
uma lady
e eu de peito inchado,
todo galo
franguinho com vertigens à beira do abismo
a passeá-la à porta do snack-bar, ao fim da noite, onde os outros, invejosos, babados, lhe mandavam olhares às ancas e piadas a meu respeito.
- Então, ó Chico, já nem falas à malta?!
e eu
que já nem falava à malta
nem um gesto de cabeça; uma piscadela de olho
nada
a andar, a andar
inchado que nem um peru
todo galo…
(franguinho com vertigens à beira do abismo)
Mas agora…
agora que aquele taxistazinho de merda a levou, sei lá para onde, acabou-se tudo. A voltarem-me à ideia as palavras do Calisto
- Dizem até foi por causa dela que o Victor se matou, pá.
as do Necas
- Ou tens “mãozinhas” para a gaja, ou vais direitinho à parede que até te amolas.
E o taxistazinho de merda, mais habituado a grandes andamentos
de certeza mais habituado a grandes andamentos
de manhã à noite com um Mercedes na patuças
a levar-ma, sei lá para onde…
a deixar-me um vazio enorme
cheio de ecos
onde as palavras do Calisto
- Dizem até foi por causa dela que o Victor se matou, pá.
- … foi por causa dela que o Victor se matou, pá.
- … o Victor se matou, pá.
- … se matou, pá.
a dar-me vontade de morrer
aqui
neste quarto vazio com barba de cinco dias, a português suave e latas de salsichas com pão de forma e vinho de pacote, que é só o tempo de descer ao supermercado
a horas que não me vejam
a horas que ninguém
- Então, ó Chico, já nem falas à malta?!
só o tempo de descer ao supermercado
e
tau
o que calhar e uns cigarros.
Neste quarto vazio
(cama e armário)
alugado ao segundo
que isto aqui não é uma pensão
- Olhe que isto aqui não é uma pensão!
a dona disto que não é uma pensão, à porta, a avisar-me
- Olhe que isto aqui não é uma pensão!
a dar-me ganas de lhe apertar o papo
de lhe berrar bem alto
- É um ninho de putas. É o que isto é!
a não dizer nada
a deixar-me ficar
no canto vazio do quarto
(cama e armário)
que para amar nem é preciso tanto
afinal
- Uma mulher é uma mulher… Não tem nada que saber.
e pelo visto até tem
- Ou tens “mãozinhas” para a gaja, ou vais direitinho à parede que até te amolas.
as palavras do Necas no eco surdo do quarto
alugado ao segundo pelo taxímetro da velha que
- Olhe que isto aqui não é uma pensão!
e ao dizer taxímetro
a começar tudo de novo
a Soraia, o snack-bar, a Trindade, a pensão
- Olhe que isto aqui não é uma pensão!
- Já sei que não é uma pensão, foda-se!
… um ninho de putas. É o que isto é!
a deixar-me ficar
na esperança desesperançada que volte
que entenda que eu
Chico
o homem da vida dela
na esperança desesperançada que o taxistazinho de merda a abandone
que as mulheres abandonadas regressam sempre aos braços encornados dos pacóvios que as choram em pontas.
A deixar-me ficar
numa vontade de morrer
a horas que não me vejam
neste quarto de cinco dias, só, com barba de tempo a descer, suave, ao vazio… tau… uns cigarros. Português de forma, de pacote, de supermercado salsichas de pão e vinho de latas…o que calhar.
aqui
no canto
vazio
onde uma barata
passeando-me pelas biqueiras das botas, sem respeito algum
(como o pessoal do snack-bar se me visse agora
Português sem forma, barba de cinco quartos, salsichas de pão e vinho suave, tempo em lata, dias de pacote
o que calhar e uns cigarros)
respeito algum
a barata
pelas biqueiras de mim, ou das botas
como se eu não mais que um obstáculo no caminho
eu não mais que um obstáculo no caminho
que uma barata faz lá ideia o que é um homem
um franguinho com vertigens à beira do abismo
à boca do ralo do polibã
agora
repleto de cabelos e pêlos fossilizados em restos de sabão, onde a barata
agora
ou eu
a barata
agora
em movimentos de antenas, à procura dos pêlos dela
… Soraia. Maldita seja!
Quais os dela? Quais o meus? Quais os de toda a gente que por aqui passou antes de nós, que
- …isto aqui não é uma pensão!
… um ninho de putas…
já sei
num desespero, perdido
Quais os dela? Quais os dela? Quais os dela?
em movimentos de antenas
a barata
ou eu
a barata
Quais os dela? Quais os dela? Quais os dela?
Que frustração! Nem um resto do seu corpo a ser-me permitido
um fio ondulado de saudade… Nada!
Confundi-me com ela, com meia cidade, com meio mundo... meia pensão…
e que resta de nós…
um monte de pentelhos no ralo, misturados com o sebo e sabão…
o abismo
o ralo aberto
movimento de antenas
um medo que vem de dentro
de mim
do ralo
de onde um frio
uma dor
um silêncio de gargalhadas pelos quatro cantos do quarto
vazio
a arrepiarem-me a couraça
nua
gelada
numa vertigem de abismo à boca do ralo
à boca do inferno
de onde um eco
profundo
nas minhas antenas à toa
vindo das entranhas da cidade
me repete
- Dizem até que foi por causa dela que o Victor se matou, pá.
- … que o Victor se matou, pá.
- … se matou, pá.
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