Porque foi que morreu, dona Camille? E agora, dona Camille? Quem me dirá
- Entrre, mênino. Entrre.
dona Camille?
Quem me dará bolinhos de anis num cartuchinho de papel branco; me mandará aos recados, dona Camille? Eu sei que isso foi há trinta anos, dona Camille, quando a dona Camille uns cinquenta e eu
treze
catorze
quinze
e a dona Camille
- Entrre, mênino. Entrre.
em camisa de dormir
transparente
afinal eu uma criança
treze
catorze
quinze
e mal nenhum
idade para ser minha mãe
e em França tudo muito mais moderno.
Vai daí que
- Entrre, mênino. Entrre.
em camisa de dormir
transparente.
Viúva antes dos cinquenta
o senhor João Lemos
português a salto para Paris
um café
(uma boîte)
a mesma coisa em França
tudo muito mais moderno
uma noite, duas noites
um mês ou dois
e
aquela vidinha de lado
cansada já
dançar todas as noites
dançar apenas
(como se apenas não cansasse igual)
a aceitar o pedido
a dizer
- Sim.
perdão
- Oui.
num cartório de Paris.
Nunca teve filhos
(apesar de idade para ser minha mãe)
casamento tardio
passava dos quarenta
quando o senhor João Lemos
- A mademoiselle aceitaria casar-se comigo?
de modo que
quando disse sim
já tarde demais para ter filhos
(apesar de idade para ser minha mãe)
mas não sendo
- Entrre, mênino. Entrre.
em camisa de dormir
transparente
a pedir-me que ajudasse com isto, com aquilo
e nisto e naquilo o decote
malandro
a mostrar-me
- Olha para isto, ó puto! Ah! Diz lá que ainda não está enxuta, a velha!
e eu
para o decote
- Dona Camille, se faz favor!
que lá porque um decote a vida toda colado aos seios, direito nenhum de
- … Diz lá que ainda não está enxuta, a velha!
De modo que os olhos a falarem por mim, a dizerem
por mim
- Dona Camille, se faz favor!
a ficarem naquilo
num bate-boca
não eu
os olhos
a defenderem a dona Camille
a não admitirem faltas de educação ao decote
ordinário
pensava que malandro, mas
ordinário
e nisto uma voz
- Párra onde está o mênino a olhár?
a embrulhar-me o estômago, a entrançar-me as pernas, a comer-me letras às palavras que
- Par… eu… ah… nenhu...par…não…
e a voz
não a dona Camille
a voz
de conluio com o decote
ordinário
a perguntar-me
- Quér ver as minhas mêninas?
a engasgar-me o coração, aflito, num esperneio de coelho mal morto
a aproximarem-se de mim
a voz
o decote
umas mãos também
cúmplices todos
a aumentarem o decote, como uma boca que ri
a revelarem-me dois…
(enxutos)
a agarrarem-me na mão
a levarem-ma até eles, apertando-a
transfundindo-me o sangue do coração para as calças
engasgado
num esperneio de coelho mal morto
a puxarem-me para o sofá, onde a voz
não a dona Camille
a voz
- Gósta?
e eu
não sei se bem eu
qualquer coisa em mim
a fazer-me sim com a cabeça
que sim, que sim, que gostava
apesar de idade para ser minha…
mas não sendo
que sim, que sim
e as minhas calças a abrirem-se, uma mão a certa de encontrar o que procurava
treze anos
resistência alguma
a massajar, como a uma lamparina mágica onde um génio adormecido não tardaria a ser desperto
- Gósta?
a voz, as mãos, o decote, que já decote nenhum
uns seios
inteiros
(enxutos)
à espera de beijos
de qualquer coisa
um carinho
uma meiguice
algo que os acalmasse
(ou ao coração por detrás deles)
que uma mulher sozinha sofre muito
e que mal tem o carinho
o amor (?)
que se não fosse amor não se poria sobre o meu colo, a dona Camille
não a dona Camille
precipitei-me
é o nervosismo
o corpo apenas
não a dona Camille
insisto
o corpo apenas
mais forte que ela
sobre o meu colo
a abraçar-me o pescoço
a encher-me de beijos
a boca que
- Gósta?
a arrancar-me
que sins com a cabeça desvairada
a garantir-me, a boca
não a dona Camille
a boca
- Ai é tão bóm, mênino!
enquanto eu
a desmaiar
a arquejar de aflição…
Pobre dona Camille (!)
a viuvez, as saudades do carinho, que
sozinha
num país estranho
não havia quem lho desse
a arrancar de dentro de mim um vómito da alma que a fez brilhar
(os olhos)
que a fez brilhar
dizer-me
- Ai é tão bóm, mênino!
Uma vez, duas vezes
treze
catorze
quinze anos
até que eu uma namoradinha e
- Já não tenho idades para fazer recados.
a dar o recado à minha mãe, quando ela
- Olha, a dona Camille pediu se podias passar lá por casa hoje. Precisa que lhe faças um recado
- Já não tenho idades para fazer recados.
De modo que nunca mais fui
perdão dona Camille
um ingrato, eu sei
mas o quê(?)
dezasseis anos, quase
uma namoradinha e
sabe como é…
E talvez fosse isso, que devagarinho a foi levando, à dona Camille
que uma mulher viúva
saudades do carinho, que
sozinha
num país estranho
não havia quem lho desse.
Quando se é novo não se pensa nisso. Mas agora, quando a notícia chegou
talvez porque desiludido com o casamento
a namoradinha daquele tempo
a doer-me
a querer dizer
dona Camille
não morra, dona Camille
eu vou, dona Camille
ainda hoje, dona Camille
sem falta, dona Camille
juro que sem falta.
Não me custa nada
sinceramente
um recadinho, com todo o gosto
é só mudar de roupa, dona Camille
mas não morra, dona Camille
não morra!
Senão quem é que me abrirá a porta, dona Camille?
Quem é que me dirá
- Entrre, mênino. Entrre.
dona Camille?
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