- … e viveram felizes para sempre.
o livro a fechar-se sobre o colo da minha mãe e uma mão terna a passar-me pelo cabelo, antes do sorriso, do beijo na testa, do
- Dorme bem, meu amor!
e então a mão, o sorriso, os lábios da minha mãe e o
- Dorme bem, meu amor!
a sucederem-se, cada um à vez, na ordem do costume, a não defraudarem as minhas expectativas. Com a mamã era “todos os dias igual”; todos os dias tão bom, ainda que o papá
- É todos os dias a mesma coisa contigo! Chiça, penico!
e eu
que não entendia a expressão, nem o desagrado do meu pai
a mirrar-me no meu canto, a montar um cavalinho da Playmobil e a fugir para o meio da quinta, onde o barulho dos animais me impediam de
- É todos os dias a mesma coisa contigo! Chiça…
…penico!
e a voltar apenas quando a porta da rua
Truz
com toda a força
um coice de cavalo na porta do estábulo
Truz
e as escadas do prédio
um, dois
numa obsessão por números
sete, oito
a contarem os passos do meu pai até à porta da rua. Como se do primeiro andar até ao rés-do-chão pudessem crescer degraus do dia para a noite
como se
do dia para a noite
vinte e três em vez de dezoito
ou trinta e um
quarenta e cinco
em vez de
dezoito.
Portanto
apenas quando a porta da rua
Truz
e as escadas
numa obsessão por números
dezassete; dezoito
eu a desmontar-me do cavalo e a aparecer na sala, como se por acaso
- Andava pela quinta mamã, não dei por nada. Saiu, foi? Hum! Pois, não reparei. E a aninhar-me no seu colo, que precisava mais de colo do que eu.
Não sei se à data o não compreendia já, pois entendo que as crianças não são tão ingénuas como as querem fazer parecer. Mas, a não compreendê-lo, a senti-lo, pelo menos
de modo que
a aninhar-me no seu colo
a perguntar-lhe
depois de
- … e viveram felizes para sempre.
da mão pelo cabelo, do sorriso, do beijo na testa e do
- Dorme bem, meu amor!
a perguntar-lhe
- As pessoas quando casam são felizes para sempre?
- Nas histórias sim.
a garantir-me com voz frouxa
- E sem ser nas histórias?
- Às vezes são.
- És feliz para sempre, mamã?
e a minha mãe, que entendia as perguntas das crianças, respondeu-me que
- Sim.
e sorriu, com a expressão de
- Sou tão infeliz, filho! Sou tão miserável, meu querido. Deixa-me dormir contigo, meu amor. Só hoje. Eu juro que não me habituo. Só hoje, meu lindo. Não aguento mais ficar sozinha.
apesar de
- Sim
com o sorrido de
- Não!
E porque a não conseguir dizer-me a verdade
(uma dificuldade que os adultos têm. Alguma função que se atrofia com a maioridade)
a não conseguir
- Sou tão infeliz, filho! Sou tão miserável, meu querido.
tal como para o meu pai
que algures num carrinho da Playmobil às voltas pela cidade
a não conseguir
- Deixa-me dormir contigo, meu amor. Só hoje. Eu juro que não me habituo. Só hoje, meu lindo. Não aguento mais ficar sozinha.
a deixá-lo ir
dezassete, dezoito
dezanove, vinte, vinte e um…
Como se do primeiro andar até ao rés-do-chão pudessem crescer degraus do dia para a noite
como entre o meu pai e a minha mãe
cada dia um degrau mais longe
dois mil quinhentos e trinta e nove, dois mil quinhentos e quarenta…
Não sei se à data o não compreendia já, pois entendo que as crianças não são tão ingénuas como as querem fazer parecer. Mas, a não compreendê-lo, a senti-lo, pelo menos
de modo que
a aninhar-me no seu colo
a receber
a mão terna pelo cabelo, antes do sorriso, do beijo na testa e do
- Dorme bem, meu amor!
na ordem do costume
todos os dias
igual
tão bom
a dizer-lhe
- Dorme comigo hoje, mamã.
porque ela
com o sorrido de
- Não!
a dizer-me que
- Sim!
jamais me pediria
tal como ao meu pai
para ficar
…para sempre…
1 comment:
Nossa, esse é um dos melhores textos que já li na internet.
Parabéns!
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